1 – O DILEMA DE BURIDAN E A TEORIA DAS CATÁSTROFES
O dilema de Buridan (1292 - 1363) tipifica a inação perante duas
opções assumidas como dilemáticas, mas que na realidade
só o são pela forma passiva e indecisa do sujeito. É esta
precisamente a situação em que os defensores "da plena
integração" na Europa se colocaram e colocam o país:
sair do euro e renegociar as condições de relacionamento com a UE
seria uma catástrofe anunciada, porém ficar no euro é,
como todos os indicadores mostram, uma catástrofe bem real.
Ora, uma pessoa, um país, colocar-se em situações
dilemáticas é desde logo perder a sua autonomia, diríamos
a liberdade de escolha se esta expressão não tivesse sido
colocada ao serviço de mentiras e iniquidades.
A nossa autonomia, a nossa liberdade consiste precisamente em poder ter
opções e é justamente isto que os epígonos da
"Europa connosco" não entendem ou não querem que os
outros entendam. Por isso, refugiam-se na dilemática teoria das
catástrofes. É esta a frágil base de
sustentação ideológica dos partidos da troika.
Afirma-se, por exemplo, que com a saída do euro o nível de vida
da população cairia 30, 40 ou 50%, sem qualquer base consistente
que o justifique, quando análises que demostram o contrário
são escamoteadas. Que importa que J. Ferreira do Amaral, Octávio
Teixeira, Avelãs Nunes, Jaques Sapir, entre outros, demonstrem o
contrário e apontem fundamentadas soluções viáveis,
que a comunicação social ignora ou desvaloriza, pois não
têm capacidade para consistentemente as contrariar.
Tudo isto é escondido da população. As faculdades de
economia alinham pelas "business schools" na
"ciência" de obter o máximo lucro empresarial, a censura
evidente na comunicação social e mesmo na literatura divulgada,
promove o totalitarismo neoliberal e o obscurantismo – arma da ideologia
fascista – para que a população tenha diante de si apenas
dilemas, vislumbre catástrofes e deixe de ter um papel interventivo na
defesa dos seus interesses individuais e coletivos.
O gongórico sr. Zorrinho como líder da bancada parlamentar do PS,
colocado perante a renegociação da dívida que à sua
esquerda se defendia, afirmava querer Portugal em "plena
integração europeia numa Europa viável". Os partidos
social-democratas / socialistas, promovem assim um "êxtase
induzido": o "sonho europeu", a "Europa
viável", rendidos ao neoliberalismo instituído na UE,
iludindo-se e iludindo, com uma pretensa defesa do Estado Social que se
encarregaram à vez de ir destruindo.
O Estado Social foi a marca identitária da social-democracia europeia,
para desmobilizar os trabalhadores da luta pela superação das
contradições do capitalismo, tendo como objetivo o socialismo.
Porém, agora, comentadores e professores afirmam sem
contraditório que tal "despesismo" não é
possível manter, por causa da globalização, das regras do
euro, da crise.
É típico das sociedades em decadência, a intelectualidade
refugiar-se em dúvidas existenciais, em abstratas
elucubrações, socialmente inócuas, que estes
"filósofos da corte" assumem para serem admitidos no festim
oligárquico e para que o mundo não seja transformado, como diz
à conhecida formulação do marxismo.
Ficar no euro é, pois, catastrófico, mas sair do euro é
uma catástrofe. Que fazer? Nada. Dizem que a solução tem
de vir da "Europa". Esperam um milagre, enganam as pessoas com falsas
ideias sobre eventuais mudanças na governação
alemã, ao serviço da sua oligarquia que, tal como no passado,
só se interessa pela "Europa" na medida em que contribua para
os seus interesses. Escusam, pois, de rezar aos deuses europeus ao
serviço dos "mercados" que, como Baal/Moloch, só se
satisfazem com sacrifícios humanos.
O verniz democrático de que o neoliberalismo necessita, é dado
por uma camada de "bem pensantes" que se prestam a dissertar sobre
dilemas e negar a existência de alternativas. Afirma-se que nenhum
partido ou organização as apresenta, o que é falta de
honestidade intelectual, pois existem e são reiteradamente apresentadas
pelo PCP, o BE, a CGTP. O objetivo dos protagonistas da política de
direita já não é demonstrar que têm razão: as
polémicas entre o PS e o PSD consistem em demonstrar quem na mesma via
fez ou faz pior.
Depois de 20 mil milhões de euros perdidos em "austeridade" no
cumprimento dos memorandos da troika, para uma redução do
défice em 6 mil milhões com um aumento da dívida
pública de 52 mil milhões, uma redução do PIB
superior a 6%, com nove "avaliações" propaladas como
"positivas", o FMI no seu recente relatório de
"avaliação" tem o cinismo de afirmar que as medidas de
"austeridade" são permanentes e que as "reformas"
estão por fazer. Este relatório deita por terra a vacuidade, as
contradições as mentiras do governo e dos seus propagandistas,
mesmo os aparentemente "críticos".
Foi a isto que nos conduziram os "europeístas" de uma
"Europa viável". Mas não seria lógico
preocuparem-se antes de mais com um Portugal viável. E se nos disserem
que só é possível um Portugal viável numa
"europa viável", então estão a colocar os
interesses da "Europa" acima dos interesses nacionais.
E não nos falem em "sonho europeu", pois se dirá que
só podem estar sob a influência de algum psicotrópico.
2 - DEMOCRACIA
O sr. António Barreto diz que "a Europa era um sonho
político e cultural".
[1]
Engana-se, era uma quimera, um sonho transformado em monstro. Poderia ser um
sonho, mas não uma Europa capitalista. A Europa do capitalismo senil,
financeirizado e neoliberal é uma monstruosidade.
Os europeístas dizem que a UE foi um "atalho para a
democracia". O capitalismo é assim considerado sinónimo de
democracia, mesmo que se tente ignorar que o nazi-fascismo foi capitalismo, que
os Pinochet, Vilela, Banzer, etc, da América Latina, ou os Suharto da
Indonésia se dedicaram a aplicar "custasse o que custasse" o
capitalismo oligárquico neoliberal, impulsionado pelo sr. Milton
Friedman (o da "liberdade para escolher", imagine-se) e do sr.
Kissinger (do plano Condor e Escola das Américas em Fort Benning, para
polícias políticas e torcionários).
A democracia da UE é a ditadura dos mercados – a tal mão que
os propagandistas do sistema procuram tornar invisível. A Europa em que
o "risco sistémico" é transformado em "crime
sistémico" da finança, da especulação e do
conluio com a fraude e o crime organizado.
[2]
A livre transferência de capitais e a concorrência fiscal
são a forma de impedir a tributação sobre o grande
capital, transferida para os trabalhadores e MPME. É a
"disciplina" orçamental que a UE impõe, festejada pelos
comentadores de serviço, anulando a capacidade dos Estados terem
recursos para desenvolver políticas económicas e sociais.
São estes os factos. O PS defendeu esforçadamente a
"economia de mercado", impediu a discussão pública e o
referendo sobre tratados europeus, no que mentiu ao eleitorado. Foi como
empurrar pessoas para uma piscina sem água: a de um pseudo federalismo,
sem garantir que algo estivesse previsto para merecer este nome, mesmo
admitindo que o federalismo fosse uma boa coisa para o país, e
não seria, pois para os "federalistas" os interesses da
"Europa", isto é da potência hegemónica e da
finança, são colocados acima dos interesses nacionais. Neste
sentido a "piscina" (o abismo) para onde o país foi empurrado
tem um nome: neocolonialismo.
O
Mecanismo Europeu de Estabilidade
, MEE, entrou em vigor
sub-repticiamente, sem o mínimo de análise ou discussão
pública, muito menos referendado, para se saber, mesmo com o grau de
desinformação vigente, qual seria a aceitação deste
compromisso fundamental para o destino dos povos. É um exemplo da
ditadura oligárquica.
O "tratado orçamental", é um verdadeiro golpe de Estado
europeu, que vem minar ainda mais a já débil estrutura
democrática da UE, confiando as suas instituições a
instâncias tecnocráticas. É a ilegalização da
democracia.
[3]
A UE pretende assim eliminar as contradições do capitalismo por
decreto! Nem as ditaduras da AL ou os fascismos europeus o conseguiram: foram
derrotados. A social-democracia europeia é cega a tudo isto. A UE
tornou-se uma "Santa Aliança" das oligarquias europeias,
à semelhança da de 1815 feita para conter a
propagação das ideias de liberdade da Revolução
Francesa.
Neste processo, "a UE é um regime político
autoritário disposto a suspender os procedimentos democráticos
invocando a urgência económica ou financeira"
[4]
que, no entanto, ela própria originou, controlada por uma burocracia
submetida à finança.
Apesar da visão minimalista que o Tribunal Constitucional (TC) tem da
Constituição, nos limites do Estado de direito, é atacado.
A sra. Teresa de Sousa (
Público,
20/10/2013) acusa-o de ser "uma espécie de governo sombra a que
toda a gente se agarra para determinar as opções políticas
do verdadeiro governo", defendendo que "a lei europeia se
sobrepõe à lei nacional. "A nossa
Constituição, apesar de várias revisões, é
um documento datado, que corresponde a um país e a uma Europa que
já não existem". Aqui tem razão: está tudo
pior, mas pelos vistos é o que a direita pretende.
Note-se que nas questões que o TC não aprovou, estiveram em causa
princípios como a equidade, a progressividade, a confiança, a
não retroatividade das leis. Princípios básicos de
qualquer Estado de direito democrático.
Que espécie de Constituição pretende a direita e seus
propagandistas? Muito do que era progressista, resultante do impulso
democrático e popular do 25 de Abril, o bloco central, PS e PSD com ou
sem CDS, se encarregaram de ir destruindo. Trata-se agora de atacar os
próprios fundamentos da democracia, com os sofismas do
"europeísmo" e do pacto da troika, que afinal tanto desejaram,
reclamaram e negociaram.
Na UE o nível de solidariedade e respeito pelas
instituições democráticas nacionais atinge, em termos
diplomáticos, o nível da boçalidade. Durão Barroso
e Olli Rehn, da CE, arrogam-se tecer considerações que configuram
ameaças veladas sobre a atuação do TC. Durão
Barroso afirma que se o TC não der parecer favorável às
atuais medidas de austeridade do OE a alternativa será muito pior. Mas
que autoridade tem para tal dizer sobre medidas que compete à AR decidir
e votar?
[5]
O sr. Luís Pessoa, representante da CE em Portugal, conforme noticiado,
afirma «não ser esta a altura certa para o TC se envolver em
ativismos políticos». Perante isto, o governo e a maioria mostram a
sua concordância, tentam justificar o inqualificável – esse
tem sido o seu papel na alienação da soberania nacional –
comportando-se como meros delegados da troika. Quanto ao PR pode dizer-se que
como garante das instituições democráticas e da sua
dignidade, baixa as orelhas.
No "sonho europeu" já não cabem, pelos vistos, os mais
elementares princípios democráticos, nem sequer direitos que os
até os reis medievais respeitavam.
Dizia o sr. Medina Carreira que a Constituição deveria ter sido
alterada aquando da nossa entrada para o euro. Eis a escolha que se coloca aos
portugueses, como aos outros povos: o euro, tal como é gerido pelo BCE,
representa a destruição dos princípios básicos da
democracia, a instauração de um sistema oligárquico, a
democracia "musculada" desejada pela direita, versão
"pós-moderna" da "democracia orgânica"
salazarista, com que foi tentado mascarar o regime após a derrota do
nazi-fascismo.
Oscilando entre a dúvida sistemática e a teoria das
catástrofes o sr. António Barreto esclarece sobre a sua
conceção da Constituição: "tem uma
dimensão programática e ideológica excessiva".
"Cada parlamento devia poder fazer as políticas financeiras,
económicas e sociais que entendesse, assumindo os custos dessas
decisões que o parlamento seguinte poderia anular. Assim, alguns pontos
da polémica atual ficariam fora da Constituição".
[2]
Curiosamente, a dimensão ideológica dos tratados da UE não
o choca! Tal ingenuidade é estranha num considerado investigador,
porém não nos surpreende no governante que queria fazer uma
reforma agrária "mas sem ódios".
[6]
Parece não importar que princípios básicos
democráticos e sociais possam ser anulados por maiorias espúrias,
obtidas com base na mentira, na manipulação da
comunicação social controlada e na chantagem sobre uma
população desinformada e fragilizada pela pobreza. Trata-se
afinal de constituir um Estado governado à maneira salazarista, em que
tudo o que na Constituição podia defender o cidadão estava
anulado por leis e decretos.
Esquece-se que um governo, com o seu "parlamento", leia-se: maioria,
tem poderes para comprometer o Estado à revelia da vontade popular e de
promessas eleitorais, como aconteceu com os tratados da UE e o memorando da
troika, ou estabelecer contratos com empresas privadas contradizendo o que se
dizia defender nas próprias leis regendo esses processos (como nas PPP,
nas privatizações, banca fraudulenta, etc.).
Na realidade, o sr. Barreto apresenta e defende a agenda política do
governo da direita, roçando a extrema-direita, a que a
mobilização popular, de que o PS se alheia, os partidos à
sua esquerda e o TC têm apesar de todas as contingências feito
frente de forma que não se limita à retórica.
A confrontação com a Constituição a coberto de um
hipotético ajustamento sob os ditames da troika está a conduzir o
país a situações que só poderão ser
revertidas repondo a letra e o espírito do 25 de Abril, não
apenas a partir de uma maioria parlamentar, mas de um processo
revolucionário de ampla participação popular para repor a
soberania e a dignidade nacionais alienadas pelas estruturas económicas
dos monopólios e da especulação financeira.
1-
Público,
01/setembro/2013
2- O Estado capitalista e as suas máscaras, António Avelãs
Nunes, Ed. Avante, 2013, p. 302
3- Idem, p. 394 e 396
4-
En finir avec l'Europe
, Cédric Durant (coord.), Ed. La fabrique,
2013, p. 89 e 90.
5- As declarações de Durão Barroso foram objeto de uma
carta de protesto dos deputados do PCP no Parlamento Europeu, João
Ferreira e Inês Zuber.
6- Viu-se pela posterior atuação ilegal e mesmo criminosa dos
contingentes militarizados deslocados para a zona por sucessivos governos, de
que as mortes de Caravela e Casquinha são trágicos exemplos.
[*]
Engenheiro
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