quinta-feira, 23 de abril de 2015

Verdades e mentiras sobre a Cimeira das Américas **

por 
Claudio Katz*

Claudio Katz
O ponto crítico da América Latina, actualmente, não se situa na resistência aos Estados Unidos. O maior problema radica na estabilização de modelos capitalistas adversos às aspirações das maiorias populares. A significativa soberania política alcançada pela América Latina nos últimos anos não é sustentável com orientações económicas regressivas. Só um caminho de ruptura total com o neoliberalismo, o protagonismo popular, a radicalização política e o confronto com a classe capitalista pode pavimentar o caminho até à Segunda Independência

Os grandes meios de comunicação apresentaram a Cimeira do Panamá como o início de uma nova era. Ponderaram o fim da guerra fria e atribuíram a Obama uma postura de distensão oposta à belicosidade de Maduro. Também puseram em contraste a reintegração de Cuba na região com o isolamento da Venezuela e classificaram o encontro como um êxito da diplomacia estadunidense. Este diagnóstico foi explanado antes e depois do conclave, como se a reunião não tivesse trazido nada de relevante.

Mas este relato omitiu que 33 dos 35 mandatários presentes rejeitaram a imputação à Venezuela de uma «ameaça à segurança estadunidense». Todos reclamaram a derrogação da decisão de Obama, que dispõe o bloqueio de bens e restrições de determinados cidadãos daquele país. Esta exigência foi feita em enfáticos discursos que nenhum parceiro do império contradisse. O próprio Obama preferiu retirar-se do plenário para evitar estas questões. Num quadro adverso os Estados Unidos teve que adiar a sua agenda.

O LIBRETO E A REALIDADE

Obama precisava de ganhar a polémica desencadeada pelo seu decreto contra a Venezuela, para retomar as iniciativas de hegemonia mundial. Garantir esse domínio foi o objectivo inicial da primeira Cimeira (Miami-1994) e do posterior lançamento da ALCA (Quebec-2001). A derrocada deste projecto em Mar de La Plata (2005) determinou o isolamento do gigante nortenho no último conclave (Cartagena-2012). A criação de novas organizações sem a presença estadunidense ((UNASUR-2008 e CELAC-2011) acentuou este retrocesso e incentivou o reconhecimento de Cuba.

Depois de 53 anos, David derrotou Golias. O império não conseguiu vergar a revolução cubana, e Obama teve de libertar os cinco lutadores que mantinha presos. Raúl Castro inaugurou o regresso aos encontros presidenciais com uma categórica reclamação de imediata derrogação da ordem contra a Venezuela.

Todas as teorias que contrapuseram o «novo realismo diplomático» de Castro ao «vetusto radicalismo discursivo» de Maduro ignoraram a liderança concertada que ambos os governos assumiram na batalha contra o decreto ianque. Esta unanimidade foi acompanhada de fortes discursos de outros mandatários.

Nenhum dos Presidentes de direita (Colômbia, Peru e Paraguai) defendeu o ataque à Venezuela. Inclusive, os pequenos países do Caribe que Obama visitou antes da reunião rejeitaram o atropelo do Departamento de Estado dos EUA. O mesmo aconteceu com o Chile, a Costa Rica e o Uruguai que mantêm grandes distâncias em relação ao processo bolivariano.

A decepção dos funcionários norte-americanos foi enorme, e os porta-vozes de 26 ex-presidentes de direita só atinaram uma «compra de vontades» por parte de Maduro. Como é natural não apresentaram nenhuma prova desse tráfico de influência.

Ao Panamá chegaram todas as figuras do golpismo anti-chavista. Fizeram muito barulho mas tiveram pouco impacto sobre a Cimeira. Ficaram muito debilitados com o fracasso da sua última balbúrdia e não puderam responder com distúrbios à detenção dos conspiradores Leopoldo López e Antonio Ledezma.

Também os líderes da contra-revolução cubana chegaram em massa de Miami, agora mascarados de «representantes da sociedade civil». Com essa maquillage retomaram o seu projecto de restaurar o velho status da ilha como casino, prostíbulo e entreposto de narcotráfico.

A delegação dos gusanos [N. do T.: verme, nome que Fidel deu há muito aos contras de Miami] incluiu o próprio assassino de Che e ensaiou todo o tipo de provocações. Promoveram caçaroladas, gritarias frente às embaixadas, interrupções das conferências de imprensa e conflitos com os seguranças. Não conseguiram alterar o clima político da Cimeira.

Obama recorreu aos sorrisos para lidar com a oposição generalizada ao seu decreto. Optou pela discrição e não conseguiu impedir a ausência de uma declaração final do encontro. Um borrão pejado de critérios neoliberais – com matérias de saúde, alterações climáticas e transferências de tecnologia – acabou no arquivo.

Os grandes meios de comunicação omitiram estes dados. Viram apenas o que previamente tinham imaginado. Inverteram a realidade e apresentaram a derrota de Obama na Cimeira como se de um sucesso estadunidense se tratasse. Mantiveram a distorção informativa que caracteriza o seu trabalho e uma vez mais abandonaram qualquer resquício de profissionalismo jornalístico.

ATITUDES E ARGUMENTOS

O contraste dos projectos foi antecipado por um contraponto de atitudes. Obama desembarcou com um grande número de aviões e helicópteros no ar e automóveis blindados em terra. Esta demonstração não tinha qualquer proporção com as necessidades de segurança do mandatário. Serviu apenas para lembrar que o potencial destrutivo do império não é uma ficção de Hollywood.

Em contrapartida, Maduro dirigiu-se de imediato ao bairro popular de Chorrillos, em homenagem às vítimas da última invasão dos marines dos EUA (1989). Recordou o derrube de um ditador designado pelos próprios estadunidenses e ondeou a bandeira panamiana num bairro esquecido.

A mesma conduta adoptou Evo Morales durante a sua estadia. Proclamou que «estamos melhor sem a embaixada norte-americana» e refutou o mito de uma próxima «ajuda» norte-americana a Cuba. Destacou que o império devia indemnizar a ilha pelo acosso que lhe impôs durante meio século.

O questionamento da ordem executiva contra a Venezuela dominou a Cimeira. O próprio Obama desqualificou a apresentação desse país como uma «ameaça» e justificou o decreto como uma formalidade burocrática. Mas não conseguiu explicar por que razão mantém essa disposição.

A perigosidade da Venezuela é uma fantasia insustentável. O país não invadiu territórios alheios, não mantém guerras com os seus vizinhos e foi um activo promotor das negociações de paz da Colômbia. Contrariamente, os Estados Unidos fizeram bases militares no Peru, Paraguai, Colômbia e Antilhas, monitorizam os mares a partir do Comando Sul, em Miami, controlam os céus com radares de última geração, e apoiam o arsenal que os britânicos instalaram nas Malvinas.

Além disso, o Pentágono espia descaradamente os diplomatas, funcionários e presidentes da região, intercepta correios electrónicos de todas as pessoas, e supervisiona os servidores da internet no estrangeiro. A Venezuela não desestabilizou qualquer governo, mas o imperialismo é o principal artífice dos golpes parlamentares, judiciais e policiais dos últimos anos.

Os Estados Unidos não renunciaram às invasões. Também não se encontram «mais preocupados» com o Médio Oriente, a China e a Ucrânia do que com a América Latina. A ordem executiva contra a Venezuela é a primeira tentativa de escaladas de maior alcance.

Os funcionários estadunidenses justificam a sua agressão com denúncias de violações dos direitos humanos. Mas não apresentam provas de qualquer índole. Ditam lições de democracia ocultando os recentes relatórios de torturas feitas pela CIA, a continuação de Guantánamo e a vigência da pena de morte no seu próprio território.

Além disso, o Departamento de Estado evita qualquer comparação da Venezuela com as administrações de direita da região. Nenhuma acusação feita ao governo da Venezuela se compara aos assassínios nas Honduras, aos crimes no México ou às perseguições na Colômbia ou no Peru.

A delegação económica estadunidense tentou recriar no Panamá um pequeno Davos tropical. Propiciou a presença de multimilionários estrelas de Wall Street nos foros empresariais e apresentou o lema da Cimeira («Prosperidade com equidade») como se fosse uma realidade em curso. Também não faltaram os elogios às empresas transnacionais que esmifram a população.

Os peritos ianques exaltaram o capitalismo silenciando os sofrimentos que aquele sistema impõe a todos os despojados. Contrapuseram as desventuras dos governos «populistas» com os sucessos das administrações guiadas pelo mercado, sem falar da precarização laboral no Peru, do desastre das pensões no Chile ou da tragédia dos emigrantes da América Central.

Os neoliberais exibiram o Panamá como um modelo de sucesso. Salientaram as torres que brotam por toda a cidade, omitindo o seu financiamento com dinheiro do narcotráfico. Alardearam o crescimento do istmo, sem mencionar a segmentação social, o trabalho informal de uma população condenada a duros trabalhos na construção e nos serviços de hotelaria.

Todo o establishment exaltou o apelo de Obama a esquecer o passado e a falar do futuro. Os meios de comunicação puseram em contraste esse pragmatismo com as «lições de história» que ensaiaram os seus opositores. Desqualificaram a reivindicação de um Panamá na gesta de Bolivar que fez Maduro, e o legado de intervenções recordado por Raúl Castro.

Mas esse desprezo mediático pelo passado, naturalmente, só ficou colado à América Latina. Os escribas do Norte nunca estendem essa perspectiva à trajectória dos Estados Unidos. Jamais gozam com os Pais Fundadores ou com a guerra travada contra o hitlerismo. A sua hostilidade para com a história só aparece quando essa revisão ilustra a continuidade da opressão imperial.

OS LIMITES DE UMA CONTRA-OFENSIVA

Os Estados Unidos arremetem contra a Venezuela para controlar a maior reserva petrolífera do planeta. Aquela potência utiliza, actualmente, a sua provisão de crude obtido de xisto betuminoso para desestabilizar o processo bolivariano, acentuando a depreciação internacional do combustível.

Os Estados Unidos não toleram as alianças extra-regionais feitas por Chávez e Maduro. Também lhes custa tragar a vontade de resistir a uma confiscação petrolífera semelhante à que perpetraram no Iraque ou na Líbia.

O confronto em curso é apresentado frivolamente como um conflito entre Obama e Maduro devido a um «choque de vaidades». Acusam o presidente venezuelano de exagerar a disputa para distrair a população das suas necessidades imediatas.

Com esse tipo de balelas tentam mascarar o projecto estadunidense de dirigir os recursos naturais da América Latina. A apropriação da renda petrolífera venezuelana é o primeiro passo para uma recaptura generalizada de terras, águas e minerais do continente.

Obama desenvolve este plano com uma nova colecção de cenouras e cacetes. Por isso negoceia com Cuba sem abandonar a beligerância. Reabrirá a embaixada na ilha, mas coloca grandes exigências para levantar o bloqueio.

O presidente estadunidense fotografou-se com Raúl Castro, mas também reuniu com os gusanos de Miami. Complementou a sua retórica amigável com a protecção dos golpistas que adestra em Washington.

Esta política repete a estratégia de negociar com o Irão sem fechar as portas ao bombardeamento. A mesma linha de intimidação que Obama mantém com os lobbies de Israel e da Arábia Saudita estende-se aos ultra-direitistas cubano-americanos. A sua estratégia é avalizada por Hillary Clinton e questionada pelos candidatos republicanos à presidência.

Ambas as formações jogam no mesmo partido da plutocracia estadunidense, adaptando as suas políticas às necessidades daquele sistema. Mas, qualquer que seja o presidente que suceda a Obama, ele terá de lidar com as mesmas dificuldades para recuperar o terreno perdido no pátio traseiro.

A primeira potência não conseguiu reverter no Panamá o golpe sofrido em Mar del Plata e Cartagena. Desta vez não caiu a ALCA, mas a garantia da Aliança do Pacífico será inviável sem uma recomposição do poder geopolítico. A Organização dos Estados Americanos (OEA) perdeu a funcionalidade e a Cimeira não deu origem a nenhuma estrutura necessária para o império restaurar a sua supremacia.

Também a direita latino-americana não saiu airosamente da reunião presidencial. Actualmente, muitos conservadores ensaiam uma reivindicação com discursos sociais, compromissos de assistencialismo e perfis juvenis. Proclamam a dissolução das ideologias, despolitizam as campanhas eleitorais, e enfatizam a centralidade da gestão.

Esta estratégia convive com acções mais directas. Na Argentina levaram recentemente à promoção de um golpe judicial sob a bandeira de um procurador que esteve a trabalhar para Israel. No Brasil incentivam manifestações de rua para colocar a política externa do país em sintonia com a dos Estados Unidos. No México procuram perpetuar um estado de guerra social.

Mas nenhuma destas acções alterou a realidade legada pelas rebeliões sociais que alteraram as relações de força, que forçaram as concessões dos capitalistas e reavivaram as questões nacionais e democráticas. Este processo continua aberto e inclui um passo em frente na consciência popular, o que limita a contra-ofensiva da direita.

AS OBSTRUÇÕES INTERNAS

A Cimeira corroborou o significativo nível de autonomia política alcançado pela América Latina. Mas essa maior independência coexiste com a estagnação de todos os projectos de integração económica.

Enquanto se inauguram novas sedes de organismos regionais e se desencadeia uma grande retórica a favor da acção comum, as principais iniciativas de complementaridade económica adormecem. O anel energético, a infra-estrutura partilhada, a gestão conjunta das reservas, os sistemas cambiais coordenados e os fundos de estabilização monetária permanecem como simples propostas.

A perpetuação da inserção internacional da América Latina como fornecedora de matérias-primas não é da exclusiva responsabilidade dos governos de direita. Este mesmo esquema de especialização exportadora, a agricultura intensiva, a mineração a céu aberto e maquias industriais também se verificam em administrações de sinal oposto.

A assinatura de tratados de livre comércio também não é património exclusivo dos presidentes neoliberais. O governo do Equador negoceia um convénio do mesmo tipo com a Europa, e o Uruguai discute a implementação de tratados semelhantes.

Além disso, todos fazem individualmente acordos com a China que agravam a primarização. Aceitam compromissos de exportações básicas e importações de manufacturas que não incluem obrigações de investimento produtivo ou transferência de tecnologia. Esta postura preserva as velhas fracturas entre países que privilegiam os interesses das suas burguesias locais nas negociações externas.

Esta adaptação à ordem neoliberal global pode desembocar em traumáticas consequências se se confirmar uma alteração económica adversa ao panorama internacional. As matérias-primas já não aumentam, o crescimento travou e a valorização do dólar estimula a saída de capitais. Certos governos começam a implementar desvalorizações que antecipam agressões ao nível de vida popular.

Mais perigosa, no entanto, é a guinada económica feita por vários governos de centro-esquerda. No Brasil, já aceitaram a agenda imposta pela Bolsa, designaram ministros seleccionados por grandes empresas e preparam programas de ajuste fiscal desenhados pela banca.

Este curso de adaptação ao establishment desmoraliza a população e facilita a canalização do descontentamento para a direita. Em alguns países já se insinuam estas tendências, como resposta às frustrações geradas pelas vacilações do progressismo. Também se vislumbra uma tentação coerciva de presidentes que confundem as reivindicações populares com a desestabilização da direita.

O ponto crítico da América Latina, actualmente, não se situa na resistência aos Estados Unidos. O maior problema radica na estabilização de modelos capitalistas adversos às aspirações das maiorias populares.

A significativa soberania política alcançada pela América Latina nos últimos anos não é sustentável com orientações económicas regressivas. A experiência demonstra que as aspirações de autonomia decaem com a consolidação do poder burguês. Só um caminho de ruptura total com o neoliberalismo, o protagonismo popular, a radicalização política e o confronto com a classe capitalista pode pavimentar o caminho até à Segunda Independência.

ALEGRIA NA OUTRA CIMEIRA

Os grandes meios de comunicação registaram no Panamá a realização de uma importante Cimeira dos Povos. Nessa realidade confluíram movimentos sociais que, durante três dias, partilharam um intenso programa de debate anti-imperialista.

Na inauguração desse acontecimento foi muito evidente por que razão o Panamá não é Miami. Houve múltiplas exigências ao império para que peça desculpas pela invasão de 1989 e indemnize as vítimas. Nas mesas de trabalho analisaram-se pedidos de longa data, como o levantamento do bloqueio a Cuba, a devolução de Guantánamo, a independência de Porto Rico e o fim da ocupação inglesa das Malvinas.

O encontro reforçou a campanha mundial que reuniu milhões de assinaturas para exigir a derrogação do decreto contra a Venezuela. Em numerosas cidades do continente essa reclamação foi acompanhada de mobilizações e sublinhada a adesão de reconhecidos intelectuais.

A Cimeira dos Povos consolidou uma tradição de reuniões paralelas aos conclaves presidenciais. Diferentemente do encontro oficial, o evento popular foi coroado com uma importante declaração final. Nesse encerramento rebentou uma onda de entusiasmo quando se percebeu o triunfo alcançado contra o decreto de Obama.

Esse clima tornou-se o melhor barómetro para avaliar o que aconteceu no Panamá. Alcançou-se um êxito diplomático que avaliza as esperanças populares na América Latina.


* Professor de Economia na Universidade de Buenos Aires, membro de Economistas de Esquerda

** Título da responsabilidade de odiário.info

Este texto foi publicado em http://www.elciudadano.cl/2015/04/16/158748/retrato-de-las-americas-en-la-cumbre/

Tradução de José Paulo Gascão.

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