terça-feira, 28 de junho de 2016

O Brexit redefine a geo-política mundial

Porque os britânicos disseram não à Europa


por John Pilger
 
Cartoon de Brandan Reynolds. O voto maioritário dos britânicos a favor do abandono da União Europeia foi um acto de democracia pura. Milhões de pessoas comuns recusaram-se a serem ameaçadas, intimidadas e descartadas pelo desrespeito descarado dos seus supostos líderes à frente dos principais partidos, dos negócios, da oligarquia bancária e dos media.

Este foi, em grande parte, um voto dos irados e desmoralizados pela arrogância absoluta dos que defendiam a campanha da "permaneça" ("remain") e do despedaçar de uma vida civil socialmente justa na Grã-Bretanha. O último bastião das reformas históricas de 1945, o Serviço Nacional de Saúde, foi tão subvertido pela privataria apoiada pelo Tory e pelo Labour que agora tem de combater pela sua sobrevivência.

Uma advertência prévia surgiu quando o ministro das Finanças, George Osborne, encarnação tanto do antigo regime britânico como da máfia bancária na Europa, ameaçou cortar 30 mil milhões de libras dos serviços públicos se o povo votasse do modo errado. Foi chantagem numa escala chocante.

A imigração foi explorada na campanha com perfeito cinismo, não só por políticos populistas da direita como por políticos do Labour que se inspiraram na sua própria venerável tradicional de promover e alimentar o racismo, um sintoma de corrupção não na base e sim no topo. A razão porque milhões de refugiados fugiram do Médio Oriente – primeiro do Iraque, agora da Síria – está nas invasões e no caos imperial provocado pela Grã-Bretanha, Estados Unidos, França, União Europeia e NATO. Antes disso, houve a deliberada destruição da Jugoslávia. E antes ainda houve o roubo da Palestina e a imposição de Israel.

Os capacetes de cortiça podem ter desaparecido, mas o sangue nunca secou. Um desprezo desde o século XIX por países e povos, dependendo do seu grau de utilidade colonial, permanece como uma peça central da moderna "globalização", com o seu perverso socialismo para os ricos e capitalismo para os pobres: sua liberdade para o capital e negação de liberdade para o trabalho; seus políticos pérfidos e funcionários públicos politizados.

Tudo isto agora volta à Europa, enriquecendo os amigos de Tony Blair e empobrecendo e despojando milhões. Em 23 de Junho, os britânicos disseram basta.

Os propagandistas mais eficazes do "Ideal europeu" não foram os da extrema-direita, mas sim uma insuportável classe aristocrática para quem a Londres metopolitana é o Reino Unido. Seus membros principais vêem-se como liberais, esclarecidos, oradores cultos do espírito (zeitgeist) do século XXI, mesmo "brilhantes". O que realmente são é uma burguesia com gostos consumistas insaciáveis e instintos antigos quanto à sua própria superioridade. No seu jornal de empresa, o Guardian, eles olharam triunfantes, dia após dia, aqueles que consideravam a UE profundamente anti-democrático, uma fonte de injustiça social e de um extremismo virulento conhecido como "neoliberalismo".

O objectivo deste extremismo é instalar uma teocracia capitalista permanente para assegurar que dois terços da sociedade, com uma maioria dividida e endividada, sejam administrados por uma classe corporativa, com trabalhadores permanentemente pobres. Na Grã-Bretanha de hoje, 63 por cento das crianças pobres crescem em famílias onde um membro está na força de trabalho. Para eles, a armadilha fechou-se. Mais de 600 mil residentes na segunda cidade britânica, a Grande Manchester, estão, informa um estudo, "a experimentar os efeitos da pobreza extrema" e 1,6 milhão estão a deslizar para a penúria.

Pouco desta catástrofe social é reconhecida nos media controlados pela burguesia, nomeadamente os elitistas que dominam a BBC. Durante a campanha do referendo, quase nenhuma análise informativa foi permitida intrometer-se na histeria acerca de "abandonar a Europa", como se a Grã-Bretanha estivesse prestes a ser arrastada por correntes hostis para algum lugar a norte da Islândia.

Na manhã seguinte à votação, o repórter de rádio da BBC deu boas vindas a políticos no seu estúdio como se fossem velhos amigos. "Bem", disse ele para "Lorde" Peter Mandelson, o desgraçado arquitecto do blairismo, "porque este povo quis isto tão tristemente?" O "este povo" é a maioria dos britânicos.

O criminoso de guerra ricaço Tony Blair permanece um herói da classe "europeia" de Mandelson, embora poucos ousem dizê-lo nestes dias. O Guardian certa vez descreveu Blair como "místico" e tem sido fiel ao seu "projecto" de guerra de rapina. No dia seguinte à votação, o colunista Martin Kettle propôs uma solução brechtiana para o mau uso da democracia pelas massas. "Agora certamente podemos concordar em que referendos são maus para a Grã-Bretanha", dizia a manchete em cima do seu artigo de página inteira. O "nós" não foi explicado mas foi entendido – assim como "este povo" é entendido. "O referendo conferiu menos legitimidade à política, não mais", escreveu Kettle. "... o veredicto sobre referendos deveria ser implacável. Nunca mais".

A espécie de brutalidade de que Kettle sente saudade é encontrada na Grécia, um país agora vaporizado. Ali, eles tiveram um referendo e o resultado foi ignorado. Tal como o Labour Party na Grã-Bretanha, os líderes do governo Syriza em Atenas são os produtos de uma classe média educada, rica, altamente privilegiada, tratada na falsificação e traição política do pós-modernismo. O povo grego corajosamente utilizou o referendo para pedir ao seu governo "melhores condições" em relação a um status quo venal em Bruxelas que estava a esmagar a vida do seu país. Ele foi traído, assim como os britânicos teriam sido traídos.

Na sexta-feira, a BBC perguntou ao líder do Labour Party, Jeremy Corbyn, se ele prestaria homenagem de despedida a Cameron, seu camarada na campanha do "permanece". Corbyn repugnantemente louvou a "dignidade" de Cameron e chamou a atenção para o seu apoio ao casamento gay e as suas desculpas às famílias irlandesas enlutadas pelo Bloody Sunday . Ele nada disse acerca da tendência para a discórdia de Cameron, suas políticas de austeridade brutal, suas mentiras acerca de "proteger" o Serviço de Saúde. Nem tão pouco recordou pessoas que prepararam guerras no governo Cameron: o despacho de forças especiais britânicas para a Líbia e os tripulantes britânicos que faziam pontaria para bombas da Arábia Saudita e, acima de tudo, o aceno à terceira guerra mundial.

Logo da Operação Anaconda. Na semana da votação do referendo, nenhum político britânico e, que eu saiba, nenhum jornalista referiu-se ao discurso de Vladimir Putin em S. Petesburgo comemorativo do 75º aniversário da invasão da União Soviética pela Alemanha nazi em 22 de Junho de 1941. Foi a vitória soviética – a um custo de 27 milhões de vidas soviética e [enfrentando] a maior parte do conjunto das forças alemãs – que venceu a Segunda Guerra Mundial.

Putin comparou a actual acumulação frenética de tropas e material de guerra da NATO nas fronteiras ocidentais da Rússia à Operação Barbarossa do Terceiro Reich . Os exercícios da NATO na Polónia foram os maiores desde a invasão nazi; a Operação Anaconda simulou um ataque à Rússia, presumivelmente com armas nucleares. Na véspera do referendo, o colaboracionista (quisling) secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, advertiu os britânicos de que eles estariam a por "a paz e a segurança" em perigo se votassem pelo abandono da UE. Os milhões que o ignoraram, assim como ignoraram Cameron, Osborne, Corby, Obama e o homem que dirige o Banco da Inglaterra, podem ter dado uma bofetada a favor da paz e da democracia reais na Europa.
 

O original encontra-se em www.tuaeu.co.uk/why-the-british-said-no-to-europe/

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

domingo, 12 de junho de 2016

A ONU, a UE e a esquizofrenia Daesh

por
É suposto as organizações inter-governamentais juntarem-se aos esforços dos Estados-membros para atingir os resultados que eles, por si sós, não conseguiriam. Deveria poder-se concluir, pois, que a ONU e a UE coordenam a luta contra o Daesh (E.I.). Em vez disso, estas duas organizações metem grãos de areia nas engrenagens, aos actores no terreno, e mascaram os apoios estatais ao terrorismo internacional.
| Damasco (Síria)
JPEG - 35.1 kb
Jeffrey Feltman, o director dos Assuntos Políticos da ONU, e Federica Mogherini, a Alta-Representante da União para os Negócios Estrangeiros e política de Segurança. Estes altos-funcionários trabalham para a paz, ou mentem em proveito do imperialismo dos E.U. ? 
 
Se durante a Guerra Fria, as dotações para pesquisa em ciências sociais e políticas eram orientadas para os estudos do «totalitarismo» — quer dizer, para a assimilação do nazismo e do estalinismo —, eles foram reorientados para o «terrorismo», após os atentados de 11 de Setembro de 2001. De repente, milhares de peritos surgiram, pagos para justificar a posteriori a versão oficial dos atentados, as guerras no Afeganistão e contra o Iraque, e a proclamação do Patriot Act.

Treze anos mais tarde, o fenómeno repetiu-se por ocasião da proclamação do Califado pelo Daesh (E.I). Trata-se, agora, menos de lutar contra uma ameaça terrorista difusa que combater um Estado bem real, embora não reconhecido, e prevenir as transferências de armas, de dinheiro e de combatentes que ele gera.

Duas organizações inter-governamentais, a ONU e a União Europeia, concluíram um trabalho gigantesco para definir uma estratégia de «prevenção do extremismo violento», e lutar contra o Daesh (E.I.). A Assembleia-Geral das Nações Unidas irá examinar esses trabalhos a 30 de Junho e a 1 de Julho. Pode-se, evidentemente, temer que a «prevenção do extremismo violento» não seja nada mais que uma justificação para a repressão de toda a oposição.

Ao ler os documentos disponíveis — os (1)do Secretário-geral da ONU, (2) do Comité 1373 de luta anti-terrorista, (3) da Equipe de apoio analítico e vigilância das sanções, e (4) do Serviço de acção exterior da União Europeia —, é-se tomado por uma vertigem diante do que se assemelha não a um plano de batalha, mas, sim à elaboração de uma retórica politicamente correcta.

A ONU e a UE baseiam-se exclusivamente em fontes ocidentais, afastadas do terreno, e não mencionam nunca as informações transmitidas pelo Iraque, pela Síria e pela Rússia, aliás, sequer dão conta da sua própria existência. Ora, estas foram apresentadas ao Conselho de Segurança pelos embaixadores Mohamed Ali Alhakim, Bachar Ja’afari e Vitali Tchourkin. Elas podem ser consultadas à vontade.

A Síria, e em muito menor grau o Iraque, forneceram, dia a dia, informações sobre as transferências de dinheiro, armas e jiadistas, enquanto, por sua vez, a Rússia distribuiu cinco Relatórios temáticos sobre
- 1. o Comércio ilegal de hidrocarbonetos ;
- 2. o recrutamento de combatentes terroristas estrangeiros ;
- 3. o tráfico de antiguidades ;
- 4. os fornecimentos de armas e de munições ;
- 5. os componentes destinados ao fabrico de engenhos explosivos improvisados.

O conjunto destes documentos põe directamente em causa a Arábia Saudita, o Catar, e a Turquia. Estes três Estados –-aliados de Washington--- responderam a isso com negações gerais, sem nunca discutir a menor imputação, em particular

O Daesh (E.I.) funciona para os quatro objectivos da estratégia dos Estados Unidos, quer seja em relação à criação da guerra civil sunitas/xiitas no Iraque, depois o projecto de partição do Iraque em três partes federadas, o de corte da estrada ligando Irão ao Líbano, ou, ainda, o projecto de derrube da República Árabe Síria. Deste modo, podemos interrogar-nos : se o Daesh não existisse Washington iria inventá-lo?

Seria errado acreditar que a colocação de parte dos documentos acima citados seria consequência de um preconceito anti-iraquiano, anti-sírio e anti-russo. Com efeito, as fontes ocidentais, públicas e privadas, que abundam neste sentido são igualmente ignoradas. Por exemplo, os documentos desclassificados da U.S. Defense Intelligence Agency (DIA, ou Agência de Inteligência da Defesa- ndT) ou os artigos da Jane’s, revista fetiche dos oficiais da OTAN. Não, a ONU e a UE abordam a questão do Daesh (EI) com um a priori simples e claro : este Estado teria surgido de maneira espontânea, sem beneficiar de nenhuma ajuda.

A cegueira das Nações Unidas é tal que o seu Secretário-geral, Ban Ki-moon, atribuí à Coligação Internacional, conduzida por Washington, as vitórias obtidas pelo sacrifício dos exércitos Iraquiano e árabe da Síria, da Resistência libanesa, assim como pelo envolvimento massivo do exército Russo.

O «resultado» de quinze anos de «guerra contra o terror», asseguram-nos, seria ter morto mais de 1 milhão e meio de civis por 65 a 90 000 presumíveis terroristas, e ter passado de um ataque terrorista difuso (Al-Qaida) directamente para um Estado terrorista (Daesh)! Depois de nos terem explicado que uma quinzena de Estados-membros da ONU «faliram»(Failled States), apesar de anos de ajuda internacional, tentam levar-nos a crer que, em alguns meses, um grupo de combatentes incultos conseguiu, sozinho, criar um Estado e ameaçar a Paz mundial.

A Al-Qaida passou, subtilmente, do estatuto de «ameaça» para o de «aliado», conforme o caso. Pôde financiar o AKP na Turquia, ajudar a OTAN a derrubar Muammar el-Qaddafi, na Líbia, e a fazer «bom trabalho» na Síria, ao mesmo tempo que permanecia na lista Onusina de organizações terroristas. Ninguém se deu ao trabalho de explicar esta evolução e esta contradição. Pouco importa, uma vez que o estatuto de «inimigo» é, agora, novamente devolvido ao Daesh.

No decurso dos últimos quinze anos, temos visto o campo Ocidental desenvolver a sua teoria do 11-de- Setembro e da ameaça da Al-Qaida. Após a publicação da minha crítica desta história da carochinha a dormir em pé, e apesar dos atentados que se multiplicaram, vimos as opiniões públicas duvidar da sinceridade dos seus governos, depois afastarem-se, lentamente, das suas declarações oficiais ao ponto de, actualmente, não acreditarem mais nelas. Isto, muito embora, alguns chefes de Estado — em Cuba, no Irão, na Venezuela — terem publicamente declarado não serem trouxas.

Sabendo que desta vez o ponto de vista contestatário é defendido, desde o início, por vários Estados, incluindo dois membros permanentes do Conselho de Segurança — a Rússia e a China —, iremos nós passar os próximos quinze anos numa idêntica esquizofrenia a propósito da «ameaça Daesh» ?


Tradução
Alva

aqui:http://www.voltairenet.org/article192163.html

Publicação em destaque

Marionetas russas

por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...