segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A tática sem a estratégia é o ruído antes da derrota

 

The Saker [*]

Estátua de Sun Tzu.

O título deste artigo é uma citação do famoso general chinês, estratega, filósofo e escritor Sun Tzu, que viveu há 2500 anos. E embora seja verdade que a guerra mudou drasticamente nos últimos milénios (por exemplo, a arte operacional foi acrescentada como um nível intermediário entre tática e estratégia), a lógica fundamental de Sun Tzu ainda se aplica. Para simplificar excessivamente esta questão, poder-se-ia dizer que as táticas são o meio para um fim que tem de ser definido e a definição desse objetivo final é a estratégia. Mais uma vez, isto é ridiculamente simplista, mas para os nossos propósitos isso é suficientemente bom.

O acima exposto é altamente pertinente para a situação na Ucrânia. Mas primeiro, um lembrete crucial: os militares ucranianos foram praticamente destruídos no primeiro mês da guerra. Tanto Andrei Martyanov como eu próprio escrevemos sobre isto muitas vezes, mas se quiserem ouvir isso de outra fonte, recomendo este artigo do Big Serge no Substack (um bom sítio web que recomendo a todos). Ou ouçam os vídeos do Macgregor. E há muito mais por aí ( Moon of Alabama é outro bom).

Durante aquele primeiro mês de guerra, o Ocidente estava tão ocupado a tentar apresentar a incursão russa em direção a Gostmel simultaneamente como:

  • Uma grande derrota russa e
  • Um grande massacre de civis russos

que os meios de comunicação ocidentais estavam a concentrar-se nesse insensatez, enquanto se perdia completamente nesta guerra de propaganda a destruição das forças armadas Ukronazis.

Os Ukronazis, contudo, compreenderam o que estava a acontecer e concordaram com as negociações. Como todos sabemos, os anglo-sionistas enviaram Bojo a Kiev para travar o que parecia ser um fim iminente da guerra.

De qualquer modo, vamos olhar para os objetivos de cada lado na fase inicial da guerra:

  • Os Ukronazis estavam prontos para atacar o Donbass com a esperança de repetir o que a NATO fez às "áreas de proteção" sérvias desarmadas nas Krajinas (operação Tempestade).
  • Os russos impediram esse ataque, mas não atacando diretamente a força Ukronazi no Donbass e sim, basicamente, destruindo as forças armadas Ukronazis por toda a Ucrânia.

Por qualquer padrão de senso comum, a guerra deveria ter terminado em Março. Porquê? Porque, mais uma vez, todo o exército Ukronazi foi basicamente destruído e desorganizado. Então os "génios" do Ocidente encontraram uma solução muito simples:

  • Enviar todo o equipamento da antiga Organização do Tratado de Varsóvia [OTV] (não, nunca foi chamado de "pacto") de todos os antigos países da OTV para a Ucrânia.
  • Enviar mais soldados ucranianos para as linhas de frente

Inicialmente, essa abordagem parecia muito promissora, mas não durou muito tempo.

Essa segunda iteração do Ukronazi também foi destruída pela Rússia, embora a um ritmo muito mais lento porque os russos se viram confrontados com alguns problemas muito espinhosos:

  • Muito do hardware da ex-OTV era muito eficaz, não só porque o material soviético em geral é melhor como porque grande parte dele fora modernizado.
  • Os Ukronazis estavam mais do que dispostos a incorrer em grandes perdas se isso pudesse atrasar os avanços russos.
  • Os russos simplesmente não dispunham do tipo de mão-de-obra necessária nem para a defesa estática nem mesmo para controlar toda a linha de contacto.
  • E uma vez que os russos escolheram uma economia de força tipo manobra/mobilidade de defesa (que era a sua única opção de qualquer forma, uma vez que os Ukronazis superavam largamente os russos), não podiam manter-se firmes e isso, por sua vez, significava que os ucranianos locais não podiam contar com a permanência dos russos e a sua protecção.
  • Todas as capacidades C4ISR da NATO foram gradualmente colocadas à disposição dos Ukronazis, o que complicou seriamente as operações russas, ao mesmo tempo que ajudava grandemente a artilharia e a força aérea ucraniana (foram também entregues centenas de aviões ex-OTV).
  • As forças ukronazis no Donbass estavam *muito* seriamente entrincheiradas (tiveram oito anos e uma quantidade infinita de dinheiro ocidental para construir defesas!), e os russos não estavam dispostos a sacrificar os seus soldados em sangrentos ataques frontais. A utilização de armamento pesado também não era uma opção, porque os Ukronazis estavam escondidos dentro das cidades e vilas e, assim, arrasar as defesas Ukronazi teria significado matar milhares de civis.

No entanto, apesar de tudo, a Rússia conseguiu destruir a maior parte do material da ex-OTV e forçar os Ukronazis a trocar "corpos por balas de artilharia" – uma tática louca, imoral e fútil que simplesmente não podia ser sustentável. Como resultado, os números ucranianos da KIA/MIA dispararam ainda mais, mas ninguém no Ocidente se importou minimamente.

O que é importante aqui é que não só os Ukronazis perderam muito hardware e soldados, como perderam muitos dos seus *melhores* soldados (brigadas inteiras, e os melhores, perderam-se em Bakhmut!). Isto significa que enquanto a NATO podia dizer a Kiev para mobilizar cada vez mais homens para enviar para a frente, a maioria dos que foram mobilizados e treinados apressadamente não conseguiram realmente compensar as enormes perdas dos Ukronazis. Treinar soldados ucranianos na Ucrânia era perigoso (os ataques de mísseis russos significavam que em nenhum lugar da Ucrânia existia um local seguro para efetuar o treino), e treinar os ucranianos no estrangeiro era mais seguro, mas também exigia um esforço muito maior para uma força muito mais pequena.

E, inevitavelmente, o hardware da ex-OTV entregue ao regime de Kiev em números ENORMES foi também gradualmente destruído nos ataques russos.

Além disso, a geografia é uma merda e, no nosso caso, todo o Donbass é um enorme caldeirão, aberto apenas no lado ocidental, o que torna bastante complicado planear qualquer coisa a mais do que pequenos ataques, locais. Para os russos, porém, isto significa que podem atacar a partir de qualquer um destes eixos: do Norte, do Leste e do Sul ou mesmo de qualquer combinação, portanto. Neste momento, na sequência da mobilização parcial, a Rússia já tem os números necessários para escolher qualquer opção que queira.

Muito em breve, o Ocidente ficou sem armas da ex-OTV.

O Ocidente respondeu enviando onda após onda de "voluntários", PMCs, até mesmo "desertores" (como este US Navy Seal). Escritórios de recrutamento foram organizados às pressas em todo o mundo e o lado russo começou a ouvir cada vez mais transmissões de rádio não em russo ou ucraniano, mas em polaco e inglês (e até em árabe!).

O problema agora é o hardware.

Primeiro, a NATO não pode substituir "um por um" ex-OTV MBTs [Main Battle Tanks], IFV/APCs, SAM, etc. Não só o hardware da NATO é caro como simplesmente não há suficiente material em armazém para compensar totalmente as enormes perdas infligidas pelos russos.

Em segundo lugar, o hardware da OTV não só era familiar aos ucranianos, como era muito mais fácil assegurar o tipo de fluxos de fornecimento/manutenção necessários para o seu funcionamento do que no caso do hardware da NATO (que na sua maior parte é inferior ao material ex-OTV, com algumas exceções).

Em terceiro lugar, a maior parte do hardware da NATO teve um desempenho terrivelmente mau. Nenhuma das Wunderwaffen prometidas fez qualquer diferença real, pelo menos em termos militares. Em termos de civis assassinados, os russos relataram agora que desde a entrega de munições de longo alcance às forças da NATO na Ucrânia (porque é isso que são), o número de vítimas civis assassinadas pela NATO aumentou num factor de quatro!

Mas, é claro, ninguém no Ocidente se preocupa com isso.

Inicialmente, o Ocidente respondeu enviando todo o seu próprio equipamento excedentário, stocks antigos, especialmente contra uma promessa dos EUA de compensar estes sistemas enviados para a Ucrânia com sistemas muito mais recentes. Muito rapidamente esses stocks acabaram também por serem mastigados pelo moedor de carne russo.

Por outras palavras, os russos também destruíram esta 3ª iteração dos militares "ucranianos" (na realidade, militares da NATO).

O que nos conduz à situação atual.

O Império enfrenta agora um dilema simples e extremamente perigoso: as forças da NATO na Ucrânia estão a ficar sem equipamento e sem pessoal.

Se o Ocidente enviar, digamos, uma companhia ou mesmo um batalhão de MBTs para Lvov e várias baterias Patriot para proteger Kiev, isso não fará qualquer diferença militar no terreno. Sim, a quantidade tem uma dimensão qualitativa e entregas tão limitadas de sistemas de armas e pessoal podem fazer grande "barulho" (no sentido de Sun Tzu), mas não fazem diferença.

E se o Ocidente enviar uma força suficientemente grande para fazer a diferença, isso resultaria inevitavelmente numa grande guerra continental que a NATO não pode vencer.

Tudo isto suscita a questão: qual é o verdadeiro objetivo do Ocidente na Ucrânia?

Deixem-me sugerir alguns:

  • 1. Impedir uma derrota Ukronazi/NATO
  • 2. Tornar a guerra o mais dispendiosa possível para a Rússia
  • 3. Salvar a face

Existem problemas com todos estes três objetivos, sendo o principal o facto de nenhum deles ser qualificado como "estratégia" (são demasiado vagos para começar). O segundo problema é que o Ocidente não tem os meios para atingir nenhum destes objetivos. E o terceiro é que, ao manter objetivos tão irrealistas, a derrota inevitável e a subsequente perda de prestígio para todo o Ocidente irá piorar ainda mais a situação.

Então o que é que os EUA/NATO podem trazer para a mesa?

  • Um C4ISR de classe mundial (muito útil, mas também potencialmente muito vulnerável)
  • Uma força submarina de classe mundial (útil apenas para disparar mísseis de cruzeiro)
  • Uma grande quantidade de mísseis de cruzeiro subsónicos e, na sua maioria, desatualizados
  • Uma força terrestre relativamente pequena (sem defesas aéreas reais)
  • Forças aéreas que não têm experiência de operação num ambiente *muito* perigoso.
  • Uma tríade nuclear muito robusta

Como sabemos por Sun Tzu que "a tática sem a estratégia é o ruído antes da derrota", podemos ver imediatamente que nenhuma destas capacidades tem qualquer hipótese de evitar uma derrota da NATO. Por outras palavras, os comandantes dos EUA em breve terão de enfrentar uma escolha ainda pior: derrota ou guerra nuclear.

Considero que o Ocidente não tem atualmente nem táticas (reais, significativas) nem qualquer estratégia.

Nenhuma.

Tudo o que vejo é pensamento mágico, delírios narcisistas, uma mentalidade moldada por séculos de relativa impunidade e um ódio abrangente, cego e odioso da Rússia e de tudo o que é russo.

Dificilmente os ingredientes para uma vitória (sob qualquer definição) contra os mais poderosos militares de guerra continental do planeta.

24/Janeiro/2023

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

A retirada da Rússia de Kherson: é tática ou estratégica?

 

Dmitry Orlov [*]

Cartaz soviético da década de 1920.

Nos últimos dois anos, ocorreu uma transformação incrível:   uma massa gigantesca e fervilhante de virologistas freelancers baseados na Internet transformou-se espontaneamente em uma massa igualmente fervilhante de especialistas em geopolítica. E agora, com igual rapidez, esses geopolíticos se tornaram especialistas militares. Alguns desses especialistas militares recém-nascidos estão agora opinando que a decisão da Rússia, anunciada há dois dias, de retirar suas tropas de um pedaço de terra na margem direita do Dniepr, onde fica a cidade de Kherson, é uma derrota estratégica. É estratégico porque a estratégia da Rússia em relação a essa região é — o quê? E é uma derrota porque uma retirada é o oposto de uma vitória, que, no contexto da operação especial da Rússia na antiga Ucrânia, seria – o quê? Eles não sabem (são recém-nascidos), mas “derrota estratégica” com certeza parece importante e tem como objetivo nos convencer de que esses virologistas, quero dizer especialistas militares, definitivamente sabem do que estão falando. E mesmo que não, apenas jogue um pouco de Deep State, alguns Bilderbergers, um Schwab ou dois, tempere, misture e terá uma bela salada de palavras.

Se preferir algo mais robusto para afundar os dentes, aqui estão alguns antecedentes. Kherson é uma região russa ao norte da Crimeia. Faz parte da ponte de terra que corre ao longo da costa do Mar de Azov e liga a Crimeia ao resto da Rússia. Também liga a Crimeia ao poderoso rio Dniepr através de um canal que fornece água para irrigação e permite que os agricultores da Crimeia cultivem muito arroz (entre outras coisas). E depois há a cidade de Kherson, que é para Kherson o que Kansas City é para Kansas, com a diferença de que enquanto Kansas City atravessa o rio Missouri, Kherson City está do outro lado do Dniepr, separada do resto de Kherson. Basicamente, Kherson City fica do lado errado do rio (que, neste caso, também fica do lado direito, se você estiver indo na direção de seu fluxo).

Áreas inundáveis a jusante da barragem de Khakovskaya.

O Dniepr é realmente poderoso. Ele atravessa Kiev e, em seguida, faz em um grande arco para o Mar Negro, formando uma fronteira natural que é difícil de atravessar e fácil de defender. Os soviéticos cobriram-no com uma dúzia de pontes e barragens e construíram centrais hidroelétricas que ajudaram a transformar a Ucrânia numa potência económica – por um tempo. Mas esse tempo acabou-se definitivamente e a atual safra de nacionalistas ucranianos chama esse período de “ocupação soviética” e está empenhada a destruir tudo o que é soviético, sejam estátuas de Lenine nas praças da cidade ou as pontes e barragens, que eles bombardearam incansavelmente. Até agora, os danos nas barragens foram em grande parte cosméticos, mas um dia desses eles poderiam ter êxito em derrubar uma delas, e nesse caso o espelho de água inundaria Kherson City e a área circundante, tornando-a inabitável por muito tempo.

E assim os russos decidiram evacuar a cidade de Kherson e as áreas circundantes. Putin emitiu uma ordem direta para evacuar quem quisesse sair. Essas pessoas foram transportadas para a Crimeia, juntamente com seus filhos, animais de estimação e parentes idosos, em ambulâncias, se necessário, com alojamento e alimentação, tratamento médico conforme necessário, depois receberam vales de moradia e cartões de dinheiro com algum saldo para sustentá-los, até encontrarem empregos e serem enviados para alguma região russa onde os empregos são abundantes. Como Kherson agora faz parte da Rússia, todos eles são automaticamente cidadãos russos dotados de todos os direitos e privilégios inalienáveis ​​que lhes são inerentes, tornando-os, pelos padrões ucranianos contemporâneos, embaraçosamente ricos. Por outro lado, o que isso significa para aqueles que recusaram a oferta de evacuação e decidiram ficar em uma cidade completamente delapidada, parcialmente destruída, implacavelmente bombardeada, completamente minada e semi-abandonada que será afogada quando a antiga barragem romper? Embaraçosamente estúpido, eu acho… Do ponto de vista russo, a evacuação foi essencialmente uma repatriação daqueles khersonianos que se consideram russos; quanto ao resto, qual é aquela palavra desagradável que Victoria Nuland gosta de usar?[NT]

Agora vamos olhar para Kherson City do ponto de vista da logística. O inverno está a chegar; as pontes estão destruídas e o Dniepr congela, mas isso é muito ao sul para os padrões russos e, portanto, não congela de maneira rápida ou confiável. Durante grande parte do inverno, estará fechado à navegação, mas o gelo será fino demais para transportar caminhões e tanques pesados. Além disso, não há aeroportos. Você não precisa ser um especialista militar (nem um virologista talentoso) para entender que evacuar e sair de Kherson era a única opção viável. Sim, é uma retirada, e algumas pessoas acreditam que uma retirada de alguma forma é sempre uma coisa ruim. A retirada de Kutuzov de Moscou em 1812 foi uma coisa ruim? Certamente era – para Napoleão! E então, em 1942, houve uma retirada através do Volga em Stalingrado. Quão bem isso funcionou – para Hitler?

Assim, Kherson City está do lado errado do rio, impossível de reabastecer, completamente despovoada, com infraestrutura em ruínas por três décadas de corrupção, roubo e negligência ucranianas, em metade destruída por bombardeios ucranianos implacáveis ​​nos últimos meses, e pode potencialmente ser inundada quando a barragem se romper. Por outro lado, os imóveis lá têm preços bastante razoáveis ​​no momento e ainda são território russo – parte da região de Kherson, que foi aceita na Federação Russa em 04 de outubro de 2022, com base nos resultados de um referendo público. De acordo com a constituição russa, nenhuma parte do território russo pode ser vendida, alienada ou negociada e, assim, as hostilidades continuarão até que este território esteja novamente sob controle russo e a bandeira russa esteja novamente hasteada sobre o que resta da cidade de Kherson.

E se este pedaço de terra em particular, no lado errado do Dniepr é território russo, então o que dizer do resto? Que tal uma bela faixa de terras agrícolas despovoadas e desmilitarizadas com algumas centenas de quilómetros de largura ao longo da margem errada do Dniepr, patrulhada por aviões drones e periodicamente lavrada, plantada e colhida por máquinas agrícolas robóticas? Isso parece um plano perfeitamente viável; tudo o que resta é que os orgulhosos proprietários do que resta da Ucrânia (que estão em Washington) percebam que esta é a melhor oferta que eles vão receber. Os russos são sempre bastante razoáveis ​​no início, depois ficam progressivamente menos e sua oferta final geralmente não é nenhuma oferta – apenas a morte.

Agora, vamos supor que os washingtonianos não vão rolar ansiosamente, deixar Putin coçar suas barrigas e depois urinar em si mesmos como cachorrinhos alegres. Afinal, a Ucrânia é terra americana! Eles compraram esta terra de alguns oligarcas ucranianos, ou ganharam jogando poquer com eles, ou simplesmente a tomaram porque queriam… Vamos supor que, em vez disso, eles imprimam enormes maços de dólares e os deem aos ucranianos, que então se sentarão lá e atirarão de mau-humor esses maços de dólares na direção dos russos, que estão confortavelmente entrincheirados no lado direito (quer dizer, esquerdo) do Dniepr, desfrutando das confortáveis ​​luvas de lã que milhões de avós em toda a Rússia estão tricotando para eles. Então, como a Rússia pode estabelecer essa bela e ampla faixa de terra? Eu não sou virologista e nunca poderia distinguir o RNA mensageiro do tipo normal, mas com certeza posso identificar uma proteína de pico (tem picos, uh!) e também posso ler mapas. E olhando para um mapa, posso ver claramente que a maneira mais rápida e direta de a Rússia fazer isso é lançar um ataque da Bielorrússia através de Kiev e descer até Odessa, no Mar Negro. Com a costa do Mar Negro já bloqueada pela marinha russa, as rotas de reabastecimento para as forças ucranianas/NATO a leste dessa linha seriam cortadas e a ação militar no território da antiga Ucrânia seria encerrada pouco depois.

O que está impedindo esse plano é a população: ainda restam alguns milhões de pessoas nessas terras, e quem você acha que deveria alimentá-las? Os russos? Esqueça! Essas pessoas tiveram a possibilidade de se declararem russos e se juntarem aos russos na luta contra os nazistas ucranianos (que sempre foram poucos, mas, devido ao generoso apoio ocidental, bastante influentes). Mas eles desperdiçaram essa oportunidade, e agora precisam ser persuadidos a fazer as malas e se juntar à União Europeia. A maneira mais fácil de fazer isso é apresentar-lhes a perspectiva de um inverno longo e frio sem eletricidade, calor, água corrente, comida nas lojas ou dinheiro. (A situação pode em breve ser a mesma em grande parte da própria União Europeia, mas eles merecem uma oportunidade de descobrirem isso por si mesmos.) Isso é exatamente o que a Rússia tem feito, já tendo eliminado 40% da capacidade de geração de eletricidade da Ucrânia enquanto infligia muitos outros danos à infraestrutura, principalmente usando foguetes lançados de navios e aeronaves, e os novos e sofisticados ciclomotores voadores chamados Geranium 2 (um drone suicida movido por um motor de dois tempos barato fabricado na China).

Até agora, tudo isso tem sido sobre táticas; mas e a estratégia? Bem, estrategicamente, este é um sinal para os EUA/NATO, cujos representantes e mercenários a Rússia está atualmente a combater na Ucrânia. (Graças à dissuasão nuclear da Rússia, as guerras por procuração são tudo o que eles podem arriscar.) O que a Rússia está sinalizando para eles, para seu próprio povo e para o resto do mundo, é que esta operação militar especial é um compromisso aberto sem prazo definido, mas com um objetivo definido: garantir a segurança da Rússia. A Rússia pode mantê-la literalmente para sempre. Além disso, isso provavelmente é bom para o seguinte: os povos estão a tornar-se mais unidos, a economia está se desdolarizando, o rublo está mais forte do que esteve em 22 anos, a influência cultural ocidental está sendo expurgada, os inimigos internos estão sendo eliminados e a máquina militar russa está recebendo um ajuste muito necessário. Enquanto isso, o resto do mundo pode divertir-se pensando no facto de que o Ocidente coletivo está a ir embora. A Rússia tende a marcar suas maiores vitórias no auge do inverno. Sua vitória pode vir neste inverno, ou no próximo, ou no seguinte…

Quanto a mim, adoro o inverno! Mal posso esperar para ir esquiar e patinar no gelo. Acabei de colocar pneus cravejados no meu furgão militar Bukhanka para prepará-lo para as aventuras de inverno. Talvez eu até faça o tradicional mergulho num buraco de gelo no dia 06 de janeiro (Epifania). Este inverno deve ser bom.

11/Novembro/2022

[NT] “Vicky” Nuland tornou-se famosa quando uma chamada telefónica sua foi interceptada e divulgada na internet. Ela disse ao então embaixador gringo na Ucrânia: “Foda-se a UE…”. Ouçam-na aqui.

Ver também:
  • Russia’s Kherson withdrawal is tactical, M. K. Bhadrakumar
  • [*] Escritor.

    O original encontra-se em boosty.to/cluborlov/posts/ddbdccb7-2757-401b-9683-b63e820fe0d8?from=email&from_type=new_post e a tradução em sakerlatam.org/a-retirada-da-russia-de-kherson-e-tatico-ou-estrategico/

    Este artigo encontra-se em resistir.info


    O fim da civilização ocidental (2)

     por 

    Michael Hudson [*]

    'Destiny of Civilization', o livro mais recente de Michael Hudson.

    Estará a civilização ocidental num longo desvio do caminho seguido pela antiguidade?

    O que é mais importante na polarização económica de Roma, que resultou da dinâmica de dívida produtora de juros para as mãos gananciosas da sua classe credora, é quão radicalmente o seu sistema legal oligárquico pró-credor diferia das leis de sociedades anteriores que controlavam os credores e a proliferação da dívida. A ascensão de uma oligarquia credora que usou a sua riqueza para monopolizar a terra e controlar o governo e os tribunais (sem hesitar no uso da força e assassinatos políticos contra possíveis reformadores) foi impedida durante milhares de anos em todo o Próximo Oriente e outro países em terras asiáticas. Mas a periferia do mar Egeu e do Mediterrâneo carecia dos freios e contrapesos económicos que haviam proporcionado resiliência noutras partes do Próximo Oriente. O que distinguiu o Ocidente desde o início foi a falta de um governo forte o suficiente para conter o surgimento e a dominação de uma oligarquia credora.

    Todas as economias antigas operavam a crédito, acumulando dívidas agrícolas durante o ano agrícola. Guerras, secas ou inundações, doenças e outras perturbações muitas vezes impediram o pagamento de dívidas. Mas os governantes do Próximo Oriente cancelavam as dívidas nessas condições. Isso evitou que seus cidadãos-soldados e trabalhadores do campo perdessem as suas terras de auto-sustento para os credores, que eram reconhecidos pelo palácio como um poder rival em potencial. Em meados do primeiro milénio AC, a servidão pela dívida havia-se reduzido a um fenómeno apenas marginal na Babilónia, Pérsia e outros reinos do Próximo Oriente. Mas a Grécia e Roma estavam no meio do milénio com revoltas populares exigindo o cancelamento das dívidas, libertarem-se da servidão por dívidas e da perda de terras auto-sustento.

    Foram apenas os reis romanos e os tiranos gregos que, por algum tempo, conseguiram proteger seus súbditos da servidão por dívidas. Mas eles acabaram perdendo para as oligarquias credoras dos senhores da guerra. A lição da História é, portanto, que um forte poder regulador do governo é necessário para impedir que as oligarquias surjam e usem as reivindicações dos credores e a apropriação de terras para transformar os cidadãos em devedores, arrendatários, clientes e, finalmente, servos.

    A ascensão do controle dos credores sobre os governos modernos

    Palácios e templos em todo o mundo antigo eram credores. Somente no Ocidente surgiu uma classe de credores privados. Um milénio após a queda de Roma, uma nova classe bancária obrigou os reinos medievais a se endividarem. Famílias bancárias internacionais usaram o seu poder de credores para obter o controlo de monopólios públicos e recursos naturais, assim como os credores conquistaram o controlo de terras individuais na antiguidade.

    A Primeira Guerra Mundial viu as economias ocidentais atingirem uma crise sem precedentes como resultado de dívidas entre aliados e reparações alemãs. O comércio quebrou e as economias ocidentais caíram em depressão. O que os tirou dessa situação foi a Segunda Guerra Mundial, e desta vez nenhuma reparação foi imposta após o fim da guerra. No lugar das dívidas de guerra, a Inglaterra simplesmente foi obrigada a abrir sua Zona da Libra Esterlina aos exportadores dos EUA e abster-se de fazer reviver os seus mercados industriais desvalorizando a libra, sob os termos do Lend-Lease e do British Loan de 1946.

    O Ocidente emergiu da Segunda Guerra Mundial relativamente livre de dívidas privadas – e completamente sob o domínio dos EUA. Mas desde 1945 o volume da dívida expandiu-se exponencialmente, atingindo proporções de crise em 2008, quando a bolha das hipotecas de alto risco, a fraude bancária maciça e a pirâmide da dívida financeira explodiram, sobrecarregando os EUA, bem como as economias da Europa e do Sul Global. A Reserva Federal dos EUA produziu 8 milhões de milhões de dólares para salvar as ações da elite financeira, títulos e hipotecas imobiliárias, em vez de resgatar as vítimas de hipotecas lixo e países estrangeiros super-endividados. O Banco Central Europeu fez a mesma coisa para evitar que os europeus mais ricos perdessem o valor de mercado da sua riqueza financeira.

    Mas era tarde demais para salvar as economias dos EUA e da Europa. O longo acumular de dívidas pós-1945 chegou ao fim. A economia dos EUA foi desindustrializada, as suas infraestruturas entraram em colapso e a sua população está tão endividada que resta pouco rendimento disponível para sustentar os padrões de vida. Assim como ocorreu com o Império de Roma, a resposta americana é tentar manter a prosperidade da sua própria elite financeira explorando países estrangeiros. Esse é o objetivo da atual diplomacia da Nova Guerra Fria. Envolve extrair tributo económico empurrando as economias estrangeiras ainda mais para a dívida em dólares, a ser paga impondo depressão e austeridade.

    Esta subjugação é descrita pelos economistas tradicionais como uma lei da natureza e, portanto, como uma forma inevitável de equilíbrio, na qual a economia de cada nação recebe “aquilo que vale". Os principais modelos económicos atuais são baseados na suposição irreal de que todas as dívidas podem ser pagas, sem definir a orientação dos rendimentos e da riqueza. Todos os problemas económicos são considerados resolvidos pela “magia do mercado”, sem necessidade de intervenção da autoridade cívica. A regulamentação governamental é considerada ineficiente e ineficaz e, portanto, desnecessária. Isso deixa credores, compradores de terras e propriedades e privatizadores com liberdade para privar os outros da sua liberdade. Isto é descrito como o destino final da globalização de hoje e da própria História.

    O Fim da História? Ou apenas da financeirização e privatização do Ocidente?

    A pretensão neoliberal é que privatizar o domínio público e deixar o setor financeiro assumir o planeamento económico e social nos países-alvo trará prosperidade mutuamente benéfica. Isto deveria tornar voluntária a submissão de todos os países à ordem mundial centrada nos EUA. Mas o efeito real da política neoliberal foi controlar as economias do Sul Global e sujeitá-las à austeridade pelo endividamento. O neoliberalismo americano afirma que a privatização, a financeirização e a mudança do planeamento económico do governo para Wall Street e outros centros financeiros é o resultado de uma vitória darwiniana alcançando tal perfeição que é “o fim da História”.

    É como se o resto do mundo não tivesse alternativa a não ser aceitar o controlo dos EUA sobre o sistema financeiro global (isto é, neocolonial), comércio e organização social. E só para ter certeza, a diplomacia dos EUA procura apoiar seu controlo financeiro e diplomático pela força militar. A ironia é que a própria diplomacia dos EUA ajudou a acelerar uma resposta internacional ao neoliberalismo ao unir governos fortes o suficiente para seguir a longa tendência da História com governos capazes de impedir que dinâmicas oligárquicas corrosivas impeçam o progresso da civilização.

    O século XXI começou com os neoliberais americanos imaginando que a financeirização e privatização alavancadas pela dívida coroariam a longa ascensão da História humana como o legado da Grécia e Roma clássicas. Na visão neoliberal da História antiga ecoa a das oligarquias da antiguidade, denegrindo os reis de Roma e os reformadores-tiranos da Grécia por ameaçarem com uma intervenção pública muito forte, quando visavam manter os cidadãos livres da servidão por dívidas e garantir a posse da terra para o auto-sustento.

    O que é visto como o ponto de partida decisivo é a “segurança dos contratos” da oligarquia, dando aos credores o direito de expropriar os devedores. Isto, de facto, permaneceu uma característica definidora dos sistemas jurídicos ocidentais nos últimos dois mil anos.

    Um verdadeiro fim da História significaria que estas reformas se aplicariam em todos os países. Este sonho parecia próximo quando os neoliberais dos EUA receberam carta branca para remodelar a Rússia e outros estados pós-soviéticos depois da dissolução da União Soviética em 1991, começando com a terapia de choque privatizando recursos naturais e outros ativos públicos para as mãos de cleptocratas orientados pelo ocidente, registando a riqueza pública em seu próprio nome – e lucrando com a venda do que tinham tomado para os EUA e outros investidores ocidentais.

    O fim da União Soviética deveria consolidar o Fim da História pela América, mostrando como seria fútil as nações tentarem criar uma ordem económica alternativa, baseada no controle público do dinheiro e dos bancos, saúde pública, educação gratuita e outros subsídios de necessidades básicas, livres de financiamento de dívidas. A admissão da China na Organização Mundial do Comércio em 2001 foi vista como confirmando a afirmação de Margaret Thatcher de que "não há alternativa" (TINA) à nova ordem neoliberal patrocinada pelos EUA.

    Há uma alternativa económica, é claro. Observando a extensão da História antiga, podemos ver que o principal objetivo dos antigos governantes da Babilónia ao Sul e Leste da Ásia era impedir que uma oligarquia mercantil e credora reduzisse a população em geral à escravidão e servidão pela dívida. Se o mundo da Eurásia, não norte-americano, seguir agora este objetivo básico, estaria a restaurar o curso da História no seu curso pré-ocidental. Isso não seria o fim da História, mas retornaria aos ideais básicos do mundo não-ocidental de equilíbrio económico, justiça e equidade.

    Atualmente, China, Índia, Irão e outras economias da euroasiáticas deram o primeiro passo como pré-condição para um mundo multipolar, ao rejeitarem a insistência dos Estados Unidos para aderirem às sanções comerciais e financeiras contra a Rússia. Esses países percebem que, se os Estados Unidos pudessem destruir a economia da Rússia e substituir o seu governo por proxies semelhantes a Yeltsin, os demais países euro-asiáticos seriam os próximos da lista.

    A única maneira possível da História realmente terminar seria os militares americanos destruírem todas as nações que buscam uma alternativa à privatização e financeirização neoliberais. A diplomacia dos EUA insiste em que a História não deve seguir nenhum caminho que não culmine no seu próprio império financeiro governando por meio de oligarquias clientes. Os diplomatas americanos esperam que as suas ameaças militares e apoio a exércitos por procuração forcem outros países a submeterem-se às exigências neoliberais – para evitarem ser bombardeados, sofrerem “revoluções coloridas”, assassinatos políticos ou golpes militares ao estilo Pinochet. Mas a única maneira real de acabar com a História é pela guerra atómica para acabar com a vida humana neste planeta.

    A Nova Guerra Fria está dividindo o mundo em dois sistemas económicos contrastantes

    A guerra por procuração da NATO na Ucrânia contra a Rússia é o catalisador que divide o mundo em duas esferas opostas com filosofias económicas incompatíveis. A China, o país que cresce mais rapidamente, trata o dinheiro e o crédito como uma utilidade pública alocada pelo governo em vez de permitir o privilégio monopolista da criação de crédito privatizado pelos bancos, levando-os a substituir o governo como planeador económico e social. Esta independência monetária, contando com sua própria criação de dinheiro, em vez de pedir empréstimos em dólares eletrónicos dos EUA, controlando o comércio externo e o investimento na sua própria moeda em vez de dólares, é vista como uma ameaça existencial ao domínio da economia global pelos Estados Unidos.

    A doutrina neoliberal dos EUA exige que a História termine “libertando” as classes ricas de um governo forte o suficiente para impedir a concentração da riqueza, o declínio e a queda final. A imposição de sanções comerciais e financeiras contra a Rússia, Irão, Venezuela e outros países que resistem à diplomacia dos EUA e, finalmente, ao confronto militar, é como os Estados Unidos pretendem com a NATO “espalhar a democracia” da Ucrânia ao Mar da China.

    O Ocidente, na iteração neoliberal dos EUA, parece repetir o padrão de declínio e queda de Roma. Concentrar a riqueza nas mãos do 1% sempre foi a trajetória da civilização ocidental. É o resultado da antiguidade clássica ter tomado um caminho errado quando Grécia e Roma permitiram o crescimento inexorável da dívida, levando à expropriação de grande parte da cidadania, reduzindo-a à servidão perante uma oligarquia credora proprietária de terras. Esta é a dinâmica embutida no ADN do que é chamado Ocidente e a sua “segurança dos contratos” sem supervisão governamental quanto ao interesse público. Ao eliminar a prosperidade em casa, essa dinâmica exige um esforço constante para extrair riqueza económica (literalmente um “fluxo”) às custas de colónias ou países devedores.

    Os Estados Unidos, por meio de sua Nova Guerra Fria, pretendem precisamente garantir o tributo económico dos outros países. O conflito vindouro pode durar talvez vinte anos e determinará que tipo de sistema político e económico o mundo terá. Em questão está mais do que simplesmente a hegemonia dos EUA e seu controlo através do dólar das finanças internacionais e da criação de dinheiro. Politicamente, em questão está a ideia de “democracia” que se tornou um eufemismo para uma oligarquia financeira agressiva que busca impor-se globalmente pelo controlo financeiro, económico e político predatório, apoiado pela força militar.

    Como procurei enfatizar, o controlo oligárquico do governo tem sido a característica distintiva da civilização ocidental desde a antiguidade clássica. E a chave para esse controlo tem sido a oposição a um governo forte. Isto é, um governo civil forte o suficiente para impedir que uma oligarquia credora emerja e monopolize o controle da terra e da riqueza, tornando-se uma aristocracia hereditária, uma classe rentista que vive de rendas da terra, juros e privilégios de monopólio que reduzem a generalidade da população à austeridade.

    A ordem unipolar centrada nos EUA na esperança de “acabar com a História” refletiu uma dinâmica económica e política básica que tem sido característica da civilização ocidental desde que a Grécia e Roma clássicas seguiram um caminho diferente da matriz do Próximo Oriente no primeiro milénio AC. Para evitarem ser arrastados para o redemoinho de destruição económica que agora envolve o Ocidente, os países do núcleo euro-asiático em rápido crescimento no mundo, desenvolvem novas instituições económicas baseadas numa filosofia social e económica alternativa. Com a China sendo a maior economia e de mais rápido crescimento da região, as suas políticas socialistas provavelmente serão influentes na formação do emergente sistema financeiro e comercial não-ocidental.

    Em vez da privatização da infraestrutura económica básica no Ocidente para criar fortunas privadas por meio da extração de rendas monopolistas, a China mantém isso em mãos públicas. Sua grande vantagem sobre o Ocidente é que trata o dinheiro e o crédito como uma utilidade pública, sendo alocada pelo governo em vez de permitir que os bancos privados criem crédito, com a dívida a crescer, sem expansão da produção para elevar os padrões de vida. A China também mantém a saúde, a educação, o transporte e as comunicações em mãos públicas, como direitos humanos básicos.

    A política socialista da China representa, em muitos aspetos, um retorno às ideias básicas de resiliência que caracterizaram a maioria das civilizações antes da Grécia e Roma clássicas. A China criou um Estado suficientemente forte para resistir ao surgimento de uma oligarquia financeira que ganhasse o controle da terra e dos ativos rentáveis. Em contraste, as economias ocidentais de hoje estão repetindo exatamente aquele impulso oligárquico que destruiu as economias da Grécia e Roma clássicas, com os Estados Unidos tornando-se o equivalente moderno de Roma.

    11/Julho/2022

    A primeira parte deste artigo encontra-se em resistir.info/m_hudson/colapso_11jul22_1.html

    Do mesmo autor:
  • O programa de austeridade do Fed para reduzir salários
  • [*] Professor de Teoria Económica da Universidade do Missouri, Kansas City, investigador associado do Levy Economics Institute of Bard College. Seu livro mais recente é The Destiny of Civilization .

    O original encontra-se em www.nakedcapitalism.com/2022/07/michael-hudson-the-end-of-western-civilization-why-it-lacks-resilience-and-what-will-take-its-place.html

    Este artigo encontra-se em resistir.info


    O fim da civilização ocidental (1)

     por 

    Michael Hudson [*]

    'Destiny of Civilization', o livro mais recente de Michael Hudson.

    O maior desafio que confronta as sociedades sempre foi efetuar comércio e crédito sem deixar que mercadores e credores ganhassem dinheiro explorando seus clientes e devedores. Toda a antiguidade reconhecia que o impulso para ganhar dinheiro é viciante e na verdade tende a ser explorador e portanto socialmente nefasto. Os valores morais da maior parte das sociedades opõem-se ao egoísmo, acima de tudo na forma de avareza e dependência da riqueza, o que os gregos chamavam de philarguria – amor à moeda, mania da prata. Indivíduos e famílias que se entregavam ao consumo conspícuo tendiam a ser ostracizadas, porque era reconhecido que a riqueza muitas vezes era obtida a expensas de outros, especialmente os fracos.

    O conceito grego de hubris envolvia comportamento egoísta que provocasse danos a outros. Avareza e cobiça deviam ser punidas pela deusa da justiça Nemesis, que tinha muitos antecedentes no Oriente Próximo, tais como Nanshe de Lagash na Suméria, protegendo o fraco contra o poderoso, o devedor contra o credor.

    Essa proteção é o que se esperava que os governantes providenciassem ao servirem os deuses. Eis porque os governantes foram imbuídos com poder suficiente para proteger a população de ser reduzida à dependência da dívida e ao clientelismo. Chefes, reis e templos eram encarregados de distribuir crédito e terra agriculturável para permitir que pequenos proprietários servissem no exército e fornecessem trabalho de corvéia. Governantes que se comportassem de modo egoísta era passíveis de serem destituídos, ou os seus súbditos poderiam fugir, ou apoiar líderes rebeldes ou atacantes estrangeiros que lhes prometessem cancelar dívidas e redistribuir a terra mais equitativamente.

    A função mais básica de reinos do Oriente Próximo era proclamar a “ordem económica”, misharum e urarum, deixar um passado em branco mediante cancelamentos de dívida, refletindo o Ano Jubileu do judaísmo. Não havia “democracia” no sentido de cidadãos a elegerem os seus líderes e administradores, mas a “realeza divina” era obrigada a alcançar o objetivo económico implícito da democracia: “proteger o fraco do poderoso”.

    O poder real era apoiado por templos e sistemas éticos ou religiosos. As principais religiões que emergiram no primeiro milénio AC, as de Buda, Lao-Tzu e Zoroastro, sustentavam que impulsos pessoais deveriam ser subordinados à promoção do bem-estar geral e à ajuda mútua.

    O que não parecia provável 2500 anos atrás era que uma aristocracia de senhores da guerra conquistasse o mundo ocidental. Ao criar o que se tornou o Império Romano, uma oligarquia tomou o controle da terra e, ao seu tempo, o sistema político. Ela aboliu a autoridade real ou cívica, mudou o fardo fiscal para classes mais baixas, e levou a população e a indústria a endividarem-se.

    Isto foi feito de modo puramente oportunista. Não houve tentativa de defender isto ideologicamente. Não há sinal de um arcaico Milton Friedman a emergir para popularizar uma nova ordem moral radical celebrando a avareza, sob a alegação de que a cobiça é o que impulsiona as economias para a frente, não para trás, convencendo a sociedade a deixar a distribuição de terra e moeda ao “mercado” controlado por corporações privadas e usurários ao invés da regulação comunalista pelos governantes do palácio e dos templos – ou, por extensão, o socialismo de hoje. Palácios, templos e governos cívicos eram credores. Eles não eram forçados a contrair empréstimos para funcionar e, assim, não eram sujeitos às exigências políticas de uma classe de credores privados.

    Mas dirigir a população, indústria e mesmo governos à dívida a uma elite oligárquica foi precisamente o que se verificou no ocidente, o qual está agora a tentar estender a variante moderna deste regime económico baseado em dívida – o capitalismo financeiro neoliberal centrado nos EUA – a todo o mundo. É disso que trata a Nova Guerra Fria de hoje.

    De acordo com a moralidade tradicional de sociedades primitivas, o ocidente – a começar na Grécia clássica e Itália em torno do século VIII – era bárbaro. O ocidente na verdade estava na periferia do mundo antigo quando comerciantes sírios e fenícios introduziram a ideia da dívida portadora de juros do Oriente Próximo a sociedades que não tinham a tradição real de cancelamentos periódicos de dívida. A ausência de um forte poder do palácio e da administração do templo permitiu emergirem oligarquias credoras por todo o mundo mediterrânico.

    A Grécia acabou por ser conquistada, primeiro pela Esparta oligárquica, a seguir pela Macedónia e finalmente por Roma. Foi a avareza do sistema legal deste último, a favor dos credores, que modelou a civilização ocidental subsequente. Hoje, um sistema financiarizado de controle oligárquico cujas raízes remontam a Roma está a ser apoiado e na verdade imposto pelos EUA através da diplomacia da Nova Guerra Fria, pela força militar e pelas sanções económicas sobre países que procuram resistir-lhe.

    Tomada de controle oligárquica da antiguidade clássica

    A fim de entender como a Civilização Ocidental se desenvolveu de um modo que continha as sementes fatais da sua própria polarização económica, declínio e queda, é necessário reconhecer que quando a Grécia clássica e Roma aparecem no registo histórico uma Idade das Trevas havia interrompido a vida económica desde o Oriente Próximo até o Mediterrâneo oriental, de 1200 a cerca de 750 AC. Alterações climáticas aparentemente provocaram grave despovoamento, acabando as economias de palácio, com a vida a reverter ao nível local durante este período.

    Algumas famílias criaram autocracias estilo máfia, pela monopolização da terra e amarrando o trabalho através de várias de formas de clientelismo coercivo e dívida. Acima de tudo estava o problema da dívida portadora de juros que os comerciante do Oriente Próximo haviam introduzido em terras do Egeu e do Mediterrâneo – sem os correspondentes cancelamentos reais de dívida.

    A partir desta situação “tiranos”-reformadores gregos surgiram nos séculos VII e VI AC, desde Esparta até Corinto, Atenas e ilhas gregas. Relata-se que a dinastia Cipselíada em Corinto e novos líderes semelhantes em outras cidades cancelaram as dívidas que mantinham clientes em servidão sobre a terra, redistribuíram esta terra à cidadania e empreenderam gastos em infraestrutura pública para intensificar o comércio, abrindo o caminho para o desenvolvimento cívico e rudimentos de democracia. Esparta promulgou as austeras reformas “licurganas” contra o consumo de ostentação e de luxo. A poesia de Arquiloquos na ilha de Paros e Solon de Atenas denunciaram o impulso para a riqueza pessoal como vicioso, levando à arrogância e prejudicando outros – a ser punido pela deusa da justiça Nemesis. O espírito era semelhante ao babilónio, judaico e de outras religiões morais.

    Roma teve lendários sete reis (753-509 AC), que dizem ter atraído imigrantes e impedido a oligarquia de explorá-los. Mas famílias ricas derrubaram o último rei. Não havia líder religioso para contrapor-se ao seu poder, pois as principais famílias aristocráticas controlavam o sacerdócio. Não houve líderes que combinassem reforma económica interna com uma escola religiosa e não havia no ocidente a tradição de cancelamentos de dívida tais como Jesus advogou ao tentar restaurar o Ano Jubileu para a prática judaica. Havia muitos filósofos estóicos e sítios religiosos anfictiónicos [NT] tais como Delfi e Delos que exprimiam uma religião de moralidade pessoal que afastava a arrogância.

    Os aristocratas de Roma criaram uma constituição anti-democrática e um Senado, assim como leis que tornavam a servidão da dívida – e a consequente perda de terra – irreversível. Embora a ética “politicamente correta” fosse evitar envolver-se em comércio e usura, esta ética não impedia um oligarca de emergir para tomar a terra e reduzia grande parte da população à servidão. Por volta do século II AC Roma conquistou todo a região mediterrânica e a Ásia Menor. As maiores corporações era os coletores de impostos publicanos, os quais relata-se terem saqueado províncias de Roma.

    Sempre houve caminhos para os ricos agirem hipocritamente em harmonia éticas com altruístas abstendo-se da cobiça comercial enquanto se enriqueciam. Os ricos da antiguidade era capazes de compatibilizar-se com tais éticas evitando eles próprios o empréstimo direto e o comércio, atribuindo este “trabalho sujo” aos seus escravos ou libertos e gastando os rendimentos de tais atividades em filantropia ostentatórias (as quais tornaram-se um espetáculo aguardado nas campanhas eleitorais de Roma). E depois de a cristandade se ter tornado a religião romana no século IV DC, o dinheiro era capaz de comprar absolvição com doações generosamente adequadas à igreja.

    O legado de Roma e o imperialismo financeiro do ocidente

    O que distingue as economias ocidentais das primitivas do Oriente Próximo e da maior parte das sociedades asiáticas é a ausência de alívio da dívida para restaurar um equilíbrio económico amplo. Todas as nações ocidentais herdaram de Roma a santidade de princípios de dívida favoráveis ao credor que priorizam os direitos dos credores e legitimam a permanente transferência a credores da propriedade de devedores em incumprimento. Desde a Roma antiga até aos Habsburgos da Espanha, da Grã-Bretanha imperial até aos Estados Unidos, oligarquias ocidentais apropriaram-se do rendimento e da terra de devedores, enquanto se livravam de impostos transferindo-os para o trabalho e a indústria. Isto provocou austeridade interna e levou oligarquias a buscarem prosperidade através da conquista estrangeira, para ganhar de estrangeiros o que não estava a ser produzido por economias internas conduzidas ao endividamento e sujeitas a princípios legais pró-credores, transferindo terra e outras propriedade para uma classe rentista.

    A Espanha no século XVI saqueou vastos carregamentos de prata e ouro do Novo Mundo, mas esta riqueza fugiu das suas mãos, dissipou-se na guerra ao invés de ser investida na indústria interna. Deixada com uma economia desigual, polarizada e profundamente endividada, os Habsburgos perderam as suas antigas possessões, a República Holandesa, a qual prosperou como sociedade menos oligárquica do que a outra que auferia mais poder como credor do que como devedor.

    A Grã-Bretanha seguiu uma ascensão e queda semelhante. A I Guerra Mundial deixou-a com pesadas dívidas de armas para com a sua antiga colónia, os Estados Unidos. Ao impor a austeridade anti-trabalho internamente, buscando pagar estas dívidas, a área da libra esterlina britânica tornou-se posteriormente um satélite do US dólar nos termos do American Lend-Lease na II Guerra Mundial e do British Loan de 1946. As políticas neoliberais de Margaret Thatcher e Tony Blair aumentaram drasticamente o custo de vida pela privatização e monopolização da habitação pública e infraestrutura, eliminando a antiga competitividade industrial britânica pela elevação do custo de vida e portanto dos níveis salariais.

    Os Estados Unidos seguiram uma trajetória semelhante de super-extensão imperial à custa da sua economia interna. Seus gastos militares além-mar a partir de 1950 obrigaram o dólar a desligar-se do ouro em 1971. Esta mudança teve o benefício não previsto de inaugurar um “padrão dólar” que permitiu à economia estado-unidense e à sua diplomacia militar obterem refeições gratuitas do resto do mundo, aumentando o endividamento em dólares de bancos centrais de outros países sem qualquer restrição prática.

    A colonização financeira da ex-União Soviética na década de 1990 pela “terapia de choque” das privatizações dádivas, seguida em 2001 pela admissão da China à Organização Mundial de Comércio – com a expectativa de que a China iria, como a Rússia de Yeltsin, tornar-se uma colónia financeira dos EUA – levou a economia da América a desindustrializar-se através da transferência do emprego para a Ásia. A tentativa de obrigar a submissão ao controle estado-unidense através do início da Nova Guerra Fria de hoje fez com que a Rússia, a China e outros países rompessem com o comércio e o sistema de investimento dolarizado, deixando os Estados Unidos e a Europa da NATO a sofrerem austeridade e aprofundamento da desigualdade de riqueza pois os rácios de endividamento estão a ascendfer para indivíduos, corporações e organismos governamentais.

    Foi apenas a uma década que o senador John McCain e o presidente Barack Obama caracterizaram a Rússia como um mero posto de gasolina com bombas atómicas. Isso poderia ser dito agora dos Estados Unidos, que tem como base do seu poder económico o controle do comércio de petróleo do ocidente, enquanto os seus principais excedentes de exportação são produtos agrícolas e armas. A combinação de alavancamento de dívida financeira e privatização tornou a América uma economia de alto custo, perdendo a sua antiga liderança industrial, tal como a Grã-Bretanha. Os Estados Unidos estão agora a tentar viver principalmente de ganhos financeiros (juros, lucros sobre investimento estrangeiro e criação de crédito pelo banco central para inchar ganhos de capital) ao invés de criar riqueza através do seu próprio trabalho e indústria. Os seus aliados ocidentais procuram fazer o mesmo. O eufemismo deste sistema dominado pelos EUA é “globalização”, mas isto é simplesmente uma forma de colonialismo financeiro – apoiado pela habitual ameaça de força militar e “mudanças de regime” encobertas para impedir países de se retirarem do sistema.

    Este sistema imperial baseado nos EUA e na NATO procura endividar países mais fracos e forçá-los a entregar o controle das suas políticas ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial. Obedecer ao “conselho” neoliberal anti-trabalho destas instituições leva a uma crise de dívida que obriga a taxa de câmbio do país devedor a depreciar-se. O FMI então “resgata-os” da insolvência com a “condicionalidade” de que liquidem o sector público e comutem impostos sobre a riqueza (especialmente a de investidores estrangeiros) para o trabalho.

    Oligarquia e dívida são as características definidoras das economias ocidentais. Os gastos militares da América e as guerras quase constantes deixaram o seu próprio Tesouro profundamente endividado a governos estrangeiros e seus bancos centrais. Os Estados Unidos estão portanto a seguir o mesmo caminho pelo qual o imperialismo da Espanha deixou a dinastia dos Habsburgos em dívida para com banqueiros europeus, assim como a participação da Grã-Bretanha em duas guerras mundiais na esperança de manter sua posição dominante no mundo deixou-a endividada e acabou com a sua antiga vantagem industrial. A ascensão da dívida externa da América tem sido sustentada pelo seu privilégio de “divisa chave” pois emite a sua própria moeda sob o “padrão dólar” sem que outros países tenham qualquer expectativa razoável de alguma vez serem pagos – exceto com ainda mais “dólares de papel”.

    Esta afluência monetária capacitou a elite administrativa da Wall Street a aumentar a sobrecarga rentista da América pela financiarização e privatização, aumentando o custo de vida e de fazer negócio, tal como ocorreu na Grã-Bretanha sob as políticas neoliberais de Margaret Thatcher e Tony Blair. Empresas industriais responderam mudando as suas fábricas para economias de baixos salários a fim de maximizar os lucros. Mas à medida que a América se desindustrializa com o aumento da dependência da importação da Ásia, a diplomacia dos EUA prossegue uma Nova Guerra Fria que leva as economias mais produtivas do mundo a desligarem-se da órbita económica estado-unidense.

    O aumento da dívida destrói economias quando ele não é usado para financiar novo investimento de capital em meios de produção. A maior parte do crédito ocidental hoje é criada para inchar preços de ações, títulos e imobiliário, não para restaurar capacidade industrial. Em consequência desta abordagem dívida-sem-produção, a economia interna nos EUA tem sido esmagada pelo endividamento para com a sua própria oligarquia financeira. Apesar dos almoços gratuitos da economia americana na forma de contínuos aumentos da sua dívida oficial para com bancos centrais estrangeiros – sem nenhuma perspetiva visível de a sua dívida internacional ou interna vir a ser paga – a sua dívida continua a expandir-se e a economia tornou-se ainda mais alavancada pela dívida. A América polarizou-se com riqueza extrema concentrada no topo enquanto a maior parte da economia é conduzida profundamente ao endividamento.

    O fracasso de democracias oligárquicas para proteger a generalidade da população endividada

    O que torna oligárquicas as economias ocidentais é o seu fracasso em proteger a cidadania de ser conduzida à dependência dos credores da classe que possui a propriedade. Estas economias retiveram leis de dívida baseadas no direito romano, mais notavelmente a prioridade dos direitos do credor sobre a propriedade dos devedores. Os credores do Um Porcento tornaram-se uma oligarquia politicamente poderosa apesar das reformas políticas nominalmente democráticas que ampliam direitos de voto. Agências regulatórias do governo foram capturadas e o poder fiscal tem sido tornado regressivo, deixando o controle económico e o planeamento nas mãos da elite rentista.

    Roma nunca foi uma democracia. E, em qualquer caso, Aristóteles reconhecia que democracias evoluíam mais ou menos naturalmente para oligarquias – as quais afirmavam serem democráticas para objetivos de relações-públicas enquanto pretendiam que a sua crescente forte concentração de riqueza no topo seria pelas melhores razões. A retórica de hoje do gotejamento (trickle-down) apresenta administradores da banca e da finança como se dirigissem as poupanças do modo mais eficiente para produzir prosperidade para toda a economia, não apenas para si próprios.

    O presidente Biden e os seu neoliberais do Departamento de Estado acusam a China e qualquer outro país que procure manter a sua independência e auto-suficiência económica de serem “autocráticos”. A sua prestidigitação retórica justapõe democracia a autocracia. O que eles chamam “autocracia” é um governo suficientemente forte para impedir uma oligarquia financeira orientada pelo ocidente de endividar a população para com ela – e a seguir intrometer-se nas suas terras e outras propriedades passando-as para as suas próprias mãos e aquelas dos seus apoiantes americanos e outros apoiantes estrangeiros.

    O duplo pensar orwelliano de chamar oligarquias de “democracias” é seguido por uma definição de mercado livre como aquele que é livre para a busca de renda financeira. A diplomacia dos EUA tem endividado países, forçando-os a venderem o controle da sua infraestrutura pública e transformando os “altos comandos” das suas economias em oportunidades para extrair renda de monopólio.

    Esta retórica autocracia vs democracia é semelhante à retórica que as oligarquias grega e romana utilizavam quando acusavam reformadores democráticos de buscarem a “tirania” (na Grécia) ou a “realeza” (em Roma). Foram os “tiranos” gregos que derrubaram autocracias semelhantes à máfia nos séculos VII e VI AC, abrindo o caminho para os arranques económicos e proto-democráticos de Esparta, Corinto e Atenas. E foram reis de Roma que construíram sua cidade-estado ao darem apoio à posse da terra pelos seus cidadãos. Esta política atraiu imigrantes das cidades-estado italianas vizinhas cujas populações eram forçadas à servidão da dívida.

    O problema é que democracias ocidentais não se demonstram aptas a impedir a emergência de oligarquias e a polarização da distribuição do rendimento e da riqueza. Desde Roma, “democracias” oligárquicas não protegem os seus cidadãos dos credores que procuram apropriar-se da terra, do seu rendimento rentístico e do domínio público para si mesmos.

    Basta perguntar-nos quem hoje está a aprovar e impor políticas que procuram por em causa a oligarquia a fim de proteger os meios de vida dos cidadãos, a resposta é que isto é feito pelos estados socialistas. Só um estado forte tem o poder de por em causa uma oligarquia financeira e em busca de rendas. A embaixada da China nos EUA demonstrou isto na sua réplica à descrição da China feita pelo presidente Biden como uma autocracia:

    Preso a uma mentalidade de Guerra Fria e à lógica hegemonista, os EUA seguem uma política de blocos, inventam a narrativa “democracia versus autoritarismo” … e intensificam alianças militares bilaterais, numa clara tentativa de combater a China.

    Guiado por uma filosofia centrada no povo, desde o dia sua fundação … o Partildo tem trabalhado incansavelmente pelo interesse do povo e tem-se dedicado a realizar as aspirações populares por uma vida melhor. A China vem avançando em todo o processo da democracia popular, promovendo a salvaguarda dos direitos humanos e defendendo a equidade social e a justiça. O povo chinês agora desfruta de mais amplos e mais extensos e abrangentes direitos democráticos.[1]

    Quase todas as primitivas sociedades não-ocidentais tinham proteções contra a emergência de oligarquias mercantis e rentistas. Eis porque é tão importante reconhecer que aquilo que se tornou civilização ocidental representa uma rutura com o Oriente Próximo, a Ásia do Sul e do Leste. Cada uma destas regiões tinha o seu próprio sistema de administração pública para salvaguardar seu equilíbrio social da riqueza comercial e monetária que ameaçava destruir o equilíbrio económico se não fosse controlada. Mas o carácter económico do ocidente foi modelado pelas oligarquias rentistas. A República de Roma enriquecia a sua oligarquia pela retirada da riqueza das regiões que conquistava, deixando-as empobrecidas. O que permanece na estratégia extrativa do colonialismo europeu subsequente e, mais recentemente, da globalização neoliberal centrada nos EUA. O objetivo tem sido sempre “libertar” oligarquias dos constrangimentos à sua própria satisfação.

    A grande questão é “liberdade” para quem? A economia política clássica definia um mercado livre como aquele livre de rendimento não merecido (unearned income), a começar pela renda da terra e renda de outros recursos naturais, renda de monopólio, juros financeiros e privilégios relativos aos credores. Mas no fim do século XIX a oligarquia rentista patrocinou uma contra-revolução fiscal e ideológica, redefinindo mercado livre como aquele livre para rentistas extraírem renda económica – rendimento não merecido.

    Esta rejeição da crítica clássica do rendimento rentista tem sido acompanhada redefinindo que “democracia” exige ter um “mercado livre” da variedade oligárquica rentista, anti-clássica. Ao invés de os governos serem os reguladores económicos no interesse público, a regulação pública do crédito e dos monopólios é desmantelada. Isto permite às empresas que cobrem o que quiserem pelo crédito que fornecem e pelos produtos que vendem. Privatizar o privilégio de criar moeda-crédito permite ao sector financeiro assumir o papel de distribuir a propriedade.

    O resultado tem sido centralizar o planeamento económico na Wall Street, na City de Londres, na Bolsa de Paris e em outros centros financeiros imperiais. É disso que trata a Nova Guerra Fria de hoje: proteger este sistema de capitalismo financeiro neoliberal centrado nos EUA, pela destruição ou isolamento dos sistemas alternativos da China, Rússia e seus aliados, enquanto procuram financiarizar ainda mais o antigo sistema colonialista que patrocina o poder do credor ao invés de proteger devedores, impondo a austeridade do endividamento ao invés do crescimento e tornando irreversível a perda da propriedade através do arresto ou da venda forçada.

    (continua)

    12/Julho/2022

    [NT] Em 1826 Bolívar organizou um congresso a que denominou “ Anfictiónico”.
    [1] Reality Check: Falsehoods in US Perceptions of China, June 19, 2022. us.china-embassy.gov.cn/eng/zmgx/zxxx/202206/t20220619_10706097.htm.

    Do mesmo autor:
  • O programa de austeridade do Fed para reduzir salários
  • [*] Professor de Teoria Económica da Universidade do Missouri, Kansas City, investigador associado do Levy Economics Institute of Bard College. Seu livro mais recente é The Destiny of Civilization .

    O original encontra-se em www.nakedcapitalism.com/2022/07/michael-hudson-the-end-of-western-civilization-why-it-lacks-resilience-and-what-will-take-its-place.html

    Este artigo encontra-se em resistir.info


    sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

    Importante estudo finlandês revela a impossibilidade da descarbonização

    – As falácias correntes da “descarbonização”
    – “A substituição do sistema actual com combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) por outro com renováveis (solar ou eólico) não será possível para toda a população global”

    Daniel Vaz de Carvalho

    A transição impossível do fóssil ao renovável.

    O relatório "Avaliação da capacidade extra necessária de sistemas alternativos de energia para substituir completamente os combustíveis fósseis" (Assessment of the Extra Capacity Required of Alternative Energy Electrical Power Systems to Completely Replace Fossil Fuels), publicado pelo Geological Survey of Finland, foi elaborado por Simon P. Michaux, professor associado de Processamento de Minerais e Geometalurgia, com a colaboração de outros 25 académicos. O texto deveria ser tema central do debate sobre os problemas energéticos e, de uma forma mais geral, ecológicos. Porém, como é de regra os políticos do sistema justificam as suas opções com pareceres de especialistas que seguem a narrativa das megaempresas sejam farmacêuticas, sejam do sector da energia.

    As teses da descarbonização são uma oportunidade para fugir a investimentos em sectores cujo de lucro está em queda, associado a incertezas e riscos, obtendo pelo contrário subsídios do Estado com taxas de lucro e mercados garantidos. Não é por acaso que o homem mais rico do mundo passou a ser Elon Musk, dono da Tesla (veículos elétricos).

    Já neste sítio temos tratado estes temas:  Acerca da emergência climática ou A descarbonização e os seus álibis. No detalhado estudo que mencionamos, com cerca de 1000 páginas, parte-se da análise da situação quanto às necessidades energéticas atuais e do que seria necessário realizar para as substituir por energias alternativas renováveis.

    Em 2018, o consumo de energia primária por fonte repartia-se do seguinte modo: petróleo 33,62%; carvão 27,21%; gás natural 23,87%; hidroeletricidade 6,84%; renováveis 4,05%; nuclear 4,41%. (pág. 33) Globalmente o consumo de energia destina-se a:  indústria 35,81%; transportes 25,58%; residencial 22,25%; comercial 7,67%; outras 8,7%. (99).

    Quanto à produção de energia elétrica global repartia-se do seguinte modo:  carvão 38,17%; gás natural: 23,37%; derivados do petróleo: 3,03%; nuclear 10,21%; hidroelétrica: 15,85%; eólica: 4,8%; solar: 2,2%; outras renováveis: 2,36%. (163). Na UE 42,1% da energia elétrica é produzida a partir de combustíveis fosseis. (178)

    Note-se que a produção de cimento e as siderurgias de alto forno não dispensam carvão. Os plásticos de origem petroquímica são aplicados em praticamente todos os ramos industriais. A produção global de plásticos atingiu 8 100 milhões de ton (218) 95% dos quais não são reciclados. (226) Só muito parcialmente podem ser substituídos (papel, madeira, têxteis, etc.) com custos ambientais que não podem ser ignorados.

    Uma substituição tecnologicamente viável é a dos bioplásticos fabricados a partir de matéria-prima de biomassa. A questão será obtê-lo nas quantidades necessárias. Quanto à substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis com origem na soja ou milho, a terra arável necessária para o cultivo de biomassa excederia em muito a atual terra global usada para a produção de alimentos. Essa terra arável usada para a produção de alimentos está sujeita a degradação e deterioração persistente, devido aos métodos de produção agrícola industrial atuais. Outros desafios para os biocombustíveis estão relacionados com o consumo de água. A água doce adicional necessária para biocombustíveis seria aproximadamente 9 vezes o atual consumo global de água doce. (660)

    A utilização de baterias elétricas só é viável para embarcações de pequena dimensão, por exemplo ferry-boats. Em navios é tecnicamente viável a utilização de hidrogénio (H2) porém a transformação necessária é complexa. O estudo mostra que um navio de 60 000 ton necessita de um reservatório de H2 de 5,5 ton. (419). Foi estimado que para a frota marítima global seriam necessários 51,7 milhões de toneladas de H2, requerendo 2 983,7 TWh [1] de eletricidade para a sua produção. (658)

    O estudo dos requisitos para a aviação comercial não foi considerado dado não haver tecnologia disponível. (413) No estudo também não se incluem os consumos das ações de âmbito militar. A estimativa para o total de veículos com motores de combustão interna é de 1416 milhões. A sua substituição por sistemas de combustível não fóssil (células de hidrogênio, baterias ou biocombustíveis) necessita de 65,19 TWh de baterias (282,6 milhões de toneladas de baterias de lítio) e um adicional anual de 6 158,4 TWh de eletricidade da rede elétrica global para carregar essas baterias. (658)

    O relatório salienta que a economia mundial é altamente dependente de combustíveis fósseis, para a atividade industrial, PIB, produção de alimentos. Em particular, o preço do petróleo correlaciona-se com as crises económicas globais. É também claro que o consumo de combustíveis fósseis (energia) está fortemente ligado ao crescimento da população humana global, ao aumento da sofisticação tecnológica. Além disto, o consumo per capita tem aumentado ao longo dos anos. (657)

    Outro problema para a substituição dos combustíveis fósseis é o da continuidade de serviço. A potência garantida nas horas de maior consumo (após o pôr do Sol) é a seguinte:   solar 0%; vento 7 a 25%; hídrica 79 a 92%; fóssil e nuclear 77 a 95%; (181)

    Para eliminar os combustíveis fósseis, todo o ecossistema industrial terá que ser redesenhado, reequipado e completamente reconstruido em torno de fontes de energia não fósseis e uma nova tecnologia de transporte com objetivos mais realistas. Por outro lado a energia nuclear por si só não pode substituir diretamente a geração de energia elétrica dada a não disponibilidade de recursos suficientes ao longo do tempo. (661)

    Por exemplo, para substituir uma única central a carvão de tamanho médio (861,3 MW de potência instalada, produzindo 7,0 TWh anualmente), seriam necessários 213 parques fotovoltaicos de tamanho médio (33 MW de potência instalada, produzindo 33 GWh anualmente). Da mesma forma, pode-se calcular que seriam necessários 87 parques eólicos de tamanho médio (37,2 MW de capacidade instalada, produzindo 81,2 GW por ano). A razão para a grande diferença está relacionada com a proporção da energia disponível relativamente à energia investida (indice ERoEI). Em resumo, o ERoEI das fontes de energia usadas para apoiar a industrialização há 100 anos era muito mais eficaz e lucrativo em comparação com as fontes de energia alternativas. Consistentemente a melhor fonte é o petróleo e o gás natural com um índice ERoEI entre 12 e 30 e carvão até 80:1. (662)

    O relatório avança com vários desafios que se colocam na substituição dos combustíveis fósseis: Tempo insuficiente para cumprir as metas de construção; fornecimento de minerais suficientes para as tecnologias renováveis; desenvolvimento de armazenamento de energia suficiente para gerir o intermitente fornecimento de energia; encontrar novos locais suficientes para centrais hidroelétricas; crescimento da população humana. O mais desafiador de tudo isto é que teria de ser feito em algumas décadas. (662 a 665)

    Fontes de energia como solar, eólica ou hídrica são tecnicamente renováveis. Porém, cada uma dessas unidades requer fabricação, proveniente de recursos minerais finitos não renováveis, tendo uma vida útil de 10 a 20 anos (com a exceção da hidroelétrica), após o qual precisam ser substituídas por novas unidades. Isso significa que os sistemas de combustível não fóssil não são realmente renováveis, mas na verdade são melhor descritos como de "substituíção". (668)

    As tarefas estratégicas são enormes, incluindo designadamente: Reconstruir o sistema de energia de combustível fóssil e infraestrutura de apoio em algumas décadas. Reabilitar terras aráveis que foram degradadas com a aplicação inadequada da agricultura industrial. Restabelecer a cadeia alimentar do solo em regiões geográficas inteiras. Remover a poluição de plástico e a acidificação dos oceanos. Reflorestar grandes regiões do planeta, para restabelecer a biodiversidade natural da flora e da fauna. Esses desafios teriam de ser realizados num período de 20 a 50 anos. Para fazer-lo é necessária uma fonte de energia confiável que esteja disponível para a maioria da população humana com uma razão ERoEI de cerca de 50: 1. A tecnologia renovável por si só não é suficiente para atender a esses requisitos. (668 a 672)

    O estudo considera que algo radicalmente novo é necessário, designadamente reestruturar a sociedade e o ecossistema industrial para reduzir os consumos. O texto mostra-nos com números as falácias da descarbonização. A narrativa oficial, ditada pelos centros do grande capital é dada como verdade absoluta, tudo o que a contraria é escamoteado e os comentadores limitam-se a glosas repetindo o que as centrais da (des)informação emitem. Claro que os protestos inconsequentes da menina Greta, interessam mais que o debate científico. Voltamos à época de Galileu e Giordano Bruno...

    Não será o capitalismo, cada vez mais agressivo e arrogante, mesmo mascarado de verde que efetuará qualquer transição ecológica, tal não é possível num sistema guiado pelo lucro. A verdadeira alternativa é um sistema de economia política guiado pela maximização das necessidades sociais, incluindo obviamente a defesa do meio ambiente.

    Em complemento a estas notas, apresentamos o Sumário (Abstract) do relatório.

    Sumário do Estudo (páginas ii a iv)

    Este relatório aborda os desafios em torno da ambiciosa tarefa de eliminar gradualmente os combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) que são usados atualmente na tecnologia de motores de combustão interna (MCI) e para geração de energia elétrica. Estudos anteriores tenderam a concentrar-se nos custos estimados de produção e nas métricas de pegada de CO2, o presente relatório baseia-se nos requisitos físicos e de materiais. Todos os dados, figuras e diagramas foram criados ou reproduzidos a partir de fontes disponíveis publicamente e são citados de forma adequada.

    Tomando primeiro o caso de substituir todos os veículos baseados em combustível fóssil por veículos de tecnologia elétrica (VE), em 2019 cerca de 7,2 milhões de VE estavam em serviço. No entanto, a frota total de veículos na época foi estimada em 1416 milhões de veículos, sugerindo que apenas 0,51% da frota global era atualmente elétrica, 99,49% da a frota global ainda não foi substituída.

    Quanto ao sistema energético global, os dados de 2018 estimam que 84,7% dependia de combustíveis fósseis, enquanto as renováveis (solar, eólica, geotérmica e biocombustíveis) representaram apenas 4,05% da geração global de energia. Isso reforça a escala dos desafios que se enfrentam.

    A decisão estratégica global adotada pela maioria das nações para eliminar gradualmente os sistemas de combustíveis fósseis e substituí-los por sistemas de geração de energia renovável é amplamente impulsionada pelas emissões de CO2 e mudanças climáticas associadas e não pela redução dos recursos, embora seja bem conhecido que petróleo, gás e as reservas de carvão são finitas.

    O plano geral pode ser resumido da seguinte forma: os veículos MCI serão eliminados e substituídos por veículos elétricos (VE) e veículos movidos a célula de combustível de hidrogénio (célula H2). Os VE devem ser alimentados com baterias de lítio. A geração de energia elétrica com carvão e gás deve ser eliminada e substituída por energia solar fotovoltaica, turbina eólica, hidroelétrica, nuclear, geotérmica ou biomassa.

    O conhecimento em torno dos recursos minerais conhecidos sugere que as matérias-primas necessárias para a fabricação e manutenção dessas tecnologias renováveis permanecerão de natureza verdadeiramente global. Isto é, não haverá nação ou região geográfica que possa ser verdadeiramente auto-suficiente.
    (...)

    Os modelos calculados preveem cenários futuros para as próximas décadas. Esta abordagem reconhece os longos tempos de inicialização típicos para a exploração dos recursos desde a descoberta ao início da extração mineral, que podem ser entre 10 a 30 anos e que para cada 1000 depósitos descobertos, apenas um ou dois normalmente se tornam minas viáveis. Mantêm-se ciclos de fabricação igualmente longos desde a invenção até a comercialização.

    Cálculos do relatório sugerem que a capacidade anual total adicional de energia elétrica de origem não fóssil seja adicionada à rede global deverá ser em torno de 37 670,6 TWh. Mantendo a mesma composição de energia de origem não fóssil como 2018 isso traduz-se em mais 221 594 novas centrais necessárias encomendar e construir.

    O total de centrais de energia em 2018 (todos os tipos, incluindo de combustível fóssil) era de apenas 46 423 centrais. O número acima reflete a menor proporção de energia disponível relativamente à energia investida (ERoEI) nas centrais de energia renovável em comparação com as de combustíveis fósseis atuais.

    O número de instalações de painéis solares, instalações de turbinas eólicas, centrais de energia nuclear, centrais hidroelétricas e biomassa para centrais de energia para fornecer essa necessidade adicional de energia também foi calculado. O não fóssil existente no sistema de geração de energia elétrica (9 528,7 TWh) teria que ser expandido com capacidade adicional para 4 vezes o total existente.

    Cada um dos sistemas de combustível não fóssil modelados tem limitações práticas para expansão, por exemplo, foi proposto desenvolver 16 504 novas centrais hidroelétricas de tamanho médio, mas é claro que a hidroeletricidade só pode ser localizada em condições geográficas muito específicas, e pode não haver novos locais suficientes que sejam viáveis.

    A primeira parte do relatório examina como todas as economias desenvolvidas são altamente dependentes de combustíveis fósseis (em particular quanto ao preço, quantidade de petróleo disponível e produtos derivados), para a atividade industrial, PIB, produção de alimentos.

    A segunda parte do relatório quantifica como os combustíveis fósseis são usados e em que quantidades são consumidos. Os cálculos foram feitos com base na pegada de um ano completo de operação para todo o ecossistema industrial, incluindo o consumo de combustível fóssil (óleo, gás e carvão), aquecimento, fabricação de aço, geração de eletricidade, número de veículos de cada classe e distância percorrida.

    A terceira parte do relatório documenta a escala e a dimensão do sistema de alternativas de combustíveis não fósseis examinando 6 cenários. O cenário A examina a logística e a pegada para eliminar gradualmente os veículos MCI substituindo-os por VE. O Cenário B baseia-se no Cenário A, onde todas as outras aplicações de combustíveis fósseis (aquecimento a gás de edifícios, fabricação de aço a carvão e geração de eletricidade a partir de combustível fóssil) foram substituídos por sistema não fóssil. O cenário C examina a viabilidade de uma economia baseada no hidrogénio. O cenário D analisa a viabilidade dos biocombustíveis, frequentemente considerados a única fonte de energia verdadeiramente renovável. O cenário E procura estabelecer se o total de centrais elétricas nucleares poderiam ser expandidas suficiente rápido para uma capacidade de produção de energia elétrica necessária para substituir os sistemas de combustível fóssil. Finalmente, o cenário F é um solução híbrida com base no que foi aprendido dos Cenários A a E.

    Em resumo, constatou-se que cada sistema de combustível não fóssil apresenta vantagens e desvantagens claras quando comparado com todos os outros sistemas. São feitas recomendações para quando deve ser usado um VE alimentado por baterias e quando um veículo de célula de H2 é a melhor tecnologia alternativa, levando em consideração a energia elétrica necessária para carregar as baterias de VE e produzir hidrogénio.

    Biocombustíveis são recomendados para abastecer uma pequena parte da indústria de aviação e a biomassa é recomendada para a produção de bioplásticos, substituindo parte da indústria de plásticos existente. A energia nuclear pode ser expandida moderadamente da capacidade atual para suportar algumas operações industriais e aquecimento edifícios durante o inverno, especialmente no hemisfério norte.

    Uma vez que a dimensão e o total da pegada de um sistema de transporte e energia de combustível não fóssil sejam desenvolvidos, foi em comparação com estudos estratégicos existentes que foram examinados objetivos futuros para eliminar os combustíveis fósseis. Foi descoberto que trabalhos anteriores subestimaram significativamente o número de veículos a serem substituídos e mantidos, e isso impacta os números projetados de VE, baterias e veículos de célula de H2 a serem fabricados, o que por sua vez corresponde a uma menor estimativa do tamanho da rede elétrica necessária.

    Consequentemente, o número de novas centrais de energia necessárias estimado neste estudo é muito maior do que em qualquer relatório anterior. Além disso, as metas da política atual (por exemplo, Parlamento Europeu) apontam para que 30% do sistema global de energia e transporte seja renovável até o ano 2030. Isto é, apenas a 8,5 anos de distância, e o tempo de realização de uma nova central pode variar entre 2 a 5 anos (ou 20 anos para uma central nuclear).

    A massa das baterias de lítio necessárias para alimentar os 1390 milhões de VE propostos no Cenário F seria de 282,6 milhões toneladas. Cálculos preliminares mostram que as reservas globais do recursos necessários e ainda mais a capacidade de produção global, podem não ser suficientes para recurso a quantidade de baterias exigidas.

    Em teoria, existem reservas globais suficientes de níquel e lítio se forem usados exclusivamente para produzir baterias de lítio para veículos. Fazer apenas uma bateria para cada veículo no frota de transporte global (excluindo veículos comerciais pesados), exigiria 48,2% das reservas globais de níquel de 2018 e 43,8% das reservas globais de lítio. Também não há cobalto suficiente nas reservas atuais para atender a esta procura e mais torna-se necessário ser descoberto.

    Cada uma das 1390 milhões de baterias de lítio só poderá ter uma vida útil de 8 a 10 anos. Portanto, 8 a 10 anos após a fabricação, novas baterias de reposição serão necessárias, de uma fonte mineral extraída ou uma fonte de metal reciclado. É improvável que isso seja prático, o que sugere que toda a solução de bateria VE pode precisar ser repensada e desenvolvida uma nova solução que não seja tão intensiva em minerais.

    A energia elétrica gerada a partir de fontes solares e eólicas é altamente intermitente nas quantidade fornecidas ao longo das 24 horas e em contexto sazonal. Instalações de armazenamento de energia são necessárias se esses sistemas de geração forem usados em grande escala. O quão grande esse armazenamento de energia precisa ser, é assunto para discussão. Uma estimativa conservadora selecionada para este relatório foi de um armazenamento com capacidade para quatro semanas para energia solar e eólica apenas para gerir a temporada de inverno no hemisfério norte. Do Cenário F, a capacidade de armazenamento de energia para o sistema de energia elétrica global seria 573,4 TWh.

    Em 2018, o armazenamento através de bombagem ligado a um sistema de produção de energia hidroelétrica representou 98% da capacidade de armazenamento existente. Se este armazenamento de energia fosse entregue a conjuntos de baterias de lítio, a massa de lítio nas baterias seria 2,5 mil milhões de toneladas. Isso excede em muito as reservas globais e não é prático. Contudo, não está claro como essa energia armazenada pode ser fornecida como um sistema alternativo. Se nenhum sistema alternativo for desenvolvido, a geração de energia eólica e solar pode não ser capaz de ser ampliada para o total global proposto.

    As expectativas atuais são de que estes negócios irão substituir um complexo ecossistema de energia industrial que levou mais de um século para ser construído. O sistema atual foi construído com o suporte do sistema de fonte de energia de maior densidade calorífica que o mundo já conheceu (petróleo) em quantidades abundantes e baratas, com crédito facilmente disponível, e recursos minerais aparentemente ilimitados. A substituição necessita ser feita num momento em que comparativamente há energia muito cara, um sistema financeiro frágil saturado de dívidas, minerais insuficientes e população no mundo sem precedente, inserida num ambiente natural em deterioração. O mais desafiador de tudo, é que isto deve ser feito dentro de um algumas décadas. É opinião do autor, com base nos cálculos aqui apresentados, que isto provavelmente não se irá passar totalmente como planeado.

    Em conclusão, este relatório sugere que a substituição do sistema existente funcionando com combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão), para tecnologias renováveis, como painéis solares ou turbinas eólicas, não será possível para toda a população global. Simplesmente não há tempo nem recursos suficientes para fazer isso de acordo com os atuais objetivos definidos pelas nações mais influentes.

    O que pode ser necessário, portanto, é uma redução significativa da procura por parte das sociedades dos recursos de todos os tipos. Isto implica um contrato social muito diferente e um sistema de governança radicalmente diferente do que está em vigor atualmente. Inevitavelmente, isto leva à conclusão de que as tecnologias de energia renovável e VE existentes são apenas degraus para outra coisa e não a solução final. É recomendado que algum pensamento seja dirigido a isso e que outra coisa poderá ser.

    Simon P. Michaux

    20/Agosto/2021

    [1] Tera = milhão de milhões (1012).

    O texto integral de Assessment of the Extra Capacity Required of Alternative Energy Electrical Power Systems to Completely Replace Fossil Fuels encontra-se em https://tupa.gtk.fi/raportti/arkisto/42_2021.pdf e em https://resistir.info/livros/michaux_descarbonizacao.pdf

    Esta resenha encontra-se em resistir.info


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