sábado, 29 de agosto de 2015

Esses paraquedas sobre nossas cabeças

por Manlio Dinucci
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Protegidos pelo blecaute político-midiático, estão descendo na Europa enxames de paraquedistas em pé de guerra. Trata-se da “Swift Response” (Resposta Rápida), “o maior exercício militar da Otan de forças aerotransportadas, cerca de cinco mil homens, desde o fim da guerra fria”.
Realiza-se de 17 de agosto a 13 de setembro na Itália, Alemanha, Bulgária e Romênia, com a participação também de tropas estadunidenses, britânicas, francesas, gregas, holandesas, polonesas, espanholas e portuguesas. Naturalmente, confirma um comunicado oficial, sob a “direção do exército dos Estados Unidos”.

Para a “Resposta Rápida”, o exército dos Estados Unidos” emprega, pela primeira vez na Europa depois da guerra contra a Iugoslávia em 1999, a 82ª Divisão aerotransportada, incluindo a 173ª Brigada baseada em Vicenza (Itália). A mesma que treina desde abril, na Ucrânia, os batalhões da guarda nacional de clara composição neonazista, subordinada ao Ministério do Interior e que agora, depois de um exercício com fogo realizado na Ucrânia em seis de agosto, começa a treinar também as forças armadas “regulares” de Kíev”.

A “Swift Response” foi precedida em agosto pelo exercício militar bilateral EUA-Lituânia “Uhlan Fury”, acompanhado por um semelhante na Polônia e pela denominada “Allied Spirit”, realizado na Alemanha, sempre sob o comando estadunidense, com a participação de tropas italianas, georgianas e até mesmo sérvias. E, pouco depois da “Swift Response”, se desenvolverá de três de outubro a seis de novembro uma das maiores manobras militares da Otan, a “Trident Juncture 2015”, que mobilizará sobretudo na Itália, Espanha e em Portugal forças armadas de mais de 30 países aliados e parceiros, com 36 mil homens, mais de 60 navios e 10 aviões.

Quem explica o escopo dessas manobras militares da Otan sob o comando dos Estados Unidos, que se desenvolvem doravante sem interrupção na Europa, é o novo chefe do estado maior do exército dos Estados Unidos, o general Mark Mil­ley. Depois de ter definido a Rússia como uma “ameaça existencial porque é o único país do mundo com uma capacidade nuclear no nível de destruir os Estados Unidos” (audiência no Senado em 21 de julho), no seu discurso de posse (14 de agosto) declarou: “A guerra, o ato político com o qual uma parte tenta impor a sua vontade a outra, se decide sobre um terreno em que as pessoas vivem. E é sobre esse terreno que o exército dos Estados Unidos, o mais bem armado e treinado do mundo, não deve jamais fracassar”. O “terreno” de onde são lançadas as operações dos Estados Unidos e da Otan para o Leste e o Sul, mais uma vez, é o europeu. No sentido não apenas militar, mas também político.

É emblemático o fato de que a UniãoEuropeia como tal participa da “Trident Juncture 2015” (com um silêncio político geral). Não é de espantar, uma vez que 22 dos 28 países da União Europeia são membros da Otan e o artigo 42 do Tratado sobre a União Europeia reconhece o seu direito de realizar “a defesa comum por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte”, que (sublinha o protocolo número 10) “continua sendo o fundamento da defesa coletiva da União Europeia”.

A Otan – cujo comandante supremo aliado na Europa é sempre nomeado pelo presidente dos Estados Unidos e cujas demais posições de mando estão nas mãos dos Estados Unidos - serve para manter a União Europeia na esfera de influência estadunidense. As oligarquias europeias tiram vantagem disto, pois em troca da “fidelidade atlântica” de seus países participam na divisão dos lucros e áreas de influência com as estadunidenses. Enquanto isso, os povos europeus são arrastados a uma perigosa e custosa nova guerra fria contra a Rússia e a situações críticas, como a do dramático êxodo de fugitivos provocado pelas guerras dos Estados Unidos e da Otan na Líbia e na Síria.
 
Tradução
José Reinaldo Carvalho
Editor do site Vermelho
Fonte
Il Manifesto (Itália)

aqui:http://www.voltairenet.org/article188548.html

Goldman Sachs – Otan S/A

por Manlio Dinucci

Depois de ser secretário geral da Otan de 2009 a 2014 (sob comando estadunidense), Anders Fogh Rasmussen assumiu o posto de consultor internacional da Goldman Sachs, o mais poderoso banco dos Estados Unidos.


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O mais poderoso banqueiro privado do mundo, Lloyd Blankfein, presidente do Goldman Sachs, disse que "fazer o trabalho de Deus" (sic). Para punir os pecadores, ele recorreu aos serviços de Anders Fogh Rasmussen, ex-secretário-geral da NATO.
O currículo de Rasmussen é prestigioso. Como primeiro-ministro dinamarquês (2001-2009), empenhou-se pela “ampliação da União Europeia e da Otan contribuindo para a paz e a prosperidade na Europa”. Como secretário geral, representou a Otan no seu “pico operativo com seis operações em três continentes”, entre as quais a guerra no Afeganistão e na Líbia, e, “em resposta à agressão russa à Ucrânia, reforçou a defesa coletiva a um nível sem precedentes desde o fim da guerra fria”. Além disso, Rasmussen apoiou a “parceria transatlântica sobre comércio e investimentos (Ttip)” entre os Estados Unidos e a União Europeia, base econômica de “uma comunidade transatlântica integrada”.
Competências preciosas para a Goldman Sachs, cuja estratégia é ao mesmo tempo financeira, política e militar. Seus dirigentes e consultores, depois de anos de trabalho no grande banco, foram levados a postos chave nos governos dos Estados Unidos e outros países: entre estes Mário Draghi (governador do Banco da Itália, depois presidente do Banco Central Europeu) e Mário Monti, (nomeado chefe de governo pelo presidente Napolitano em 2011).

Portanto, não é de espantar que o Goldman Sachs tenha a mão na massa nas guerras conduzidas pela Otan. Por exemplo, na guerra contra a Líbia: primeiramente, apropriou-se (causando perdas de 98%) de fundos estatais de 1,3 bilhão e dólares, que Trípoli lhe tinha confiado em 2008; assim, participou em 2011 na grande rapina dos fundos soberanos líbios (estimados em cerca de 150 bilhões de dólares) que os Estados Unidos e a União Europeia “congelaram” no momento da guerra. E, para gerenciar através do controle do “Banco Central da Líbia” os novos fundos recebidos das exportações de petróleo, o Goldman Sachs se apresta a desembarcar na Líbia com a projetada operação EUA/Otan sob a bandeira da União Europeia e “condução italiana”.

Com base em uma lúcida “teoria do caos”, se desfruta a caótica situação provocada pela guerra contra a Líbia e a Síria, instrumentalizando e canalizando para a Itália e a Grécia (entre os países mais débeis da União Europeia) o trágico êxodo dos imigrantes decorrente de tais guerras. Isso serve como arma de guerra psicológica e pressão econômica para demonstrar a necessidade de uma “operação humanitária de paz”, visando na realidade à ocupação militar da zona estrategicamente e economicamente mais importantes da Líbia.

Como a Otan, o Goldman Sachs é funcional à estratégia de Washington que quer uma Europa submetida aos Estados Unidos. Depois de ter contribuído com o embuste das hipotecas subprime provocando a crise financeira, que dos Estados Unidos chegou à Europa, o Goldman Sachs especulou sobre a crise europeia, aconselhando “os investidores a tirar vantagem da crise financeira na Europa” (conforme o relatório reservado divulgado pelo Wall Street Journal em 2011).

E, segundo documentada pesquisa efetuada em 2010-2012 pelos veículos de mídia Der Spiegel, New York Times, BBC e Bloomberg News, o Goldman Sachs camuflou com complexas operações financeiras (“empréstimos ocultos” em condições leoninas e venda de “títulos tóxicos” estadunidenses), o verdadeiro crescimento da dívida grega. Nesse negócio, o Goldman Sachs manobrou mais habilmente do que a Alemanha, o Banco Central Europeu e o FMI, cuja faca no pescoço da Grécia é evidente.

Recrutando Rasmussen, com a rede internacional de relações políticas e militares por ele tecida durante os cinco anos em que esteve à frente da
 
Tradução
José Reinaldo Carvalho
Editor do site Vermelho
Fonte
Il Manifesto (Itália)

aqui:http://www.voltairenet.org/article188481.html

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Michael Löwy: Capitalismo e democracia na Europa


Vamos começar com uma citação de um ensaio sobre a democracia burguesa na Rússia, escrita em 1906, após a derrota da primeira revolução, de 1905:

“É profundamente ridículo acreditar que existe uma afinidade eletiva entre o grande capitalismo, da maneira como atualmente é importado para a Rússia, e bem estabelecido nos Estados Unidos […], e a ‘democracia’ ou ‘liberdade’ (em todos os significados possíveis da palavra); a questão verdadeira deveria ser: como essas coisas podem ser mesmo ‘possíveis’, a longo prazo, sob a dominação capitalista?”1

Quem é o autor deste comentário perspicaz? Lenin, Trotsky ou, talvez, Plekhanov? Na verdade, ele foi feito por Max Weber, o conhecido sociólogo burguês. Apesar de Weber nunca ter desenvolvido essa ideia, ele está sugerindo aqui que existe uma contradição intrínseca entre o capitalismo e a democracia.

A historia do século XX parece confirmar essa opinião: em muitos momentos, quando o poder da classe dominante pareceu ameaçado pelo povo, a democracia foi jogada de lado como um luxo que não pode ser mantido, e substituída pelo fascismo — na Europa, nos anos 1920 e 1930 — ou por ditaduras militares, como na América Latina, entre os anos 1960 e 1970.
Por sorte, esse não é o caso da Europa atual, mas temos, particularmente nas últimas décadas, com o triunfo do neoliberalismo, uma democracia de baixa intensidade, sem conteúdo social, que se reduziu a uma concha vazia. É claro que ainda temos eleições, mas elas parecem ser de apenas um partido, o PMU, Partido do Mercado Unido, com duas variantes que apresentam diferenças limitadas: a versão de direita neoliberal e a de centro-esquerda social liberal.

O declínio da democracia é particularmente visível no funcionamento oligárquico da União Europeia, onde o Parlamento Europeu tem muito pouca influência, enquanto o poder está firmemente nas mãos de corpos não eleitos, como a Comissão Europeia ou o Banco Central Europeu. De acordo com Giandomenico Majone, professor do Instituto Europeu de Florença, e um dos teóricos semioficiais da UE, a Europa precisa de “instituições não-majoritárias”. Ou seja, “instituições públicas que, propositalmente, não sejam responsáveis nem diante dos eleitores, nem de seus representantes eleitos”: essa é a única maneira de nos proteger contra “a tirania da maioria”. Em tais instituições, “qualidades tais quais expertise, discrição profissional e coerência […] são muito mais importantes que a responsabilidade democrática e direta”.2 Seria difícil imaginar uma desculpa mais descarada da natureza oligárquica e antidemocrática da UE.

Com a crise atual, a democracia decaiu a seus níveis mais baixos. Em um recente editorial, o jornal francês Le Figaro escreveu que a situação é excepcional, e explica por que os procedimentos democráticos não podem ser sempre respeitados; apenas quando voltarmos aos tempos normais, poderemos restabelecer sua legitimidade. Temos, então, um tipo de “estado de exceção” econômico/político, no sentido que descreveu Carl Schmitt. Mas quem é o soberano que tem o direito de proclamar, de acordo com Schmitt, o estado de exceção?

Por algum tempo, entre 1789 e a proclamação da República Francesa, em 1792, o rei teve o direito constitucional de veto. Não importavam as resoluções da Assembleia Nacional, ou quaisquer que fossem os desejos e aspirações do povo francês: a última palavra pertencia a Sua Majestade.

Na Europa de hoje, o rei não é um Bourbon ou Habsburgo: o rei é o Capital Financeiro. Todos os atuais governos europeus — com a exceção do grego! — são funcionários deste monarca absolutista, intolerante e anti-democrático. Quer sejam de direita, “extremo-centro” ou pseudoesquerda, quer sejam conservadores, democratas cristãos ou social-democratas, eles servem fanaticamente ao poder de veto de Sua Majestade.

O soberano absoluto e total hoje, na Europa, é, no entanto, o mercado financeiro global. Os mercados financeiros ditam a cada país os salários e aposentadorias, os cortes em despesas sociais, as privatizações, a taxa de desemprego. Há algum tempo, eles nomeavam diretamente os chefes de governo (Lucas Papademos na Grécia e Mario Monti na Itália), escolhendo os chamados “experts”, que eram servos fiéis.

Vamos olhar mais atentamente a alguns desses tais todos-poderosos “experts”. De onde eles vêm? Mario Draghi, chefe do Banco Central Europeu, é um antigo administrador do banco internacional de investimentos Goldman Sachs; Mario Monti, ex Comissário Europeu, também é um antigo conselheiro da Goldman Sachs. Monti e Papademos são membros da Comissão Trilateral, um clube muito seleto de políticos e banqueiros que discutem estratégias internacionais. O presidente desta comissão é Peter Sutherland, antigo Comissário Europeu, e antigo administrador no Goldman Sachs; o vice-presidente, Vladimir Dlouhr, antigo Ministro da Economia tcheco, é agora conselheiro na Goldman Sachs para a Europa Oriental. Em outras palavras, os “experts” que comandam a “salvação” da Europa da crise foram funcionários de um dos bancos diretamente responsáveis pela crise financeira iniciada nos Estados Unidos, em 2008. Isso não significa que existe uma conspiração para entregar a Europa à Goldman Sachs: apenas ilustra a natureza oligárquica dos “experts” de elite que comandam a UE.

Os governos da Europa estão indiferentes aos protestos públicos, greves e manifestações maciças. Não se importam com a opinião ou os sentimentos da população; estão apenas atentos — extremamente atentos — à opinião e sentimentos dos mercados financeiros e seus funcionários, as agências de avaliação de risco. Na pseudodemocracia europeia, consultar o povo em um referendo é uma heresia perigosa, ou pior, um crime contra o Deus Mercado. O governo grego, liderado pelo Syriza, a Coalizão da Esquerda Radical, foi o único que teve coragem para organizar tal consulta popular.

O referendo grego não tinha apenas a ver com questões fundamentais econômicas e sociais, foi também e acima de tudo sobre democracia. Os 61,3% de gregos que disseram não são uma tentativa de desafiar o veto real das finanças. Esse poderia ter sido o primeiro passo em direção à transformação da Europa, de monarquia capitalista a república democrática. Mas as atuais instituições da oligarquia europeia têm pouca tolerância à democracia. Imediatamente puniram o povo grego por sua tentativa insolente de recusar a austeridade. A “catastroika” está de volta à Grécia com uma vingança, impondo um programa brutal de medidas economicamente recessivas, socialmente injustas e humanamente insustentáveis. A direita alemã fabricou este monstro, e forçou ao povo grego com a cumplicidade de falsos “amigos” da Grécia (entre outros, o presidente francês, François Hollande, e o primeiro-ministro da Itália Matteo Renzi).
* * *
Enquanto a crise agrava-se, e o ultraje público cresce, existe uma crescente tentação, por parte de muitos governos, de distrair a atenção pública para um bode expiatório: os imigrantes. Deste modo, estrangeiros sem documentos, imigrantes de países não-europeus, muçulmanos e ciganos estão sendo apresentados como a principal ameaça aos países. Isso abre, é claro, enormes oportunidades para partidos racistas, xenófobos, semi ou completamente fascistas, que estão crescendo, e já são, em muitos países, parte do governo — uma ameaça muito séria à democracia europeia.

A única esperança é a crescente aspiração por uma outra Europa, que vá além das políticas de competição selvagem e austeridade brutal, e das dívidas eternas a serem pagas. Outra Europa é possível — um continente democrático, ecológico e social. Mas não será alcançado sem uma luta comum das populações europeias, que ultrapasse as barreiras étnicas e os limites estreitos do Estado-nação. Em outras palavras, nossa esperança para o futuro é a indignação popular, e os movimentos sociais, que estão em ascensão, particularmente entre os jovens e mulheres, em muitos países. Para os movimentos sociais, está ficando cada vez mais óbvio que a luta pela democracia é contra o neoliberalismo e, em última análise, contra o próprio capitalismo, um sistema antidemocrático por natureza, como Max Weber já apontou, cem anos atrás.

* Escrito originalmente em inglês. A tradução é de Gabriela Leite, para o portal OutrasPalavras.

NOTAS
1. Max Weber, «Zur Lage der bürgerlichen Demokratie in Russland»,Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik,     Band 22, 1906, Beiheft, p. 353.
2. Citado in Perry Anderson, Le Nouveau Vieux Monde, Marseile, Agone, 2011, pp. 154,158.

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aqui:http://blogdaboitempo.com.br/2015/08/20/michael-lowy-capitalismo-e-democracia-na-europa/

domingo, 23 de agosto de 2015

Guerras híbridas, novo instrumento dos EUA


Capa de 'Hybrid Wars' Andrew Korybko, analista político internacional e jornalista da Sputnik, acaba de publicar o seu primeiro livro: Guerras híbridas: A abordagem adaptativa indirecta à mudança de regime (Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach to Regime Change) [1] A obra foi revista pela Academia Diplomática da Rússia e divulgada com o apoio da Universidade da Amizade dos Povos da Rússia, onde o autor é membro do conselho de peritos do Instituto de Investigação Estratégica e Previsões. Seu trabalho pormenorizado prova que as Revoluções Coloridas são uma nova forma de guerra engendrada pelos EUA, sendo tudo – desde a sua constituição organizacional até a aplicação geopolítica – orientado por estrategas americanos. Mas ao contrário de outros investigadores anteriores que trataram do assunto, Andrew leva o seu trabalho mais além e utiliza os exemplos mais recentes da Guerra na Síria e do EuroMaidan para argumentar que os EUA conceberam um segundo passo, mais perigoso, para a sua caixa de ferramentas para mudanças de regime.

As Guerras híbridas, com as classifica, ocorrem quando os EUA combinam juntas suas estratégias de Revolução Colorida e de Guerra Não Convencional a fim de criar uma caixa de ferramentas unificada para executar mudanças de regime em estados alvo. Quando uma tentativa de Revolução Colorida falha, como aconteceu miseravelmente na Síria em 2011, o plano de substituição é implementar uma Guerra Não Convencional construída directamente sobre a infraestrutura social e os métodos organizativos anteriores. No caso do EuroMaisan, Andrew cita novas fontes ocidentais tais como a revista Newsweek, o Guardian e a Reuters que recordam a todos que, nos dias imediatamente anteriores à conclusão com êxito do golpe, a Ucrânia Ocidental estavam em plena rebelião contra o governo central e a cena foi preparada por uma Guerra Não Convencional do tipo sírio no coração da Europa do Leste. Se não tivesse havido o derrube súbito do presidente Yanukovich, os EUA estavam preparados para deitar o país abaixo no caminho de cenário sírio, o que teria sido sua segunda aplicação completa da Guerra Híbrida.

A investigação revolucionária de Andrew mostra no essencial que foram os EUA, não a Rússia, que iniciaram a utilização de Guerras Híbridas e que, dadas as suas descobertas provadas, é irresponsável chamar o alegado envolvimento da Rússia na crise ucraniana de "guerra híbrida". De facto, os EUA está muito à frente de qualquer outro país na prática deste novo método de guerra, pois nenhum outro estado tentou uma Revolução Colorida até o presente, muito menos transitar para uma Guerra Não Convencional quando seus planos iniciais de mudança de regime fracassaram. Apesar de muitos pensarem que tais ocorrências são espontâneas e casuais, Andrew documenta como as Guerra Híbridas não só são criadas desde o início pelos EUA como também elas são instaladas especificamente em áreas onde forem mais geo-estrategicamente vantajosas para a promoção das suas políticas unipolares.

Assim, Andrew não só descreve a própria essência das Guerras Híbridas como, na parte final do seu livro, prevê lugares onde acredita que possam acontecer a seguir. Ele introduz o conceito pioneiro do Arco Colorido (Color Arc), uma linha contínua de estados que se estende desde a Hungria até o Quirguistão e onde o travar de Guerras Híbridas prejudicaria mais gravemente os interesses nacionais da Rússia. Esta é a primeira vez que as Revoluções Coloridas foram analisadas através de um prisma geopolíticos e põe à vista um modo completamente diferente de encarar a utilização desta arma. Este novo paradigma é absolutamente essencial para entender a nova abordagem dos EUA à mudança de regime e a forma, tanto física como geopolítica, que se espera que venha a tomar nos anos vindouros.

"Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach To Regime Change" pode ser obtido em brochura na Universidade da Amizade dos Povos, em Moscovo. Como ele oferece o seu trabalho gratuitamente, Andrew gentilmente pede aos leitores que apreciem o livro que considerem um donativo para esforços de caridade que apoiam directamente as vítimas das Guerras Híbridas dos EUA na Síria e na Ucrânia. Ele espera que o vosso generoso donativo possa ajudar a que os sofrimentos infligidos àqueles países pelas Guerras Híbridas americanas. 

O autor pode ser contactado através do email korybko.e@my.mgimo.ru .
 

[1] O livro pode ser descarregado também em resistir.info/livros/livros.html

O original encontra-se em orientalreview.org/press-release/


Este comunicado de imprensa encontra-se em http://resistir.info/ .

sábado, 22 de agosto de 2015

ATROCIDADE POLÍTICA




 
A mais grave das atrocidades políticas entre as que continuam a ser cometidas em Portugal, com a banalidade de quem bebe um copo de água, está a ficar soterrada sob o chorrilho de intrigas e boçalidades proferidas neste período pré-eleitoral, no qual a discussão se trava em reles tons futeboleiros.
Quando o deputado e candidato governamental Carlos Peixoto disse o que lhe vai na alma fascista, vertendo em palavras a essência da política do governo em relação aos reformados, pensionistas e idosos do país – emigrantes incluídos – as centrais de propaganda, atentas às inconveniências que podem perturbar o desejado andamento do circo eleitoral, chutaram rapidamente o assunto para a secção das fofocas.
No entanto, o que Carlos Peixoto disse, deitando as culpas do estado a que o país chegou para cima da “peste grisalha”, é um acto político relevante, grave e criminoso, que não pode cair no silêncio e no esquecimento. A declaração de Peixoto é todo um programa político governamental, é a exposição crua de uma mentalidade de governo, vale por mil discursos de ministros, milhões de arengas de deputados, biliões de promessas mentidas ao domicílio de cada eleitor.
“Peste grisalha” representa, no cenário político português, o mesmo que a “praga” de que o primeiro ministro britânico Cameron se queixa a propósito dos refugiados que pretendem encontrar na Europa o abrigo para as guerras levadas aos seus países por essa mesma Europa. São expressões de mentes segregacionistas, da mesma massa de que se fazem os exterminadores para quem cada ser humano é descartável e se reduz à expressão simples de um cifrão.
A “peste grisalha” a quem o candidato governamental Peixoto deseja que seja breve o caminho para os cemitérios ou para os fornos crematórios, é culpada de uma coisa, sim senhoras e senhores: a de ter conseguido que o país ainda exista apesar dos desmandos das cliques governamentais que o assaltaram. Essa “peste grisalha” ainda aturou décadas de vigência dos transtornos psicopatas fascistas, recebeu como bónus alguns meses do ar livre de Abril para, logo depois, voltar a ser perseguida pelo extenso bando de cleptocratas que, desde a chamada do FMI e o aprisionamento do socialismo na gaveta aos aios da senhora Merkel, mais não fez do que sugá-la. Essa “peste grisalha” assistiu à oferta de bens públicos e nacionalizados aos que sempre saquearam o país, à venda ao desbarato das riquezas e empresas que também lhe pertenciam; observou, com impotência absoluta, a desgraçada entrada na CEE e a criminosa invasão do euro que nos destruiu os campos, os mares e a indústria; e agora é obrigada a pagar parte de leão dos desvarios de uma dívida incobrável pela qual não é responsável, dívida essa que resulta de um regime em que a democracia apodreceu em forma de cleptocracia.
“Peste grisalha” é um autêntico programa de governo, repito. Vale por uma agenda real que se sobrepõe a toda a qualquer promessa dirigida aos portugueses menos jovens pelos candidatos do arco governamental. O conceito de “peste grisalha” é um dos que ficará depois de esfumados os ecos das romarias eleitorais de uma democracia virtual. O conceito de “peste grisalha” é uma atrocidade política, é certo, mas é a única declaração de princípios de quem não tem quaisquer outros princípios, palavra de ordem sagrada para os que pretendem continuar com as atrocidades governamentais.
As acusações à “peste grisalha” ficam até agora, por muito infames que sejam, como os únicos lampejos de verdade apresentados aos eleitores por todas as áreas que se dizem vocacionadas para governar, as mesmas para quem um euro é um euro e uma pessoa é um estorvo, a não ser que já se tenha rendido a beijar o chão pisado pelos donos disto tudo.

aqui:http://mundocaohoje.blogspot.pt/2015/08/atrocidade-politica.html

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A campanha eleitoral e a politização



por João Vilela
 
. Pode parecer contraditório que o principal momento de participação política do proletariado na democracia burguesa, as eleições burguesas, seja um momento em que se tenta por todos os meios que a política não esteja presente. Mas a contradição é apenas aparente: no momento, único e sem exemplo, em que a burguesia finge que entrega poder sobre o seu aparelho de Estado ao proletariado, dizendo-lhe que com uma cruz num papel pode mudar a sua vida, ela garante, através de um esforço paciente e diário, que a decisão tomada tem seja que conteúdo for, menos um conteúdo político.

Algumas palavras devem ser ditas sobre a real importância das eleições burguesas. Palavras tanto mais importantes quando vivemos um contexto histórico em que uma vitória eleitoral da esquerda, na Grécia, se saldou na aplicação, por essa mesma esquerda, do mesmíssimo plano que os partidos burgueses gregos teriam aplicado no seu lugar. A eleição não tem poderes mágicos, não é uma varinha de condão que transforma a sociedade, não é a chegada ao poder. Um Governo saído de eleições burguesas tem acesso à chefia do Estado burguês. E o Estado burguês é uma máquina cuidadosamente construída, oleada, afiada, configurada, para garantir a dominação burguesa sobre os trabalhadores. Um Governo anticapitalista que tente usar o Estado burguês contra a burguesia, ou é sacudido com uma patada (como foram Allende, Zelaya, Mossadeqh, entre tantos outros) ou é compelido pela força das coisas a aplicar o projecto político da burguesia (como aconteceu ao Syriza na Grécia, ao PT no Brasil, e a tantos outros em tantos lugares). Só a montagem, a mobilização, a organização, e a força do movimento de massas do proletariado pode libertá-lo. E libertá-lo não tomando o Estado da burguesia para si – mas desfazendo esse mesmo Estado, até não sobrar pedra sobre pedra, e pondo no seu lugar um Estado dos trabalhadores, agora montado, construído, cuidadosamente oleado e afiado, para servir quem trabalha e derrotar quem quer a exploração de volta.

Ainda assim há um motivo forte para esvaziar de qualquer conteúdo político as eleições burguesas: só para o proletariado organizado é que o pior analfabeto, nas palavras de Brecht, é o analfabeto político. Para a burguesia, o analfabeto político é o seu melhor amigo. É a sua principal base de apoio. É a garantia de que continuará a explorar e a oprimir por muito tempo, com uma larga e pesada capa de chumbo, de crosta bruta, a soterrar os trabalhadores conscientes. Essa crosta é a da alienação, da cegueira imposta, da estupidez cultivada, da imersão em toneladas de lixo que distraem, embasbacam, prostram, e impedem de pensar os trabalhadores. Fala-se amiúde da intoxicação ideológica, e ela existe: mas mais forte – e sinceramente, mais política – que essa intoxicação é o esforço permanente e cuidadoso para que o trabalhador não pense em nada de político, tenha, de resto, a atenção demasiado ocupada com assuntos exteriores à política para que ela possa contar para os seus interesses.

Assim, quando as eleições chegam, é com os critérios de toda a massa de lixo intelectual que foi forçado a engolir que o proletariado escolhe um candidato: com base em critérios clubísticos escolhe o seu partido; com base em critérios de oratória, de fluidez, de boa aparência,com uma lógica de programa televisivo de talentos misturada com entrevista de emprego, decide em quem vai votar. A política está em absoluto ausente desta decisão. Quando muito assomam à sua (sempre vaga) tradução da escolha em palavras alguma linguagem moralista (busca seriedade, honestidade) ou técnica (procura candidatos competentes, determinados). Candidatos para gerir o sistema adequadamente, com boas palavras para os enganar e diligência em fazê-lo. Os candidatos que a burguesia lhe ensinou a escolher.

É por isso fundamental que as forças da esquerda entendam a sua tarefa central junto dos trabalhadores: a de os mobilizar, de os organizar, e de os politizar. Sem o desenvolvimento de uma consciência política profunda, sem a compreensão dos problemas de uma forma clara e plena, o proletariado não poderá assumir as suas tarefas de transformação a sociedade e derrubar a burguesia, edificando uma sociedade socialista, em que finalmente seja livre. Toda a cedência, nessa matéria, à política das vedetas, do espectáculo, da demagogia, do sentimentalismo ou de qualquer outra forma de tentar contornar esse dever de politização, será paga bem caro, e bem cedo. O exemplo do Syriza, bem como o do assumidamente eleitoralista e populista Podemos, que no Estado Espanhol já começa a retirar-se das (poucas e tímidas) posições progressistas que assumiu, são comprovação absoluta disso mesmo.

A luta dos trabalhadores pela liberdade não se resolverá nas urnas, nem em nenhum outro passo de mágica que faça com que o capitalismo exista às 8h da manhã e cesse pelas 21h, depois de contados os votos e divulgados os resultados oficiais. Essa tese, oportunista e social-democrata, deixemo-la aos Syrizas da vida. Os revolucionários sabem que o seu trabalho é árduo, diário, difícil, espinhoso – sinuoso, sim, mas com um horizonte vermelho. Não vendem ilusões. Não se servem de vedetas nem de estrelas, não tentam contornar resistências da hegemonia burguesa com exploração emocional e demagógica, não mentem, não manipulam. E um dia vencem. E quando vencem, na frente das massas, intimamente ligados com elas e assegurando que estas desempenham as suas tarefas históricas de forma empenhada e consciente, trazem à luz a única liberdade pela qual vale a pena viver.
15/Agosto/2015
 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

aqui:http://resistir.info/portugal/eleitoralismo_15ago15.html 

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

NAZISMO ECONÓMICO






 
Um estudo de uma entidade alemã, o Instituto de Investigação Económica de Leibniz, reconhece que a crise da dívida soberana grega proporcionou vantagens de pelo menos 100 mil milhões de euros à República Federal da Alemanha. De acordo com os autores da investigação, estes lucros faustosos resultam de um mecanismo simples: as más notícias sobre a situação financeira grega minimizam as taxas de juro das obrigações alemãs nos mercados e as boas notícias sobre a situação grega (onde estão?) fariam subir os juros das obrigações germânicas. Em termos corriqueiros, o sofrimento dos gregos permite à Alemanha financiar-se a preços de saldo.
As revelações deste estudo, cujo conteúdo coincide com os de outros trabalhos do género divulgados igualmente na Alemanha, representam a ínfima parte que se vai conhecendo de uma realidade clandestina e criminosa que é o assalto dos mercados financeiros internacionais, através do FMI e de instituições da União Europeia, contra o povo grego e os povos mais desprotegidos pelos seus governos – como é também o caso de Portugal.
Um assalto consumado sob o pretexto do combate às dívidas soberanas e que, através de acordos impostos pelos credores com normas e anexos clandestinos, serve para financiar bancos e outras instituições financeiras privadas graças à venda dos activos públicos e aos sacrifícios impostos às populações dos países “ajudados” – expressão cujo cinismo é próprio do léxico dos mais refinados ladrões.
Elementos sobre a dívida soberana grega apurados no âmbito da auditoria cidadã realizada para esclarecer os dados mais importantes da crise revelam que a dívida pública helénica em 2010 era de 200 mil milhões em títulos e subiu para 227 mil milhões até 2014, na sequência da intervenção da troika (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI).
Pelo caminho, e correspondendo a anexos clandestinos apensos aos acordos desenhados e impostos pela própria troika, a dívida foi transferida para credores de âmbito bilateral – 14 países europeus e o banco público alemão KfW – um processo segundo o qual grande parte do dinheiro supostamente emprestado à Grécia nem sequer chegou ao país e seguiu directamente para bancos e outras instituições financeiras privadas. Para tal activaram-se mecanismos e manigâncias tendo como base uma conta aberta para o efeito no Banco Central Europeu. Verifica-se, deste modo, que as receitas originadas pela aceleração das privatizações e os produtos da cruel austeridade serviram para financiar estabelecimentos financeiros privados e delapidar os bens públicos.
O Estado alemão não integra o grupo dos credores; a parte germânica no processo é garantida pelo KfW, um banco público alemão criado ironicamente no quadro do Plano Marshall que permitiu o relançamento económico da Alemanha no pós-guerra e que tem como presidente uma pessoa que dispensa apresentações: Wolfgang Schauble, o ministro das Finanças do governo de Merkel, um conhecido serviçal dos mercados financeiros e correspondente processo de nazismo económico, um inimigo jurado dos gregos e outros povos europeus.
Não se choquem com a expressão “nazismo económico”. Como se sabe, as dívidas soberanas dos menos poderosos e desprotegidos países da União Europeia, aumentadas e transformadas através das criminosas políticas de austeridade, são a matéria de que vive o chamado Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), que não passa de uma instituição financeira privada e especuladora com sede no Luxemburgo, criada em 2010 pela União Europeia, a pretexto da crise, para sustentar o euro e, supostamente, ajudar a combater as dívidas soberanas – aumentando-as.
O FEEF é o coração de um processo que gere os empréstimos aos países em dificuldades de maneira a que as “ajudas” sigam para as instituições financeiras privadas e os activos tóxicos onerem as dívidas públicas, no caso grego através de um fundo helénico, também privado, e transitando via Banco Central.
Como se disse, o FEEF é um fundo privado, com títulos cotáveis em bolsas, mas tem como suporte operacional a Agência Alemã de Administração de Dívida, entidade sob controlo público ao serviço de investidores privados e supervisão do Ministério das Finanças, via pela qual é possível reencontrar a tutela do omnipresente Schauble.
Os círculos fecham-se e mostram de onde vem a voz do dono disto tudo. As auditorias independentes que se vão fazendo provam a falácia do argumento segundo o qual os contribuintes alemães sustentam os vícios e desmandos dos madraços dos sulistas; o esquema das dívidas soberanas está montado segundo modelos especulativos em benefício de interesses privados com a cumplicidade de agentes públicos ao serviço dos privados, incluindo na Alemanha.
Tais mecanismos são alavancas de um sistema de germanização da Europa, que dos tempos de Hitler tem objectivos semelhantes, porém a alcançar por via financeira e económica. Por detrás do monstruoso aparelho militar do Reich estavam os expoentes da economia e dos mercados financeiros; por detrás do nazismo económico actual estão as novas gerações dos expoentes da economia e dos mercados financeiros.

aqui:http://mundocaohoje.blogspot.pt/2015/08/nazismo-economico.html

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

ESTATÍSTICAS E SONDAGENS

por


O governo da República Portuguesa, actualmente em fase de mera transição, ficou indisposto com as recentes estatísticas sobre o desemprego, isto é, custou-lhe a provar do seu próprio veneno. As quais estatísticas, como se sabe, lhe são muito favoráveis porque mascaram – não por culpa dos técnicos responsáveis – uma realidade bem mais grave que os anunciados 12,4 por cento. Estes números escondem o elevadíssimo número de cidadãos chamados “desempregados de longa duração”, que nem sequer estão registados nos centros de emprego e muitos deles já nem procuram trabalho; omitem as percentagens escandalosas de trabalho precário, uma actividade esclavagista que vale como emprego, atacando forte e feio a dignidade do trabalho e do trabalhador; e remetem para outras parcelas estatísticas o quase meio milhão de portugueses que, durante os últimos quatro anos, tiveram de fugir do país – seguindo, aliás, as sugestões do primeiro-ministro em exercício – para matarem a própria fome e a dos seus.
Mesmo assim, o governo queixa-se. Queria, por certo, estatísticas ainda mais marteladas para poder jogar com elas manipulando os eleitores a menos de dois meses de eleições gerais.
O episódio é exemplar sobre o regime em que vivemos, não apenas em Portugal mas em toda a União Europeia. O regime dos números contra as pessoas, a vigência de uma realidade paralela que não poucas vezes, cozinhada com a propaganda, deturpa e mistifica a vida real. Misturem-se estatísticas com sondagens, temperem-se com doutos debates, sábias palestras e as irrepreensíveis conversas em família dos sociólogos e sabichões oficiais da nação e teremos um caldo de números que, se for preciso, nos faz ver o mundo ao contrário.
Não castiguemos os mensageiros por tão perversas mensagens. A culpa não é de quem elabora as estatísticas, de quem faz os trabalhos de campo nas sondagens. Obter números e empacotá-los em gavetas informáticas não é pecado. O problema está na maneira como essas gavetas são arrumadas e os seus conteúdos politicamente interpretados.
O ultraje existe no facto de um primeiro-ministro esgrimir com um décimo a mais ou a menos de um índice de desemprego quando as pessoas e as famílias atingidas por essa décima não lhe merecem o mínimo respeito, como se não existissem. O crime está no facto de uma décima a mais ou a menos numa sondagem poder vir a ser usada pelos que se acham com o direito eterno a governar como pretexto para refinar mentiras pré-eleitorais que depois se transformarão em aldrabices governamentais.
O regime em que vivemos, o do neoliberalismo – palavra que os praticantes começam a ter pudor em pronunciar – é o dos números. O regime dos números absolutos e muitas vezes virtuais contra as pessoas reais. É o sistema da frieza aritmética contra os direitos humanos.
Os números das estatísticas e das sondagens são armas de arremesso usadas pelo chamado “arco da governação” contra os cidadãos, o artifício de transformar as pessoas num imenso rebanho acéfalo conduzido por pastores tecnocratas que agem como burros à volta de uma nora.
Transformar um dado estatístico ou o resultado de uma qualquer sondagem num tema crucial de debate é um comportamento perverso, utilizado para desviar a política para os terrenos virtuais, furtando-a à discussão dos assuntos que dizem respeito às pessoas reais.

As estatísticas e as sondagens tal como são usadas pelos políticos dominantes são imitações reles da democracia. E há muito que o Sérgio Godinho nos adverte: cuidado com as imitações!
 

domingo, 2 de agosto de 2015

Assange: a história não contada de uma luta heróica pela justiça


por John Pilger

Este artigo é uma versão actualizada da investigação feita em 2014 por John Pilger, com a história não contada de uma campanha implacável – na Suécia e nos EUA – para recusar justiça a Julian Assange e silenciar a WikiLeaks:   uma campanha que agora atinge uma etapa perigosa. 
 
Julian Assange. O cerco de Knightsbridge [NR] é símbolo de uma injustiça brutal e de uma farsa repugnante. Durante três anos, um cordão policial em torno da Embaixada do Equador em Londres serviu só para ostentar o poder do estado. Ele já custou £12 milhões. A caça é um australiano que não é acusado de qualquer crime, um refugiado cuja única segurança é a sala que lhe foi dada por um corajoso país sul-americano. O seu "crime" foi ter iniciado uma onda de verdade numa era de mentiras, cinismo e guerra.

A perseguição a Julian Assange está prestes a inflamar-se outra vez pois entra numa etapa perigosa. A partir de 20 de Agosto, três quartos do processo do promotor sueco contra Assange quanto a uma [alegada] má conduta sexual em 2010 desaparecerá pois a lei das prescrições o determina. Ao mesmo tempo, a obsessão de Washington com Assange e a WikiLeaks intensifica-se. Na verdade, é a vingativa potência americana que constitui a maior ameaça – como Chelsea Manning e aqueles ainda mantidos em Guantanamo podem confirmar.

Os americanos estão a perseguir Assange porque a WikiLeaks revelou seus crimes monstruosos no Afeganistão e no Iraque:   a matança por atacado de dezenas de milhares de civis, que eles encobriam, e o seu desprezo pela soberania e o direito internacional, como demonstrado incisivamente pela fuga dos seus telegramas diplomáticos. A WikiLeaks continua a revelar a actividade criminosa dos EUA, tendo acabado de publicar intercepções top secret dos EUA – relatórios de espiões americanos pormenorizando chamadas telefónicas privadas dos presidentes da França e da Alemanha, bem como de outros altos responsáveis, relativas à política interna e assuntos económicos europeus.

Nada disto é ilegal sob a Constituição dos EUA. Como candidato presidencial em 2008, Barack Obama, então professor de direito constitucional, louvou os denunciantes como "parte de uma democracia saudável [que] devem ser protegidos de represálias". Em 2012, na campanha da reeleição o presidente Barack Obama jactou-se no seu sítio web de ter processado mais denunciantes nos seu primeiro mandato do que todos os outros presidentes dos EUA somados. Antes mesmo de Chelsea Manning ter tido um julgamento, Obama declarou o denunciante como culpado. Ele foi a seguir sentenciado a 35 anos de prisão, tendo sido torturado durante a sua longa detenção anterior ao julgamento.

Há pouca dúvida de que se os EUA pusessem suas mãos sobre Assange, um destino semelhante o aguardaria. Ameaças de captura e assassinato de Assange tornaram-se a moeda corrente dos extremistas políticos nos EUA depois de o vice-presidente Joe Biden ridiculamente caluniar o fundador da WikiLeaks como "ciber-terrorista". Aqueles que duvidam do grau de brutalidade que Assange pode esperar deveriam recordar a aterragem forçada do avião do presidente boliviano em 2013 – por se acreditar erradamente que transportava Edward Snowden.

Segundo documentos divulgados por Snowden, Assange está numa "Lista de alvos humanos a caçar". A ânsia de Washington para obtê-lo, dizem telegramas diplomáticos australianos, é "sem precedentes na escala e na natureza". Em Alexandria, Virgínia, um grande júri passou cinco anos a tentar imaginar um crime pelo qual Assange pudesse ser processado. Isto não é fácil. A Primeira Emenda à Constituição dos EUA protege editores, jornalistas e denunciantes.

Confrontado com esta barreira constitucional, o Departamento de Justiça imaginou acusações de "espionagem", "conspiração para cometer espionagem", "conversão" (roubo de propriedade do governo), "fraude e abuso computacional" (hacking) e "conspiração" geral. A lei do Espionage Act inclui disposições de prisão perpétua e pena de morte.

A capacidade de Assange para defender-se neste mundo kafkiano foi prejudicada pelo facto de os EUA terem declarado o seu caso como segredo de estado. Em Março, um tribunal federal em Washington impediu a divulgação de toda informação acerca da investigação de "segurança nacional" contra a WikiLeaks, porque estava "activa e em andamento" e causaria danos ao "iminente processo" contra Assange. O juiz, Barbara J. Rosthstein, disse que era necessário mostrar "deferência apropriada para com o executivo em matérias de segurança nacional". Esta é a "justiça" feita por um simulacro de tribunal (kangaroo court).

Marianne Ny. O acto que suporta esta farsa sombria está na Suécia, desempenhado pela promotora sueca Marianne Ny. Até recentemente, Ny recusava-se a cumprir um procedimento europeu de rotina que requeria viajar a Londres a fim de interrogar Assange e assim avançar o caso. Durante quatro anos e meio Ny nunca explicou adequadamente porque se recusava a vir a Londres, assim como as autoridades suecas nunca explicaram porque se recusavam a dar a Assange uma garantia de que não o extraditariam para os EUA sob um esquema secreto acordado entre Estocolmo e Washington. Em Dezembro de 2010, The Independent revelou que os dois governos haviam discutido antecipadamente sua extradição para os EUA.

Contrariando a sua reputação da década de 1960 como bastião liberal, a Suécia aproximou-se tão estreitamente de Washington que tem permitido "rendições" secretas da CIA – incluindo a deportação ilegal de refugiados. A rendição e subsequente tortura de dois refugiados políticos egípcios em 2001 foram condenadas pelo Comité da ONU contra a Tortura, pela Amnistia Internacional e pelo Human Rights Watch. A cumplicidade e duplicidade do estado sueco estão documentadas em sucessivas litigações civis e em telegramas da WikiLeaks. No Verão de 2010, Assange fugiu para a Suécia a fim de falar acerca de revelações da WikiLeaks acerca da guerra no Afeganistão – na qual a Suécia tinha forças sob comando estado-unidense.

"Documentos divulgados pela WikiLeaks desde que Assange foi para a Inglaterra", escreveu Al Burke, editor do Nordic New Network online, uma autoridade sobre as múltiplas reviravoltas e perigos enfrentados por Assange, "indicam claramente que a Suécia submeteu-se sistematicamente à pressão dos Estados Unidos em matérias relativas a direitos civis. Há toda a razão de preocupação em que se Assange for tomado em custódia pelas autoridades suecas, ele podia ser entregue aos Estados Unidos sem a devida consideração dos seus direitos legais".

Por que a promotora sueca não resolveu o caso Assange? Muitos na comunidade legal na Suécia acreditam que o seu comportamento é inexplicável. Outrora implacavelmente hostil a Assange, a imprensa sueca tem publicado manchetes tais como: "Vá para Londres, pelo amor de Deus".

Por que ela não foi? Mais exactamente, por que não permitirá ela que o tribunal sueco tenha acesso a centenas de mensagens SMS que a polícia extraiu do telefone de uma das duas mulheres envolvidas nas alegações da má conduta? Por que ela não as passa para as mãos dos advogados suecos de Assange? Ela diz que não lhe é legalmente requerido fazer isso até que uma acusação formal seja apresentada e ela o tiver interrogado. Então, por que ela não o interroga? E se ela o interrogasse, as condições que exigiria dele e dos seus advogados – que eles não poderiam contestar – fariam da injustiça uma quase certeza.

Num ponto da lei, o Supremo Tribunal Sueco decidiu que Ny pode continuar a obstruir na questão vital das mensagens SMS. Isto agora irá ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos. O que Ny teme é que as mensagens SMS destruirão o seu processo contra Assange. Uma das mensagens torna claro que uma das mulheres não queria quaisquer acusações contra Assange, "mas a polícia ansiava em conseguir a sua retenção". Ela ficou "chocada" quando eles o prenderam porque ela apenas "queria que fizesse um teste [de HIV]". Ela "não queria acusar JA de qualquer coisa" e "foi a polícia que inventou as acusações". (Numa declaração como testemunha, ela é citado como tendo dito que fora "atropelada pela polícia e outros em torno dela").

Nenhuma das duas mulheres afirmou que fora violada. Na verdade, ambas negaram que tivessem sido violadas e uma enviou uma mensagem pelo Twitter a dizer "Não fui violada". Que elas foram manipuladas pela polícia e que as suas vontades foram ignoradas é evidente – não importa o que possam dizer agora os seus advogados. Certamente ambas são vítimas de uma saga que arruína a própria reputação da Suécia.

Para Assange, seu único julgamento tem sido o julgamento dos media. Em 20 de Agosto de 2010, a polícia sueca abriu uma "investigação de violação" e imediatamente – e ilegalmente – contou aos tablóides de Estocolmo que havia uma autorização (warrant) para a prisão de Assange pela "violação de duas mulheres". Esta foi a notícia posta a correr em todo o mundo.

Em Washington, um sorridente secretário da Defesa, Robert Gates, disse aos repórteres que a prisão "soa como boa notícia para mim". Contas do Twitter associadas ao Pentágono descrevem Assange como um "violador" e um "fugitivo".

Menos de 24 horas depois, a Promotora Chefe de Estocolmo, Eva Finne, assumiu o comando da investigação. Ela não desperdiçou tempo em cancelar o mandato de prisão, dizendo "Não acredito que haja qualquer razão para suspeitar que ele cometeu violação". Quatro dias depois, ela descartou também a investigação de violação, dizendo: "Não há suspeita de qualquer crime que seja". O processo foi encerrado.

Entra em cena Claes Borgstrom, um político importante do Partido Social-Democrata então a posicionar-se como candidato na iminente eleição geral sueca. Poucos dias depois de a promotora chefe encerrar o caso, Borgstrom, um advogado, anunciou aos media que estava a representar as duas mulheres e que havia procurado uma promotora diferente na cidade de Gotemburgo. Esta era Marianne Ny, à qual Borgstrom conhecia bem, pessoalmente e politicamente.

No dia 30 de Agosto, Assange compareceu voluntariamente a uma esquadra de polícia em Estocolmo e respondeu a todas as perguntas que lhe fizeram. Ele entendeu que era o fim do assunto. Dois dias depois, Ny anunciou que estava a reabrir o caso. Um repórter sueco perguntou a Borgstrom porque o caso prosseguia quando já havia sido arquivado, citando uma das mulheres como tendo disto que não fora violada. Ele respondeu: "Ah, mas ela não é uma advogada". O advogado australiano de Assange, James Catlin, respondeu: "Isto é de gargalhadas... É como se eles inventassem para irem em frente"

No dia em que Marianne Ny reactivou o caso, o chefe do serviço de inteligência militar sueco – o qual tem a sigla MUST – denunciou publicamente a WikiLeaks num artigo intitulado "WikiLeaks [é] uma ameaça para nossos soldados". Assange foi advertido que o serviço de inteligência sueca, SAPO, fora informado pelo seu parceiro dos EUA que os acordos de partilha de inteligência EUA-Suécia seriam "cortados" se a Suécia o abrigasse.

Durante cinco semanas, Assange esperou na Suécia para que a nova investigação seguisse o seu curso. The Guardian estava então à beira de publicar os "War Logs" do Iraque, baseado nas revelações da WikLeaks", os quais Assange devia supervisionar. Seu advogado em Estocolmo perguntou a Ny se ela tinha alguma objecção à sua saída do país. Ela disse que ele era livre para deixá-lo.

Inexplicavelmente, assim que ele deixou a Suécia – na altura do interesse dos media e do público nas revelações da WikiLeaks – Ny emitiu um Mandato de Prisão Europeu (European Arrest Warrant, EAW) e um "alerta vermelho" da Interpol, normalmente utilizado para terroristas e criminosos perigosos. Publicado em cinco línguas em todo o mundo, isto assegurou o furor dos media.

Assange compareceu a uma esquadra de polícia em Londres, foi preso e passou dez dias na Wandsworth Prison, em confinamento solitário. Libertado com uma fiança de £340 mil, ele foi recebeu uma pulseira electrónica, foi-lhe exigido comparecer à polícia diariamente e foi colocado sob prisão virtual em casa enquanto o seu caso começava sua longa jornada no Supremo Tribunal do Reino Unido. Ele ainda não fora acusado de qualquer delito. Seus advogados reiteraram a sua oferta de ser interrogado por Ny em Londres, destacando que ela lhe havia dado permissão para abandonar a Suécia. Eles sugeriram uma instalação especial na Scotland Yard utilizada habitualmente para esse fim. Ela recusou.

Katrin Axelsson e Lisa Longstaff da Mulheres contra a violação (Women Against Rape) escreveram: "As alegações contra [Assange} são uma cortina de fumo por trás das quais um certo número de governos estão a tentar impedir a acção da WikiLeaks por ter audaciosamente revelado ao público seu planeamento secreto de guerras e ocupações com o seu cortejo de violações, assassínios e destruição... As autoridades importam-se tão pouco acerca da violência contra mulheres que elas manipulam alegações de violação à vontade. [Assange] deixou claro que está disponível para interrogatório pelas autoridades suecas, na Grã-Bretanha ou via Skype. Por que estão ela a recusar este passo essencial na sua investigação? O que é que ela temem?

Esta pergunta ficou por responder quando Ny avançou com o Mandato Europeu de Prisão, um draconiano e agora desacreditado produto da "guerra ao terror" destinado supostamente a apanhar terroristas e criminosos organizados. O EAW aboliu a obrigação de um estado que faz o pedido providenciar qualquer evidência de um crime. Mais de um milhar de EAWs são emitidas a cada mês, só umas poucas têm algo a ver com potenciais acusações de "terror". A maior parte é emitida por delitos triviais, tais como juros de mora de bancos e multas. Muitos daqueles extraditados enfrentam meses na prisão, sem acusação. Tem havido um número chocante de atropelos à justiça, dos quais juízes britânicos têm sido altamente críticos.

O caso Assange finalmente chegou ao Supremo Tribunal do Reino Unido em Maio de 2012. Num julgamento que confirmou o EAW – cujas exigências rígidas quase não deixavam espaço de manobra para os tribunais – os juízes consideraram que promotores europeus podiam emitir mandatos de extradição no Reino Unidos sem qualquer supervisão judicial, muito embora o Parlamento pretendesse o contrário. Eles deixaram claro que o Parlamento havia sido "enganado" ("misled") pelo governo Blair. O tribunal ficou dividido, 5-2, e consequentemente considerou contra Assange.

Contudo, o Presidente do Supremo Tribunal, Lord Phillips, cometeu um erro. Ele aplicou a Convenção de Viena sobre a interpretação do tratado, permitindo à prática do estado suprimir a letra da lei. Como destacou a advogada de Assange, Dinah Rose QC, isto não se aplica ao EAW.

O Tribunal Supremo só reconheceu este erro crucial quando tratou de outro apelo contra o EAW, em Novembro de 2013. A decisão Assange fora errada, mas era demasiado tarde para voltar atrás. Com a extradição iminente, a promotora sueca disse aos advogados de Assange que este, uma vez na Suécia seria imediatamente colocado numa das infames prisões do país.

As opções de Assange eram drásticas: extradição para um país que se havia recusado a dizer se o enviaria ou não para os EUA, ou procurar o que parecia a sua última oportunidade de refúgio e segurança. Apoiado pela maior parte da América Latina, o corajoso governo do Equador concedeu-lhe o estatuto de refugiado na base de evidência documentada e aconselhamento legal uma vez que enfrentava a perspectiva de punição cruel e inabitual nos EUA; que isto violava seus direitos humanos básicos; e que o seu próprio governo na Austrália o havia abandonado e entrado em conivência com o de Washington. O governo trabalhista da primeira-ministra Julia Gillard ameaçou-o mesmo de tomar o seu passaporte.

Gareth Peirce, a famosa advogada de direitos humanos que representa Assange em Londres, escreveu ao então ministro dos Estrangeiros australiano, Kevin Rudd: "Dada a extensão da discussão pública, frequentemente na base de suposições inteiramente falsas... é muito difícil tentar preservar-lhe qualquer presunção de inocência. O sr. Assange tem agora pendente sobre ele não uma mas duas espadas de Damocles, da extradição potencial para duas diferentes jurisdições uma após a outra por dois diferentes alegados crimes, nenhum dos quais são crimes no seu próprio país, e que a sua segurança pessoal ficou em risco em circunstâncias que são altamente politicamente carregadas".

Só quando contactou a Alta Comissão Australiana em Londres é que Peirce recebeu uma resposta, a qual nada esclarecia acerca dos pontos prementes que ela levantara. Numa reunião a que compareci junto com ela, o cônsul geral australiano, Ken Pascoe, fez a espantosa afirmação de que sabia "só o que leio nos jornais" acerca dos pormenores do caso.

Enquanto isso, a perspectiva de uma grotesca perversão da justiça estava submersa numa campanha vituperante contra o fundador da WikiLeaks. Ataques profundamente pessoais, mesquinhos, viciosos e desumanos foram lançados contra um homem não acusado de qualquer crime mas sujeito a um tratamento não atribuído sequer a quem enfrenta a extradição sob a acusação de assassinar a sua esposa. Que o facto de a ameaça dos EUA a Assange era uma ameaça a todos os jornalistas, à liberdade de expressão, ficou perdido em meio a sordidez.

Foram publicados livros, acordos impressionantes para filmes e lançadas carreiras nos media nas costas da WikiLeaks e no pressuposto de que Assange era uma vítima fácil para ataques e de que era demasiado pobre para abrir processos. Houve gente que ganhou dinheiro, muitas vezes muito dinheiro, enquanto a WikiLeaks lutou para sobreviver. O editor do Guardian, Alan Rusbridger, chamou às revelações da WikiLeaks, publicadas pelo seu jornal, de "um dos maiores furos jornalísticos dos últimos 30 anos". Tornou-se parte do seu plano de marketing para aumentar o preço de capa do jornal.

Sem que nem um centavo fosse para Assange ou para a WikiLeks, um publicitado livro do Guardian levou a um lucrativo filme de Hollywood. Os autores do livro, Luke Harding e David Leight, gratuitamente descreveram Assange como uma "personalidade defeituosa" e "insensível". Eles também revelaram a password secreta que ele havia dado ao jornal em confiança, a qual era destinada a proteger um ficheiro digital contendo os telegramas da embaixada dos EUA. Com Assange agora aprisionado na embaixadora equatoriana, Harding, posicionando-se ao lado da polícia, regozijava-se no seu blog de que "a Scotland Yard pode ser a última a rir".

A injustiça cometida a Assange foi uma das razões porque o Parlamento reformou o Extradiction Act, para impedir a má utilização do EAW. A draconiana generalidade utilizada contra ele já não podia acontecer agora; agora teria de conter acusações e o "interrogatório" seria um fundamento insuficiente para a extradição. "O seu caso venceu completamente", contou-me Gareth Peirce, "estas mudanças na lei significa que agora o Reino Unido reconhece como correcto tudo o que foi argumentado no seu caso. Mas ele não se beneficiou". Por outras palavras, a mudança na lei do Reino Unido em 2014 significa que Assange teria ganho o seu processo e não teria sido obrigado a pedir asilo.

A decisão do Equador em 2012 de proteger Assange floresceu num grande assunto internacional. Muito embora a concessão de asilo seja um acto humanitário, e o poder de concedê-lo seja desfrutado por todos os estado sob o direito internacional, tanto a Suécia como o Reino Unido recusaram a legitimidade da decisão do Equador. Ignorando o direito internacional, o governo Cameron recusou-se a conceder a Assange passagem segura para o Equador. Ao invés disso, a embaixada do Equador foi colocada sob cerco e o seu governo abusado com uma séries de ultimatos. Quando o Foreign Office de William Hague ameaçou violar a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, advertindo que retiraria a inviolabilidade diplomática da embaixada e enviaria a polícia em busca de Assange, o ultraje por todo o mundo forçou o governo a recuar. Durante uma noite, a polícia apareceu às janelas da embaixada numa tentativa óbvia de intimidar Assange e seus protectores.

Desde então, Julian Assange tem sido confinado a uma pequena sala sob a protecção do Equador, sem luz do sol ou espaço para fazer exercício, cercado pela polícia com ordens para prendê-lo à primeira vista. Durante três anos o Equador deixou claro ao promotor sueco que Assange está disponível para ser interrogado na embaixada em Londres e durante três anos ela permaneceu intransigente. No mesmo período a Suécia interrogou quarenta e quatro pessoas no Reino Unidos em conexão com investigações policiais. O seu papel e aquele do estado sueco são comprovadamente políticos; e para Ny, que se depara com a reforma dentro de dois anos, ela deve "vencer".

Em desespero, Assange contestou o mandato de prisão nos tribunais suecos. Seus advogados citaram decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos de que ele tem estado sob detenção arbitrária, indefinida, e de que tem sido um prisioneiro virtual por mais tempo do que qualquer sentença real de prisão que pudesse enfrentar. O juiz do Tribunal de Recurso concordou os advogados de Assange: a promotora havia na verdade violado o seu dever ao manter o caso suspenso durante anos. Um outro juiz emitiu uma repreensão à promotora. E ainda assim ela desafiou o tribunal.

Em Dezembro último, Assange levou o seu caso ao Supremo Tribunal Sueco, o qual ordenou ao patrão de Marianne Ny – o Promotor Geral da Suécia Anders Perklev – que explicasse. No dia seguinte, Ny anunciou, sem explicação, que ela havia mudado de ideia e que agora interrogaria Assange em Londres.

Na sua submissão ao Supremos Tribunal, o Promotor Geral fez algumas concessões importantes: argumentou que a coerção de Assange fora "intrusiva" e que o período na embaixada fora uma "grande tensão" sobre ele. Perklev concedeu mesmo que se a matéria houvesse chegado a processo, julgamento, condenação e cumprimento de uma sentença na Suécia, Julian Assange teria deixado a Suécia há muito tempo.

Numa decisão dividida, um juiz do Supremo Tribunal argumentou que o mandato de prisão deveria ter sido revogado. A maioria dos juízes decidiu que, uma vez que a promotora agora havia dito que iria a Londres, os argumentos de Assange haviam-se tornado "controversos" ("moot"). Mas o Tribunal determinou que teria de considerar contra a promotora se ela não houvesse subitamente mudado de ideia. A justiça por capricho. Escrevendo na imprensa sueca, um antigo promotor do país, Rolf Hillegren, acusou Ny de perder toda a imparcialidade. Ele descreveu o seu investimento pessoal no caso como "anormal" e pediu que fosse substituída.

Tendo dito que iria a Londres em Junho, Ny não foi, mas enviou um adjunto (deputy), sabendo que o interrogatório não seria legal nestas circunstâncias, especialmente quando a Suécia não se incomodou em obter a aprovação do Equador para a reunião. Ao mesmo tempo, o seu gabinete avisou o Expressen, jornal tablóide sueco, o qual enviou o seu correspondente em Londres para aguardar por "notícias" do lado de fora da embaixada. A notícia era que Ny estava a cancelar o compromisso e a culpar o Equador pela confusão e por consequência pela "não cooperação" de Assange – quando o oposto era a verdade.

Como a data da lei das prescrições (statute of limitations) se aproxima – 20 de Agosto – um outro capítulo desta história odiosa irá sem dúvida desdobrar-se, com Marianne Ny a puxar mais um coelho da sua cartola com os comissários e perseguidores em Washington como beneficiários. Talvez nada disto seja surpreendente. Em 2008, uma guerra à WikiLeaks e a Julian Assange foi prevista num documento secreto do Pentágono preparado pelo Cyber Counterintelligence Assessments Branch". Ele descrevia um plano pormenorizado para destruir o sentimento de "confiança", o qual é o "centro de gravidade" da WikiLeaks. Isto seria alcançado com ameaças de "revelação [e] processo criminal". O silenciamento e criminalização de uma fonte tão rara de verdades era o objectivo, o enlamear era o método. Enquanto este escândalo continua a própria noção de justiça é diminuída, bem como a reputação da Suécia. O braço longo da América afecta todos nós.
 
31/Julho/2015
 

[NR] Distrito de Londres onde está a Embaixada do Equador.

O original encontra-se em www.rt.com/op-edge/311284-pilger-assange-wikileaks-intelligence/


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/


aqui:http://resistir.info/pilger/pilger_31jul15.html 

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