quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Música para variar!

Gnosisdeluche 2012

Por que a Islândia experimentou uma forte recuperação económica após o colapso financeiro de 2008?

                                                                                                          por Martin Zeis

O Presidente da Islândia, Olafur Ragnar Grimmson, foi entrevistado neste fim de semana (26-27/01/2013) no World Economic Forum, em Davos. Perguntaram-lhe porque a Islândia desfrutou uma recuperação tão forte após o seu completo colapso financeiro em 2008, ao passo que o resto do mundo ocidental luta com uma recuperação que não tem pernas para andar.

Grimsson deu uma resposta famosa ao repórter financeiro da MSM, declarando que a recuperação da Islândia se devia à seguinte razão primária:
"… Fomos suficientemente sábios para não seguir as tradicionais ortodoxias prevalecentes do mundo financeiro ocidental nos últimos 30 anos. Introduzimos controles de divisas, deixámos os bancos falirem, proporcionámos apoio aos pobres e não introduzimos medidas de austeridade como você está a ver aqui na Europa. ..."
Ao ser perguntado se a política da Islândia de deixar os bancos falirem teria funcionado no resto da Europa, Grimsson respondeu:
"... Por que é que os bancos são considerados as igrejas sagradas da economia moderna? Por que é que bancos privados não são como companhias aéreas e de telecomunicação às quais é permitido irem à bancarrota se tiverem sido dirigidas de um modo irresponsável? A teoria de que você tem de salvar bancos é uma teoria em que você permite aos banqueiros desfrutaram em seu próprio proveito o seu êxito e deixa as pessoas comuns arcarem com os seus fracassos através de impostos e austeridade. O povo em democracias esclarecidas não vai aceitar isso no longo prazo. ..."
A entrevista com Grimmson (02:56 m) está disponível em inglês:
28/Janeiro/2013 
Acerca da Islândia, ver também:
  • A guerra financeira contra a Islândia , Michael Hudson
  • A recuperação do desastre neoliberal , Michael Hudson
  • Islândia: a chantagem odiosa , Jean Tosti
  • As eleições da Islândia , Michael Hudson
  • Mensagem da Islândia a Portugal , Nick Dearden
  • A Islândia mostrou o caminho: recusar a austeridade , Salim Lamrani
  • A Islândia pode recusar a servidão da dívida , Michael Hudson
  • A crise económica na Islândia: o remédio do FMI não é a solução , Michael Hudson
  • "O esquema de reembolso é chantagem" , Olafur Eliasson
  • Capitalismo abutre: O novo desastre bancário da Islândia , Olafur Arnarson, Michael Hudson e Gunnar Tomasson
  • Islândia, combata esta injustiça , Eva Joly
  • Os islandeses colhem os benefícios da sua revolta , Omar R. Valdimarsson
  • Sobre o resultado do referendo do Icesave , Ólafur Ragnar Grímsson
  • Um mundo em guerra financeira , Michael Hudson
  • A solução islandesa , Eduardo Lucita
  • As guerras europeias quanto à dívida que vêm aí , Michael Hudson
  • A crise financeira na Grécia e na União Europeia , Michael Hudson
  • Crimes económicos contra a humanidade , Lourdes Beneria e Carmen Sarasua
  • A escravidão da dívida – Porque ela destruiu Roma e porque nos destruirá se não for travada , Michael Hudson
  • Que alternativa à não saída do euro? , Octávio Teixeira
  • Lições do Sul para uma Europa em crise? , Rémy Herrera
  • Quando banqueiros se tornam ladrões, a economia desmorona , Devinder Sharma


  • Islândia não tem de reembolsar Reino Unido e Holanda , 29/Jan/2013

    O original encontra-se em www.globalresearch.ca/...


    Esta notícia encontra-se em http://resistir.info/ .
  • quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

    A Propósito do Confisco Fiscal - 2

    O Tempo de Trabalho (2)
    As empresas sempre, mas sempre, se opuseram a quaisquer reduções de horários de trabalho, invocando sempre as mais urgentes razões e acenando para as dramáticas consequências sociais e económicas no caso de o Estado impor reduções aos horários de trabalho.

    Mesmo reconhecendo o aumento generalizado das férias anuais, a consulta de quaisquer estatísticas laborais, mostrará à evidência, que há ainda um longo caminho a percorrer para ajustar os tempos de trabalho às necessidades efectivas da vida social e económica.

    Se entretanto considerarmos os tempos de acesso aos locais de trabalho, por parte das populações urbanas, vemos facilmente o impacto negativo que esta situação continua a ter (e a agravar-se) sobre a vida familiar e a vida social em geral. Neste contexto, a luta por uma redução progressiva dos horários de trabalho deve ser prosseguida até que seja alcançada a taxa “natural” de desemprego (cerca de 2 a 3%) e que corresponde aos desempregados ocasionais e em procura (de curta duração) de primeiro ou segundo emprego.


    Esta redução progressiva dos horários de trabalho poderá mesmo ser efectuada com uma redução proporcional do salário nominal. Sublinha-se aqui o carácter de salário nominal!... Por um lado, ao trabalhador o que interessa é o salário liquido que efectivamente recebe, no seu bolso ou conta bancária, no fim da cada mês. Ou seja, bastará que o Estado faça os necessários e adequados ajustes nas tabelas e taxas de IRS, para que os trabalhadores ganhando nominalmente menos, continuem a ganhar efectivamente o mesmo, em termos absolutos, ainda que algo mais, em termos relativos.

    Por outro lado, em sistema capitalista e em regime de “Estado Social”, não é razoável esperar que sejam as empresas, uma a uma e a título individual, a suportar os encargos da solidariedade social. Esse encargo cabe por inteiro ao Estado de que todos somos cidadãos. 
    Em todo o caso é importante sublinhar que com a adopção de medidas deste tipo, todos podem sair a ganhar: os trabalhadores, as empresas e o Estado. Os trabalhadores porque passam a dispor de mais tempo para a família ou para seu aproveitamento pessoal. Desde o lazer à intervenção cívica. As empresas porque passam a dispor de mais variadas opções, em termos de qualificações, trabalhos por turnos e ainda de pessoas com mais variadas e diferentes motivações e qualificações. O Estado, porque tendo menos encargos com subsídios de desemprego, poderá mais facilmente suportar a não receita em sede de IRS, podendo mesmo, eventualmente – é apenas uma mera questão de “engenharia fiscal e de contabilidade social” – adoptar esquemas de incentivos fiscais dirigidos à actividade empresarial. Finalmente, o Estado ganhará sobretudo em termos de maior coesão social, a qual é sempre propícia ao investimento.
    Referi mais atrás que com uma redução gradual, mas sistemática e sustentada, dos horários de trabalho, os trabalhadores passariam a ter mais tempo para a intervenção cívica. Tal facto parece-me crucial para a consciencialização da cidadania e para a discussão colectiva das decisões políticas mais importantes. Muito em particular no que diz respeito à participação activa nos diversos meios de discussão e decisão, desde as autarquias até à participação no processamento da Justiça.
    Mas aqui – na ocupação dos “tempos livres” que pudessem ser dedicados a uma intervenção cívica - haverá a considerar o peso cada vez maior das indústrias da alienação as quais têm tido um papel explicitamente assumido de “entreter e distrair o pessoal”. Como já diziam os dirigentes do Império Romano, “panem et circenses”...
     
    Em nota de rodapé tinha incluído algo como: «Uma das razões porque as empresas combatem (recusam...) a redução dos horários de trabalho, até é simples e faz todo o sentido: é necessário (tem toda a vantagem...) aproveitar ao máximo o capital fixo (as máquinas e as estruturas físicas...) para delas tirar o máximo rendimento. Além do mais o trabalho por turnos – por causa de eventuais paragens ou abrandamentos – parece resultar menos eficiente do que o trabalho continuado dos mesmos trabalhadores».
    A razão fundamental, parece evidente, será muito simplesmente a luta contra a emancipação das classes trabalhadoras  
     
    por Fonseca-Statter
     

    A propósito do Confisco Fiscal - 1

    Lembrei-me de uns parágrafos que escrevi em tempos e que vieram a ser incluídos no livro «Anatomia da Crise - Crónica de um Desastre Anunciado». (Zéfiro, 2009).
    Falava aí - não lhe dando se calhar o relevo suficiente - da diferença entre «ordenado bruto» e «ordenado líquido». Com este aumento enorme (disse ele, o ministro...) dos impostos, as pessoas com emprego deverão ter-se apercebido dessa diferença crucial entre aquilo que as empresas contabilizam como «ordenado» (e outras coisas... comissões, bónus...) e aquilo que cada um leva mesmo «para casa» ao fim de cada mês. Talvez agora fiquem mais sensíveis ao argumento de que o importante mesmo é aquilo que efectivamente se recebe «em contado».
    Passo a transcrever aqueles parágrafos, até porque me parecem particularmente relevantes para uma (entre outras, claro...hipóteses de «saídas para a crise». )
    Aproveito para sublinhar aqui as coisas que me parecem mais importantes.

    Vai por partes:
     
    O TEMPO DE TRABALHO (1)

    Começo naturalmente por aquela que me parece ser a medida mais problemática (por causa até do enorme combate ideológico que pressupõe...) mas que será também a solução ou medida mais estruturante e estrutural de todas as que se possam vir a desenvolver.
    Ao falar mais atrás na relação entre os factores “capital” e “trabalho” estava também a pensar na relação entre ”trabalho socialmente necessário” e ”trabalho excedente”.
    Por outro lado e considerando que esta crise (como tantas outras antes desta) é uma crise de sobreprodução, então resultará daí uma primeira medida estrutural (no âmbito da economia) e estruturante (no âmbito da sociedade).
    Desde logo, em primeiro lugar, penso na redução sistemática e progressiva dos horários de trabalho. Reclamação particularmente relevante se considerada no âmbito da totalidade dos países da União Europeia. Vem na linha da proposta aprovada em França pelo governo de Lionel Jospin, entretanto combatida pelos governos de direita que lhe sucederam. Vem também na linha da ênfase que hoje é dada, por diversos quadrantes políticos, à necessidade de “partilhar por todos o trabalho de facto disponível”.
    Parece-me, no mínimo, estranho que enquanto se vai aceitando como natural que em algumas fábricas ou sectores de actividade se fechem portas ou se suspendam actividades, durante determinados períodos (algumas semanas, por exemplo), de modo a ajustar a produção à procura efectiva, não se pense ao mesmo tempo em, pura e simplesmente, consagrar e generalizar essa prática, reduzindo os horários de trabalho para toda a gente.
    Em termos de lógica funcional do sistema é exactamente a mesma coisa. Será tudo apenas uma questão de discutir e ajustar os detalhes. Se menos 3 horas por semana para toda a gente, neste ou naquele sector, se um dia inteiro por semana, se isto ou aquilo... Não há aqui soluções “chave na mão”. Será sempre necessário analisar, caso a caso, e ninguém melhor para o fazer do que as empresas e os trabalhadores.
    Ao Estado cabe apenas determinar o princípio, básico e fundamental, de uma redução geral do horário de trabalho, mas não apenas como “uma saída para a crise”. A lógica do sistema há-de impor, mais década menos década, que cada vez seja menos necessário “trabalhar” tanto como até agora, no sentido em que hoje se entende esta palavra e que cada vez seja mais necessário “passar a intervir” na vida social. 
    Lembro a esse respeito a longa e dura luta que houve que travar, nos idos de 1844, para que no Reino Unido se generalizasse a redução dos horários de trabalho, de 12 para 10 horas por dia. Até fins do século XIX, princípios do século XX, conseguiu-se generalizar a prática das 48 horas por semana. Depois, em meados do século XX passou-se para o padrão de 40 horas por semana.

    De então para cá, apesar dos enormes ganhos de produtividade social, a situação estagnou. Ou seja, em sessenta anos passou-se de 72 horas para 48 horas semanais. Mas, em  cem anos, e apesar (repete-se), dos enormes ganhos de produtividade social agregada, não se conseguiu mais do que passar de 48 horas para 40 horas semanais.
    Resumindo a evolução ao longo do século XIX, temos que até 1832 não havia limite e a questão de "horário de trabalho" nem sequer se punha. Em 1833 passou-se para o limite das 12 horas por dia ou 72 horas por semana. Em 1844 passou-se para o limite de 10 horas por dia ou 60 horas por semana, mas apenas em algumas actividades de maior desgaste físico. Em 1848 generalizou-se o limite das 10 horas por dia ou 60 horas por semana). 

    por Fonseca-Statter 

    http://umoutroparadigma.blogspot.pt/ 

    terça-feira, 29 de janeiro de 2013

    Sobre o euro

    – Considerações, uma proposta, mas nenhuma descoberta...


    por Vaz de Carvalho
    Voragem para o fundo. 1– REFORÇADA A ESPECULAÇÃO EM CURSO

    Imaginemos um navio governado por pilotos incompetentes e gananciosos, que carregaram a embarcação para além de todos os limites de segurança, ficando em risco de naufrágio ao avançarem para afloramentos rochosos. Que fazem os pilotos depois enganarem passageiros e tripulantes dizendo que tudo ia bem e de muito discutirem entre si? Invertem o rumo? Não, limitam-se a desviar a rota, indiferentes ao facto de que naquele rumo terão pela frente mais escolhos. Isto não os preocupa, sabem que serão salvos, as suas riquezas "resgatadas" e acrescentada com prémios de seguro. Esta a imagem da UE na sua deriva neoliberal.

    É ponto assente que no neoliberalismo a economia é movida pelo endividamento: dos Estados, das empresas, das famílias. Tem duas fases em alternância: juros baixos, juros altos. Uma simples evidência empírica desde os anos 60-70 do século XX. Para o endividamento prosseguir é estabelecida uma condição de base: o máximo de riqueza produzida é concentrada nas mãos dos credores, não dos Estados, nem das famílias nem das empresas – exceto as ligadas à finança.

    A divida pública na zona euro entre 2000 e 2012 cresceu 88% e na UE-27 cresceu 97%. Com a agravante de entre 2008 e 2012, o aumento registado ser de 36%, (base de dados da CE, AMECO) isto apesar das austeridades, e de muitas "decisões importantes e positivas". Diga-se ainda que o endividamento total dos países da UE terá atingido 417% do PIB em meados de 2012. [1] Dados apontam para a nível mundial o endividamento em 2011 ser 2,5 vezes maior que em 2003 – com mais desemprego, mais pobreza, mais fome, etc.

    Na UE perante o afundamento das economias espanhola, italiana, francesa, belga, etc, o BCE, contra o que andou propalar durante anos, teve de se tornar o garante das dívidas públicas. Um único objetivo: assegurar que a especulação e os lucros financeiros prossigam.

    O futuro do euro, continua assim colocado nas mãos dos "mercados", ou seja, nunca é de mais lembrar: nas mãos de especuladores, percorridos por casos de corrupção, fraude, má gestão.

    O BCE força a repetição do cenário de juros baixos de há 7 ou 10 anos atrás. Apenas vai fazer crescer a bolha financeira especulativa, e não se vê que meios terá para suportar as consequências daqui resultantes.

    A questão que ninguém ligado ao sistema parece pôr é: como vão ser pagas as dívidas, numa economia sem crescimento, desemprego endémico e quando de uma forma generalizada, Estados, MPME e famílias, estão na maioria dos países no limite da falência?

    Em Portugal, dentro deste panorama como vão ser pagas as dívidas? Como vai ser feito investimento com taxas de juro de 5% + risco + lucro? Sem aumento da procura agregada e nas condições de uma globalização acéfala – para os povos.

    É bom recordar aos que acham "positivo" o atual – falso – "regresso aos mercados", a situação que os países em desenvolvimento experimentaram sob a agiotagem internacional protegida e incentivada pelo FMI: entre 1970 e 2009 pagaram 110 vezes o que deviam em 1970, no entanto durante este mesmo período a sua dívida externa foi multiplicada por 50. (www.cadtm, Les Chiffres de la Dette, 2011)

    Pensamos que, antes de abordar a questão do euro, será bom ter em conta as condicionantes da dívida já que, moeda sem contrapartida de produção – valor-trabalho – é dívida.

    2– O EURO, E DEPOIS…

    Dizer que as soluções para Portugal passam pela Europa. É o que se pode classificar de tautologia. Qualquer criança do preparatório sabe que somos um país europeu. Dizer isto é uma forma de não querer discutir mais nada e fazer a propaganda de todas as "soluções" da UE, via BCE ou CE, sempre consideradas "positivas" sem avaliar resultados anteriores. Entra-se assim no campo da hipocrisia ou do cretinismo político.

    A discussão sobre o euro parece razoavelmente inquinada. Isso começa pelos que oscilam entre o catastrofismo (face aos que discordam das atuais orientações) e as loas a um inexistente "europeísmo" sob a égide de tecnocratas ao serviço da finança. Neste europeísmo os cidadãos são tolerados só enquanto deixarem iludir pelos ajudantes da pilotagem ao comando da UE.

    "As crises financeiras têm sido tão devastadoras economicamente quanto uma guerra mundial e podem ser ainda um fardo para os nossos netos", observou recentemente Andrew Haldane, responsável do Banco da Inglaterra. "Em termos de perda de rendimento e produção, isto é tão mau quanto uma guerra mundial", disse ele. Mas enquanto o sector financeiro estiver a vencer a sua guerra contra a economia como um todo, ele prefere que as pessoas acreditem que Não Há Alternativa. [2]

    Ou aceitamos no fundamental estas afirmações ou as recusamos. Se as recusamos então prossegue a especulação, a rota neoliberal de endividamento – especulação – endividamento , acreditando que D – D' (D>D') sem passar por M – mercadoria – é uma transformação consistente. Assuma-se e demonstre-se. Ouve-se dizer, sem contraditório como é habitual, que não importa o défice da balança comercial desde que o fluir de entradas de capital o supere. Mas capital que entra é dívida, ou seja: endividamento – especulação – endividamento, para que D > D'.

    Se a seguir se disser que a solução é "atrair investimento" e "exportar mais" entra-se no regime de deflação fiscal e laboral (mais ainda?!) [NR] . A questão a pôr é: quanto disto será necessário para se atingirem os louvados "estabilizadores automáticos" dos mercados? Não dizem, nem o podem dizer com mínimo de rigor, pois é algo que apenas existe nas cabeças da metafísica neoliberal, neoclássica ou outra "farinha do mesmo saco". Não passa, de repetições requentadas do que já em meados dos anos 60 os chamados "liberais do regime" defendiam. Mas agora são apresentadas com fanfarronice como decisivas descobertas e inovações da "nova economia"!

    Tomando como correta a citação acima mencionada, então reconhecemos que estamos numa guerra, sem bombardeamentos mas sujeitos às condições impostas pela troika. Dela fazem parte o BCE e a CE, o que mostra o nível de europeísmo com que podemos contar… Tais condições só têm semelhança às impostas a países sujeitos a agressão e ocupação externa.

    Como numa guerra, foram destruídas fábricas e estaleiros, inutilizada parte da agricultura, navios de pesca e mercantes tornaram-se meros destroços, desapareceram linhas férreas, a maioria das auto-estradas estão vazias, parte do território está desertificado, da vida ativa foi eliminada mais de 10% da população total, fogem do país como refugiados dezenas de milhares de cidadãos, etc. Como em todas as guerras, perante o empobrecimento da população em geral, uma minoria enriqueceu fabulosamente.

    Esta destruição teve como arma principal um míssil chamado euro. Quem tiver dúvidas veja as estatísticas da economia portuguesa pós adesão.

    Ora, convenhamos, não há maneira de sair de uma guerra nem bem nem a bem. De modo que a discussão sobre o euro não pode fazer-se de forma consistente apontando as dificuldades…da situação contrária. Terá de se começar por definir as condições necessárias para Portugal fazer a paz. Isto é, parar a agressão e a ocupação externa e começar a desenvolver-se económica e socialmente. Isto significa crescimento (um termo que só por si nada quer dizer, muitas vezes utilizado como via escapista da discussão) acompanhado de direitos sociais, laborais, criação de emprego. E se se responder que a solução é "mais Europa" voltamos a: endividamento – especulação – endividamento…

    Para definir as condições para o desenvolvimento não será despiciendo começar por definir os objetivos que se pretendem alcançar, ter uma visão de futuro. E a que nos parece mais consistente e mais consensual é a consignada na Constituição. Estabeleçam-se então as condições de partida necessárias para se definirem as políticas e as estratégias coerentes com os objetivos. Não devemos porém confundir condições com políticas e estratégias.

    Sem dúvida que a auditoria cidadã à dívida é uma condição de partida para renegociação da mesma (montantes, prazos, juros). Outra condição será reconhecer que sem soberania monetária e financeira o país não pode desenvolver-se. Ou se se preferir, que grau de soberania nestes campos será necessário. Outra questão será ainda assumir se é ou não possível o desenvolvimento sem planeamento macroeconómico de natureza democrática.

    Dá a ideia, talvez, que estamos a propor ou defender dilemas Ao contrário, devemos ter em mente em qualquer negociação nunca aceitar dilemas, há sempre uma terceira solução, pelo menos. Porém, para a(s) encontrar e negociar – recordo que queremos sair de uma guerra que foi movida ao povo português, como a outros da UE – é preciso conhecer e avaliar bem os riscos de ambas as partes, não aceitando nem cair no lume nem ficar na frigideira…

    Definidas as condições económicas, chega a altura de perguntar como vão ser concretizadas. É aqui que pode começar a discussão sobre o euro, pelo menos para quem reconheça que deflação fiscal e laboral e " endividamento – especulação – endividamento" não são soluções. É preciso ter plena consciência que sendo um imperativo sair de uma guerra isso não se faz sem sacrifícios e sem lutas.

    Há então que unir trabalhadores e todas as camadas sociais não monopolistas, passando a defender na Europa soluções patrióticas. A menos que fugindo às questões se prefira dizer que precisamos é de "mais europa". Mas qual Europa? Um paraíso fiscal para especuladores? Aos que dizem "a minha pátria é a Europa" deve-se responder: "A vossa pátria é a banca e não a Europa".
     

    Notas
    [1] A crise ideológica subjacente à actual política fiscal e financeira, em O enganoso abismo orçamental dos EUA (parte 4) , Michael Hudson,
    [2] A austeridade orçamental de hoje recorda os mal entendidos económicos da I Guerra Mundial, em O enganoso abismo orçamental de 2012 dos EUA (parte1) , Michael Hudson,
    [NR] Ver Flexibilidade e desvalorização interna , Jacques Sapir


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

    quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

    Jared Diamond : por que as sociedades entram em colapso

     Por que sociedades entram em colapso? Com lições desde os Nórdicos da Idade do Ferro na Groelândia, desmatamento na Ilha de Páscoa e o estado de Montana em nossos dias, Jared Diamond fala sobre os sinais de que o colapso está próximo, e como -- se enxergarmos a tempo -- podemos nos prevenir dele.

    http://www.ted.com/talks/lang/pt-br/jared_diamond_on_why_societies_collapse.html

    terça-feira, 22 de janeiro de 2013

    Os verdadeiros rostos do terrorismo em Africa


    por Komla Kpogli
    Recursos africanos. Dizem-nos agora que o terrorismo ameaça a África e que em nome da luta contra o mesmo trava-se actualmente uma "guerra humanitária" no Mali. Examinemos o que é realmente o terrorismo sob os trópicos.

    Após quatro séculos de razzias negreiras transatlânticas e árabo-muçulmanas e mais de um século de colonização, as populações africanas entraram em luta pela sua libertação. Mas estas lutas foram curto-circuitadas e os seus condutores logo assassinados e substituídos por fantoches sanguinários cuja única missão é confirmar a manutenção do continente na órbita daqueles que investiram para privá-lo de todos os seus recursos – a começar pelos recursos humanos que, depois terem servido nos campos de algodão, nas minas, nos estaleiros de obras longe da África, devem continuar a trabalhar para o seu bem-estar agora no próprio continente. Sob o controle de vigilantes vestidos com fato e gravata, tal como o mestre.

    Infelizes os povos governados por escravos seleccionados e libertos para as necessidades da causa pelos mestres que os vestem à sua imagem, criando nestes "vigilantes" a ilusão de que se tornaram seus iguais. O poder do terror que o mestre atribuiu a estes contramestres revela-se tão destruidor que certos africanos não vacilam em lamentar abertamente a substituição do colono de olhos azuis por aqueles que, pela cor da pele, pareciam serem seus irmãos. Juventude remetida ao exílio pelo Mediterrâneo onde, se não for abatida pelos tiros dos guarda-fronteiras do Frontex , é devorada por tubarões, predação, avidez, desprezo para com as populações, violência incessante, destruição metódica de toda ideia voltada para o endógeno... eis alguns dos métodos de governo dos sátrapas.

    Aqui está um breve resumo do terrorismo de alguns dentre eles. O leitor nos desculpará não termos mencionado todos. É por falta de espaço e nenhuma outra razão. Assim, o leitor é convidado a completar a lista, mesmo a enumerar os crimes que não puderam ser mencionados aqui.

    1. Gnassingbé 1º + Gnassingbé 2º: 50 anos no poder no Togo, pelo menos 50 mil mortos directos por violências militar-policiais. Assassinato de Sylvanuys Olympio e a seguir o retorno do Togo ao regaço da França, pelo menos 100 mil togoleses mortos de diversas maneiras (crimes económicos, manutenção do Franco CFS, cooperação suicida, ausência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

    2. Bongo 1º + Bongo 2º: 46 anos no poder no Gabão, pelo menos 20 mil mortos directos, pelo menos um milhão de africanos no Gabão mortos de diversos modos (financiamento de partidos políticos em França, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, ausência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

    3. Paul Mvondo Biya : no poder nos Camarões desde há 31 anos, no mínimo 40 mil mortos directos, pelo menos um milhão de africanos do território dos Camarões mortos de diversas maneiras (crimes económicos, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

    4. Blaise Compaoré: Assassino de Thomas Sankara , de Norbert Zongo e seus companheiros, no poder desde há 26 anos, pelo menos 15 mil mortos directos, no mínimo um milhão de africanos do Burkina Faso mortos de diversas maneiras (crimes económicos, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

    5. Denis Sassou Nguesso (República do Congo): criminoso reincidente que totaliza 29 anos no poder, pelo menos 100 mil mortos directos por violências militares e policiais, saqueadores profissionais de fundos públicos com a sua família e clientes, pelo menos um milhão de africanos mortos de diversas maneiras (crimes económicos, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

    6. Omar Guelleh: no poder no Djibuti desde há 14 anos, mesmos crimes que os terroristas antecedentes.

    7. Idriss Deby: no poder no Tchad desde há 23 anos, mesmos crimes que os antecedentes.

    8. Alassane Dramane Ouattara (Costa do Marfim): no poder desde há um ano, criminoso com o FMI onde dirigiu directamente o Planos de Ajustamento Estruturais. Chegou à presidência transportado nos carros de combate e bombardeiros franceses, acompanhados de terroristas dirigidos por Guillaume Soro desde há 10 anos, pelo menos 30 mil mortos directos, no mínimo 50 milhões de africanos mortos via FMI e Banco Mundial a quem Ouattara serviu + crimes económicos, manutenção do Franco CFS, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

    Etc, etc. Todos estes terroristas beneficiam do apoio logístico, intelectual e mediático da França, bem como de outros "Amigos da África" que não hesitam em combater directamente nas suas costas contra os africanos que actualmente "salvam" no Mali do terrorismo que corta mãos e pés. Quem libertará os africanos dos terroristas?
    18/Janeilro/2013
    Ver também:
  • A guerra no Mali
  • No African Union troops to Mali

  • Pentagon’s Hand Behind French Intervention in Mali

    O original encontra-se em http://lajuda.blogspot.com/ e http://www.legrandsoir.info/les-vrais-visages-du-terrorisme-en-afrique.html


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 9/11

    segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

    A guerra secreta em Portugal

    Os exércitos secretos da NATO (IX)

    A guerra secreta em Portugal


    por Daniele Ganser [*]

    '. Este artigo faz sequência a:
    1. "Quando o juiz Felice Casson revelou o Gládio..."
    2. "Quando o Gládio foi descoberto nos Estados europeus..."
    3. "Gládio: Porque a NATO, a CIA e o MI6 continuam a negar"
    4. "Os esgotos de Sua Majestade"
    5. "A guerra secreta, actividade central da política estrangeira de Washington"
    6. "A guerra secreta em Itália"
    7. "A guerra secreta em França"
    8. "A guerra secreta em Espanha"
    '. 
    O Gladio dispunha de uma base eficaz em Portugal, no tempo do Salazar. Embora só conheçamos indirectamente o seu funcionamento, através de estudos italianos, o historiador Daniele Ganser conseguiu identificar o seu papel em Portugal e nas suas colónias africanas. Graças a esse dispositivo, a NATO não se contentou em assassinar oponentes a Salazar, mas também líderes revolucionários africanos de primeiro plano, como Amílcar Cabral.

    Em Maio de 1926, o general Gomes da Costa assumiu o poder em Portugal através de um golpe de estado, aboliu a Constituição e o Parlamento e instaurou a ditadura. Uns anos mais tarde, o ditador Salazar assumiu as rédeas do país. Durante a guerra civil espanhola, apoiou o general Franco a quem forneceu tropas e material. Os dois homens aliaram-se para garantir a Hitler e a Mussolini a neutralidade de toda a península ibérica, facilitando assim consideravelmente a sua tarefa na frente ocidental. Os quatro ditadores entraram em acordo quanto à necessidade de combater e de aniquilar o comunismo na União Soviética e nos seus países respectivos.

    Mas, como a URSS saiu vitoriosa da segunda guerra mundial e Hitler e Mussolini foram derrotados, Salazar e Franco ficaram numa posição delicada em 1945. No entanto, como os Estados Unidos do Presidente Truman se envolveram numa guerra mundial contra o comunismo, os dois ditadores da península puderam beneficiar do apoio silencioso de Washington e de Londres. Apesar do apoio de Salazar ao golpe de Franco e da sua aliança com as potências do Eixo, Portugal foi autorizado a figurar, para surpresa de muita gente, entre o número dos membros fundadores da NATO em 1949. Seguiu-se um reinado praticamente sem oposição de quase 40 anos até que a morte de Salazar, em 1970, permitiu enfim que Portugal entrasse numa transição democrática e integrasse a União Europeia.

    À imagem do que se pôde observar nas ditaduras de extrema direita da América Latina e sob o regime autoritário de Franco, o povo português era vigiado permanentemente por um aparelho de segurança que funcionava na sombra e fora de qualquer enquadramento legal definido pelo Parlamento. Os golpes sujos visando a oposição política e os comunistas multiplicaram-se durante o regime de Salazar. Essas operações eram efectuadas por diversos serviços e órgãos, entre os quais a tristemente célebre Polícia Internacional e de Defesa do Estado, ou PIDE, e os serviços secretos militares portugueses.

    Como não foi feito nenhum estudo aprofundado sobre as organizações de extrema-direita e as operações especiais que decorreram durante a ditadura de Salazar, os laços com a rede anticomunista secreta da NATO não são muito claros. A existência em Portugal de exércitos secretos próximos da CIA e da NATO foi revelada pela primeira vez em 1990, no seguimento da descoberta do Gladio italiano. " Em Portugal, uma rádio lisboeta noticiou que tinham sido utilizadas células duma rede associada à Operação Gladio durante os anos cinquenta para apoiar a ditadura de extrema-direita do Dr. Salazar " pôde ler-se na imprensa internacional. [1] Cinco anos depois, o autor americano Michael Parenti escreveu, sem todavia revelar as suas fontes, que agentes do Gladio tinham " ajudado a consolidar o regime fascista em Portugal ". [2]

    Mais precisamente, a imprensa local revelou em 1990 que o exército secreto de Portugal existia com o nome de código "Aginter Press". Com o título " O 'Gladio' funcionava em Portugal ", o semanário português O Jornal anunciou a uma população estupefacta que:   "A rede stay-behind, concebida no próprio seio da NATO e financiada pela CIA cuja existência acaba de ser revelada por Giulio Andreotti, dispunha de um ramo em Portugal, activo nos anos sessenta e setenta. Tinha o nome de 'Aginter Press'" e esteve sem dúvida implicada nos assassínios em território nacional assim como nas colónias portuguesas em África. [3]

    A Aginter Press não tinha rigorosamente nada a ver com a imprensa. Essa agência não imprimia nem livros nem brochuras de propaganda anticomunista, mas treinava terroristas de extrema-direita e efectuava golpes sujos e operações clandestinas no interior e no exterior das fronteiras de Portugal. Essa organização, tão misteriosa como violenta, era sustentada pela CIA e comandada por quadros de extrema-direita europeus que, com a ajuda da PIDE, recrutavam militantes fascistas. O inquérito feito pelo Senado italiano sobre o Gladio e o terrorismo permitiu determinar que certos extremistas italianos tinham sido formados pela Aginter Press. Enquanto que em Portugal se ficava a saber que uma subdivisão da Aginter Press, baptizada de " Organização Armada contra o Comunismo Internacional " também tinha operado na Itália, os senadores italianos descobriram que a organização Aginter Press tinha recebido o apoio da CIA e que era dirigida pelo capitão Yves Guillon, mais conhecido pelo pseudónimo de Yves Guérain-Sérac, especialista das operações de guerra clandestina a quem os Estados Unidos tinham atribuído várias medalhas militares entre as quais a Estrela de Bronze Americana por se ter distinguido na guerra da Coreia. "Segundo indicam os resultados do inquérito criminal", concluía o relatório do inquérito italiano, "a Aginter Press era uma central de informações próxima da CIA e dos serviços secretos portugueses e especializada em operações de provocação". [4]

    Enquanto o governo português hesitava em abrir um inquérito sobre a história sombria da Aginter Press e da guerra secreta, a Comissão senatorial italiana prosseguia as suas pesquisas e, em 1997, ouviu o juiz Guido Salvini. Um verdadeiro especialista em questões de terrorismo de extrema-direita, o magistrado tinha examinado com minúcia os documentos disponíveis sobre a Aginter Press. O senador Manca interrogou-o: " A CIA americana, segundo o senhor, é directamente responsável pela operações efectuadas pela Aginter Press?", a que o juiz respondeu: " Senador Manca, está a fazer uma pergunta muito importante " e pediu, dada a natureza delicada da resposta, para ser ouvido em privado. Foi autorizado e a partir daí todos os documentos foram classificados como confidenciais. [5]

    Em público, o juiz Salvini explicou que era " difícil dar uma definição exacta do que é a Aginter Press ", mas mesmo assim tentou dar uma descrição: " É uma organização que, em muitos países, nomeadamente na Itália, inspira e apoia os planos de grupos cuidadosamente escolhidos que agem segundo protocolos definidos contra uma situação que decidiram combater ". O exército anticomunista secreto da CIA, Aginter Press, funciona, continuou ele, " em função dos seus objectivos e dos seus valores, que são essencialmente a defesa do Ocidente contra uma invasão provável e iminente da Europa pelas tropas da URSS e dos países comunistas ". [6] Sempre segundo o juiz italiano, o exército secreto português garantia, como a maior parte das outras redes da Europa do Ocidente, uma dupla função. A rede stay-behind treinava-se secretamente para uma eventual invasão soviética e, na expectativa dessa invasão, perseguia os movimentos políticos de esquerda, seguindo estratégias de guerra clandestina praticadas em vários países da Europa ocidental.

    Embora uma boa parte dos seus membros já tivessem prestado serviços em diversos grupúsculos anticomunistas no decurso dos anos anteriores, a Aginter Press só foi oficialmente fundada em Lisboa em Setembro de 1966. Parece que os seus fundadores e a CIA foram guiados menos pelo receio duma invasão soviética do que pelas possibilidades de acção interna. Com efeito, esse período foi marcado pelas manifestações da esquerda que denunciava a guerra do Vietname e o apoio dado pelos Estados Unidos às ditaduras de extrema-direita na América Latina e na Europa, nomeadamente em Portugal. O ditador Salazar e a sua polícia, a PIDE, temiam especialmente as consequências desse movimento social susceptível de desestabilizar o regime e, portanto, apelaram à Aginter Press para que o submetesse.

    A maior parte dos soldados de sombra que foram recrutados pela CIA para engrossar as fileiras deste exército secreto já tinham combatido em África e na Ásia do sudeste onde tinham tentado em vão impedir o acesso à independência das antigas colónias europeias. O director da Aginter Press, o próprio capitão Yves Guérain-Sérac, católico fervoroso e ardente anticomunista recrutado pela CIA, era um antigo oficial do exército francês que tinha assistido à derrota da França frente ao Reich durante a segunda guerra mundial. Também tinha combatido na guerra da Indochina (1946-1954), na guerra da Coreia (1950-1953) e na guerra da Argélia (1954-1962). Tinha prestado serviço na famosa 11ª Semi-Brigada Pára-quedista de Choque, a unidade encarregada de golpes sujos sob as ordens do SDECE, o serviço francês de informações externas, também ele próximo da rede stay-behind Rosa dos Ventos. Em 1961, Guérain-Sérac tinha fundado, juntamente com outros oficiais aguerridos do 11º Choque, a Organização do Exército Secreto, ou OAS, que lutou por uma Argélia francesa e tentou derrubar o governo do general de Gaulle para instaurar um regime autoritário anticomunista.

    Depois de a Argélia ter acedido à independência em 1962, e de o general de Gaulle ter dissolvido a OAS, os antigos oficiais do exército secreto, entre os quais Guérain-Sérac, correram grande perigo. Fugiram da Argélia e ofereceram aos ditadores da América Latina e da Europa a sua valiosa experiência da guerra secreta, das operações clandestinas, do terrorismo e do contra-terrorismo, em troca do direito de asilo. [7] Esta diáspora da OAS veio reforçar as organizações de activistas de extrema-direita em numerosos países. Em Junho de 1962, Franco apelou aos talentos de Yves Guérain-Sérac, a fim de ele se juntar ao combate do exército secreto espanhol contra a oposição. De Espanha, Guérain-Sérac passou a seguir para Portugal, que aos olhos dele era o último império colonial e, sobretudo, o último bastião contra o comunismo e o ateísmo. Como um perfeito soldado da guerra-fria, ofereceu os seus serviços a Salazar: " Os outros depuseram as armas, mas eu não. Depois da AOS, fugi para Portugal para continuar o combate e travá-lo à sua verdadeira escala – ou seja, à escala planetária ". [8] Em Portugal, Guérain-Sérac associou-se a extremistas franceses e a renegados da OAS. O antigo pétainista Jacques Ploncard d'Assac apresentou-o nos meios fascistas e aos membros da PIDE. Dada a sua grande experiência, Guérain-Sérac foi recrutado como instrutor no seio da Legião Portuguesa e das unidades de contra-guerrilha do exército português. Foi neste contexto que ele criou, com a ajuda da PIDE e da CIA, a Aginter Press, um exército anticomunista ultra-secreto. A organização constituiu os seus próprios campos de treino nos quais mercenários e terroristas seguiam um programa de três semanas de formação em operações secretas que incluíam nomeadamente as técnicas de atentados à bomba, assassínios silenciosos, métodos de subversão, comunicações clandestinas, infiltração e guerra colonial.

    Ao lado de Guérain-Sérac, o terrorista de extrema-direita Stefano Delle Chiaie participou também na fundação da Aginter Press. " Agíamos contra os comunistas, contra a burguesia estabelecida e contra a democracia que nos tinha privado da nossa liberdade. Fomos portanto forçados a recorrer à violência ", explicou mais tarde Delle Chiaie. " Consideravam-nos como criminosos mas na realidade éramos as vítimas de um movimento liberal antifascista. Queríamos espalhar as nossas ideias, queríamos ser ouvidos pelo mundo inteiro ". Por alturas de meados dos anos sessenta, Delle Chiaie, que na altura tinha 30 anos, fundou com Guérain-Sérac, e com o apoio da CIA, o exército secreto Aginter. " Com um dos meus amigos francês [Guérain-Sérac], decidi então [em 1965] fundar a agência de imprensa Aginter Press a fim de termos os meios de defender as nossas opiniões políticas ". [9] No decurso dos anos que se seguiram, Delle Chiaie tornou-se talvez no combatente mais sanguinário da guerra secreta. Em Itália, tomou parte em golpes de estado e em atentados, entre os quais o da Piazza Fontana em 1969 e, com o nazi Klaus Barbie, chamado o " Carniceiro de Lyon ", contribuiu para consolidar o poder de ditadores sul-americanos. [10]

    " Os nossos efectivos são formados por dois tipos de homens: (1) oficiais que se juntaram a nós depois de terem combatido na Indochina e na Argélia e alguns que se alistaram depois da batalha da Coreia ", explicou o director da Aginter, Guérain-Sérac em pessoa, "(2) intelectuais que, durante esse mesmo período, se interessaram pelo estudo das técnicas de subversão marxista ". Esses intelectuais, como fez questão de observar, formaram grupos de estudo e partilhavam as suas experiências " para tentar dissecar as técnicas de subversão marxista e lançar as bases duma contra-técnica ". A batalha, não tinha qualquer dúvida quanto a isso, devia ser travada em numerosos países: " No decurso desse período, estabelecemos contactos sistemáticos com grupos de ideias próximas das nossas que surgiram na Itália, na Bélgica, na Alemanha, em Espanha e em Portugal, na óptica de constituir um núcleo duma verdadeira Liga Ocidental de Luta contra o Marxismo ". [11]

    Saídos directamente de teatros de operações, muitos dos combatentes de sombra, e sobretudo os seus instrutores, entre os quais Guérain-Sérac, tinham pouca simpatia ou conhecimento pelos métodos de resolução pacífica de conflitos. O próprio director da Aginter estava convencido, como muitos outros, que a luta contra o comunismo na Europa ocidental implicava obrigatoriamente o recurso ao terrorismo: " Na primeira fase da nossa actividade política, devemos instaurar o caos em todas as estruturas do regime ", declarou sem esclarecer a que país se referia. " Há duas formas de terrorismo que permitem obter esse resultado: o terrorismo cego (através de atentados visando um grande número de civis) e o terrorismo selectivo (através da eliminação de personalidades marcadas) ". Tanto num caso como noutro, o atentado secretamente perpetrado pela extrema-direita devia ser imputado à esquerda, conforme sublinhou o paladino e ideólogo do terrorismo anticomunista: " Esses ataques contra o Estado devem, tanto quanto possível, passar por 'actividades comunistas' ". Os atentados terroristas dos exércitos secretos eram concebidos como um meio de desacreditar o regime em vigor e de obrigá-lo a pender para a direita: " A seguir, devemos intervir no coração do aparelho militar, do poder judicial e da Igreja, a fim de influenciar a opinião pública, de propor uma solução e de demonstrar claramente a fraqueza do arsenal jurídico actual (…) A opinião pública deve ser polarizada de maneira tal que nós apareçamos como o único instrumento capaz de salvar a nação. Parece óbvio que teremos necessidade de meios financeiros consideráveis para levar a bom termo essas operações ". [12]

    Gen. Humberto Delgado. Humberto Delgado, o "general sem medo", apresenta-se nas eleições presidenciais portuguesas de 1958. É derrotado graças a uma gigantesca fraude eleitoral e tem de se exilar. É assassinado em 1965 por um comando da PIDE preparado pelo Gládio, sob o comando de Rosa Casaco.

    A CIA e a PIDE, os serviços secretos militares de Salazar, encarregaram-se de fornecer os fundos necessários para o empreendimento terrorista do capitão Guérain-Sérac. É num documento interno da Aginter, intitulado " A Nossa Actividade Política ", datado de Novembro de 1969 e que foi descoberto em 1974, que ele descreve como um país pode ser alvo duma guerra secreta: " A nossa convicção é que a primeira fase da actividade política deve consistir em criar as condições favoráveis à instauração do caos em todas as estruturas do regime ". Elemento essencial desta estratégia, as violências perpetradas deviam ser atiradas para cima dos comunistas e, bem entendido, todos os indícios deviam levar a essa conclusão. " Pensamos que é necessário, num primeiro tempo, destruir a própria estrutura do Estado democrático a coberto de actividades comunistas ou pró-chinesas ". O documento insistia seguidamente na necessidade de infiltrar os grupos de militantes de esquerda a fim de melhor os manipular: " Além disso, dispomos de homens infiltrados nesses grupos e que nos permitirão agir sobre a própria ideologia do meio – através de acções de propaganda e outras, realizadas de tal maneira que parecerão ser obra dos nossos adversários comunistas ". Essas operações realizadas sob falsa bandeira, concluía esse plano de acção, " criarão um sentimento de hostilidade para com os que ameaçam a paz de cada um dos nossos países ", ou seja, os comunistas. [13]

    No decurso da primeira fase do seu plano, os oficiais, mercenários e terroristas da Aginter Press dedicaram-se a enfraquecer e aniquilar as facções de guerrilheiros que lutavam pela independência das colónias portuguesas. Por volta de meados dos anos sessenta, o primeiro teatro de operações da organização não foi pois a Europa, mas a África onde o exército português enfrentava os movimentos independentistas. A Aginter colocou os seus responsáveis de operações nos países limítrofes da África portuguesa. " Os seus objectivos englobavam a eliminação dos líderes dos movimentos de libertação, a infiltração, o estabelecimento de redes de informadores e de agentes provocadores e a utilização de falsos movimentos de libertação ". [14] Essas guerras secretas eram travadas em coordenação com a PIDE e outros serviços do governo português. " A Aginter correspondia-se por escrito com a PIDE no quadro das suas operações especiais e das suas missões de espionagem ". [15]

    Amilcar Cabral. Entre as personalidades mais importantes, que foram vítimas dos assassínios orquestrados pela Aginter em Portugal e nas colónias, figuram sem dúvida Humberto Delgado, líder da oposição portuguesa, Amílcar Cabral, uma das figuras emblemáticas da revolução africana, e Eduardo Mondlane, líder e presidente do partido de libertação de Moçambique, a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), que foi morto em Fevereiro de 1969. [16] Apesar da violência dos métodos utilizados, Portugal não conseguiu impedir que as suas colónias acedessem à independência. Goa foi absorvida pela Índia em 1961. A Guiné-Bissau tornou-se independente em 1974, Angola e Moçambique em 1975, enquanto, nesse mesmo ano, Timor Leste foi invadido pela Indonésia.

    Paralelamente a essas guerras coloniais, a Aginter Press desempenhou também um papel importante nas guerras secretas travadas contra os comunistas da Europa ocidental. Os documentos disponíveis sobre os exércitos stay-behind da NATO e a guerra clandestina parecem indicar que a organização lisboeta foi responsável por mais violências e assassínios do que qualquer outro exército secreto do velho continente. Os seus soldados de sombra agiam com uma mentalidade aparte. Contrariamente aos seus homólogos do P26 suíço ou do ROC norueguês, participavam em verdadeiras guerras abertas nas colónias e matavam em cadeia, sob o comando de um capitão que, seguro duma experiência adquirida na Indochina, na Coreia e na Argélia, não concebia outro meio de acção que não fosse a violência.

    A operação realizada pelos combatentes de sombra em nome da luta contra o comunismo sobre a qual estamos mais bem informados é provavelmente o atentado da Piazza Fontana que atingiu as capitais políticas e industriais da Itália, Roma e Milão, pouco antes do Natal, a 12 de Dezembro de 1969. Nesse dia, quatro bombas explodiram nas duas cidades, matando às cegas 16 civis, na sua maioria camponeses que se dirigiam ao Banca Nazionale Dell'Agricultura de Milan para depositar as suas modestas receitas de um dia de mercado. Ficaram feridas ou mutiladas mais oitenta pessoas. Uma das bombas colocadas na Piazza Fontana não explodiu por causa do mau funcionamento do temporizador, mas quando os agentes do SID e a polícia chegaram ao local, apressaram-se a destruir os indícios comprometedores, fazendo explodir a bomba. A execução desse atentado obedecia estritamente às estratégias de guerra secreta definidas por Guérain-Sérac. Os serviços secretos italianos atribuíram esse acto à extrema-esquerda, chegando ao ponto de colocar os componentes de um engenho explosivo na casa do editor Giangiacomo Feltrinelli, conhecido pelas suas ideias de esquerda e aproveitaram para prender numerosos comunistas. [17]

    Um relatório interno do SID, classificado como confidencial, e datado de 16 de Dezembro de 1969, suspeitava já que os atentados de Roma e Milão podiam ter sido feitos pela extrema-direita com o apoio da CIA. [18] No entanto, a opinião pública italiana foi alimentada pela ideia de que os comunistas italianos, na altura muito influentes, tinham decidido recorrer à violência para conquistar o poder. Na realidade, a paternidade desses actos recaía muito obviamente nas organizações fascistas Ordine Nuovo e Avanguardia Nazionale que agiam em estreita colaboração com os exércitos stay-behind. O militante de extrema-direita, Guido Giannettini, que foi directamente implicado nos atentados, era colaborador próximo da organização portuguesa Aginter Press. " O inquérito confirmou que existiam mesmo entre a Aginter Press, a Ordine Nuovo e a Avanguardia Nazionale ", anunciou o juiz Salvini aos membros da comissão de inquérito senatorial. " Ressalta claramente que Guido Giannettini estava em contacto com Guérain-Sérac em Portugal desde 1964. Ficou estabelecido que instrutores da Aginter Press (…) se deslocaram a Roma entre 1967 e 1968 e treinaram membros da Avanguardia Nazionale no manejamento de explosivos". O juiz Salvini concluiu, com base nos documentos disponíveis e nos testemunhos recolhidos, que a Aginter Press, uma fachada da CIA, tinha desempenhado um papel decisivo nas operações de guerra clandestina realizadas na Europa ocidental e tinha executado uma série de atentados sangrentos a fim de desacreditar os comunistas italianos. [19]

    Estes factos foram confirmados em Março de 2001 pelo general Giandelio Maletti, antigo patrono da contra-espionagem italiana, que testemunhou no quadro do processo de militantes de extrema-direita, acusados de ter provocado a morte de 16 pessoas nos atentados da Piazza Fontana. Perante o tribunal de Milão, Maletti declarou que: " A CIA, seguindo as directrizes do seu governo, queria fazer nascer um nacionalismo italiano capaz de combater o pendor para a esquerda do país e, nesta óptica, não é impossível que se tenha socorrido de terroristas de extrema-direita ". Este depoimento crucial comparava a CIA a uma organização terrorista. " Não se esqueçam que era Nixon que se encontrava na altura à frente do país ", lembrou o general, " e Nixon não era um homem vulgar, um político muito apurado, mas um homem de métodos pouco ortodoxos ". [20] O juiz italiano Guido Salvini confirmou que todas as pistas levavam a "um serviço de informações estrangeiro". " Quando diz 'serviço de informações estrangeiro' está a referir-se à CIA ?", insistiram os jornalistas italianos, ao que Salvini respondeu prudentemente: " Estamos em condições de afirmar que sabemos pertinentemente quem participou na preparação dos atentados e quem estava sentado à mesa quando foram dadas as ordens. Isso é incontestável ". [21]

    Não contente por lutar contra o comunismo na Itália, o capitão Guérain-Sérac estava firmemente disposto a travar o combate à escala mundial. Com esse objectivo, agentes da Aginter, entre os quais o americano Jay Sablonsky, participaram ao lado da CIA e dos Boinas Verdes na tristemente célebre contra-guerrilha da Guatemala que fez, entre 1968 e 1971, cerca de 50 mil mortos, na sua maioria civis. Os homens da Aginter estiveram também presentes no Chile em 1973 onde participaram no golpe de estado em que a CIA substituiu o presidente socialista democraticamente eleito, Salvador Allende, pelo ditador Augusto Pinochet. [22] A partir do refúgio que era a ditadura de extrema-direita de Salazar, a Aginter Press podia assim enviar os seus soldados de sombra para combaterem em muitos países do mundo inteiro.

    Esta situação perdurou até à " Revolução dos cravos " de Maio de 1974 que pôs termo à ditadura e abriu caminho ao restabelecimento da democracia em Portugal. Os combatentes de sombra sabiam que a sobrevivência da sua organização estava estreitamente ligada à do regime totalitário. Quando souberam que oficiais de esquerda do exército português preparavam um golpe que iria iniciar a Revolução dos cravos, os agentes da Aginter conspiraram com o general Spínola a fim de eliminar os centristas portugueses. Previam invadir o arquipélago dos Açores a fim de o tornarem num território independente e de o utilizarem como uma base de retaguarda para lançamento das suas operações no continente.

    Como este projecto falhou, a Aginter foi varrida ao mesmo tempo que a ditadura quando no dia 1 de Maio os oficiais de esquerda assumiram o poder, pondo assim fim a cerca de 50 anos de totalitarismo. Três semanas depois, a 22 de Maio, por ordem dos novos dirigentes do país, unidades especiais da polícia portuguesa investiram no quartel-general da Aginter Press da Rua das Praças em Lisboa a fim de fechar a sinistra agência e de apreender todo o material. Mas, quando chegaram ao local, já estava tudo vazio. Graças aos seus contactos no seio dos serviços de informações, os agentes da organização tinham sido prevenidos a tempo e desapareceram, sem que nenhum deles fosse preso. Porém, na sua precipitação, esqueceram alguns documentos. As forças policiais acabaram por recolher grande número de provas que documentavam a responsabilidade da filial da CIA, a Aginter Press, em numerosos actos de terrorismo.

    Como a jovem democracia tentava acabar com o antigo aparelho de segurança herdado da ditadura, a PIDE, os serviços secretos militares e a Legião Portuguesa foram dissolvidos. A " Comissão de Extinção da PIDE e da Legião Portuguesa " em breve descobriu que a PIDE, com a conivência da CIA, tinha dirigido um exército secreto baptizado de Aginter Press; exigiu consultar os dossiers reunidos sobre a Agência na sequência da busca aos locais e que continham todas as provas necessárias. Pela primeira vez, a história do exército secreto português ia ser objecto de um inquérito. Mas, subitamente, todos os dossiers se volatilizaram. " O dossier 'Aginter Press' foi subtraído à Comissão de Extinção da PIDE e da Legião Portuguesa e desapareceu definitivamente ", lamentava o diário português O Jornal uns anos mais tarde num artigo consagrado à rede Gladio. [23]

    Como é que isso pôde acontecer? Porque é que a comissão foi tão negligente perante informações tão essenciais? O italiano Barbachetto que trabalha para a revista política milanesa L'Europeo escreveu a este propósito: " Estavam presentes três dos meus colegas quando foram apreendidos os arquivos da Aginter. Só puderam fotografar alguns fragmentos da quantidade considerável de dados recolhidos naquele dia ". Sob os títulos de " Máfia " ou " Contribuidores financeiros alemães ", os documentos revelavam os nomes de código dos parceiros da Aginter. " Os documentos foram destruídos pelo exército português ", indicava Barbachetto, "que procurou evidentemente evitar incidentes diplomáticos com os governos italiano, francês e alemão, incidentes que não teriam deixado de surgir se as actividades da Aginter nesses países tivessem sido desvendados ". [24]

    A PIDE foi substituída por outro serviço de informações português, o SDCI, que pesquisou a Aginter e chegou à conclusão de que a sinistra organização tivera quatro missões. Primeiro que tudo, tinha servido como " gabinete de espionagem dirigido pela polícia portuguesa e, através dela, pela CIA, pelo BND da Alemanha ocidental ou "Organização Gehlen", pela Direccion General de Seguridad espanhola, pelo BOSS sul-africano e, mas tarde, pelo KYP grego. Paralelamente a esta função de recolha de informações, a Aginter Press tinha igualmente servido de gabinete de " centro de recrutamento e de treino de mercenários e de terroristas especializados em sabotagens e assassínios ". Segundo o relatório do SDCI, a Agência também tinha sido um "centro estratégico para operações de doutrinamento de extrema-direita e neo-fascista na África subsaariana, na América do Sul e na Europa, realizadas em colaboração com regimes fascistas ou assimilados, figuras bem conhecidas da extrema-direita e grupos neo-fascistas activos a nível internacional". Finalmente, a Aginter era a capa dum exército secreto anticomunista, uma " organização fascista internacional baptizada "Ordem e Tradição" com o seu braço militar, a OACI, 'Organização Armada contra o Comunismo Internacional ". [25]

    Depois da queda da ditadura, Guérain-Sérac e os seus activistas anticomunistas fugiram de Portugal para a Espanha onde, sob a protecção de Franco, instalaram o seu novo quartel-general em Madrid. Em troca do asilo político, os combatentes da Aginter, fiéis ao seu compromisso, puseram-se à disposição dos serviços secretos espanhóis para procurar e eliminar os dirigentes do movimento separatista basco ETA. Prosseguiram com as suas operações clandestinas no estrangeiro e trataram especialmente de desacreditar a Frente de Libertação Nacional argelina. " Posso citar-vos outro exemplo particularmente interessante ", declarou o juiz Salvini aos senadores italianos e revelou-lhes como, em 1975, a partir da sua base espanhola, os homens de Guérain-Sérac assistidos pelo americano Salby e por extremistas franceses, italianos e espanhóis, tinham organizado uma série de atentados que assinavam SOA, a fim de comprometer os Soldados da Oposição Argelina.

    " As bombas foram colocadas nas embaixadas argelinas em França, na Alemanha, na Itália e na Grã-Bretanha " e deterioraram a imagem da oposição argelina quando na realidade " os atentados eram obra do grupo de Guérain-Sérac, o que dá uma ideia das suas capacidades de dissimulação e de infiltração ". A bomba colocada diante da embaixada argelina em Francfort não explodiu e foi cuidadosamente examinada pela polícia alemã. " Para compreender os laços que ligavam Guérain-Sérac à Aginter Press, basta observar a complexidade do engenho explosivo ", sublinhou o juiz Salvini. " Continha C4, um explosivo utilizado exclusivamente no exército americano de que não se encontra rasto em nenhum atentado efectuado por anarquistas. Repito, era uma bomba muito sofisticada. Ora a Aginter possuía C4, podemos pois facilmente deduzir os apoios de que beneficiava ". [26]

    Quando o regime ditatorial se desmoronou com a morte de Franco, a 20 de Novembro de 1975, Guérain-Sérac e o seu exército secreto foram mais uma vez obrigados a fugir. A polícia espanhola levou tempo a investigar os vestígios que a Aginter deixou para trás e foi apenas em Fevereiro de 1977 que fez uma busca ao número 39 da rua Pelayo, o quartel-general da organização e descobriu um verdadeiro arsenal composto por espingardas e explosivos. Mas Delle Chiaie, Guérain-Sérac e os seus soldados já tinham fugido há muito de Espanha para a América Latina onde muitos deles escolheram o Chile como nova base para as suas operações. Guérain-Sérac foi visto pela última vez em Espanha em 1997. [27]

    O exército secreto anticomunista português tornou a fazer-se notado em 1990, quando o primeiro-ministro Giulio Andreotti revelou que existiam em Itália e noutros países exércitos stay-behind montados pela NATO. A 17 de Novembro de 1990, a vaga atingiu Lisboa onde o diário Expresso noticiou com o título " Gladio. Os Soldados da guerra fria " que " o escândalo atravessou as fronteiras da Itália visto que a existência de redes secretas Gladio foi confirmada oficialmente na Bélgica, em França, nos Países-Baixos, no Luxemburgo, na Alemanha e semi-oficialmente na Suécia, na Noruega, na Dinamarca, na Áustria, na Suíça, na Grécia, na Turquia, em Espanha, no Reino Unido e em Portugal ". [28]

    Muito preocupado, o ministro português da Defesa, Fernando Nogueira, declarou publicamente a 16 de Novembro de 1990 que não tinha conhecimento da existência dum ramo da rede stay-behind em Portugal e afirmou que nem o seu ministério nem o Estado-maior das forças armadas portuguesas dispunham " de informações, quaisquer que fossem, relativas à existência ou à actividade duma 'estrutura Gladio' em Portugal ". [29] O jornal português Diário de Notícias lamentou que: " as declarações lacónicas de Fernando Nogueira sejam corroboradas, duma maneira ou de outra, por antigos ministros da Defesa, como Eurico de Melo e Rui Machete, assim como por o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros] Franco Nogueira e pelo marechal Costa Gomes, que nos confirmaram não saberem absolutamente nada sobre essa questão. A mesma posição foi adoptada por parlamentares da oposição, membros da Comissão parlamentar da Defesa ". [30]

    Costa Gomes, que fora oficial de ligação junto da NATO, insistiu que nunca tivera conhecimento duma rede clandestina embora tenha " assistido entre 1953 e 1959 a todas as reuniões da Aliança ". Ao mesmo tempo reconheceu que não era impossível que tenha existido um Gladio português, com o apoio da PIDE e de certas pessoas estranhas ao governo. " Essas ligações ", explicou Costa Gomes, " se é que existiram de facto, não poderiam ter funcionado a não ser paralelamente às estruturas oficiais " e portanto ser-lhe-iam totalmente desconhecidas. Do mesmo modo, Franco Nogueira, que fora ministro dos Negócios Estrangeiros no tempo de Salazar, declarou: " Nunca suspeitei da existência dessa organização. Nem quando estive nos Negócios Estrangeiros e me dava amiúde com responsáveis da NATO nem mais tarde ". Afirmou que, se a Gladio tivesse operado em Portugal, " essa actividade certamente seria do conhecimento do Dr. Salazar ". Como Nogueira deu a entender, Salazar teria certamente comunicado essa informação ao chefe da diplomacia: " Tenho muita dificuldade em acreditar que essa rede tenha tido ligações com a PIDE ou com a Legião Portuguesa. É por isso que estou convencido de que a Gladio nunca existiu no nosso país embora, claro, na vida nada seja impossível ". [31]

    Enquanto os representantes do governo se recusavam a divulgar quaisquer informações sobre a guerra secreta, a imprensa portuguesa não podia senão constatar a evidência e deplorar que " visivelmente, vários governos europeus [tinham] perdido do controlo dos seus serviços secretos ", denunciando ao mesmo tempo, a " doutrina de confiança limitada " adoptada pela NATO. " Uma doutrina destas implica que alguns governos não teriam feito o que deviam para combater o comunismo e que portanto não era necessário mantê-los informados sobre as actividades do exército secreto da NATO ". [32] Apenas um alto graduado do exército português consentiu revelar alguns pormenores do segredo, a coberto do anonimato. Um general, que tinha sido chefe do Estado-maior português, confirmou a um jornalista de O Jornal que " havia existido de facto em Portugal e nas colónias um serviço de informações paralelo, cujo financiamento e controlo não pertenciam ao domínio das forças armadas, mas dependia do Ministério da Defesa, do Ministério do Interior e do Ministério do Utramar. Além do mais, esse serviço paralelo estava directamente ligado à PIDE e à Legião Portuguesa ". [33] Não houve nenhuma investigação oficial sobre este assunto, quando muito um simples relatório parlamentar. Por conseguinte, mantém-se o mistério aflorado por estas vagas confirmações.
     

    Notas
    [1] John Palmer, "Undercover NATO Group 'may have had terror links' " no diário britânico The Guardian de 10 Novembro 1990.
    [2] Michael Parenti, Against Empire (City Light Books, San Francisco, 1995), p.143.
    [3] João Paulo Guerra, "'Gladio' actuou em Portugal" no diário português  O Jornal de 16 Novembro 1990.
    [4] Senato della Repubblica. Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabiliy delle stragi : Il terrorismo, le stragi ed il contesto storico politico . Redatta dal presidente della Commissione, sénateur Giovanni Pellegrino. Roma 1995, p.204 e 241.
    [5] Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabili delle stragi. 12ª sessão , 20 Março 1997
    [6] Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabili delle stragi. 9ª sessão , 12 Fevereiro 1997
    [7] Jeffrey M. Bale, "Right wing Terrorists and the Extraparliamentary Left in Post World War 2 Europe : Collusion or Manipulation ?" No periódico britânico Lobster Magazine , n°2, Outubro 1989, p.6.
    [8] Semanário francês Paris Match , Novembro 1974. Citado em Stuart Christie, Stefano delle Chiaie (Anarchy Publications, Londres, 1984), p.27.
    [9] Egmont Koch e Oliver Schröm, Deckname Aginter. Die Geschichte einer faschistischen Terror Organisation , p.4. (Ensaio não publicado de 17 páginas. Sem data, por volta de 1998).
    [10] Ver Christie, delle Chiaie, passim.
    [11] Ibid ., p.29.
    [12] Este documento parece ter sido descoberto no antigo gabinete de Guérain-Sérac depois da revolução portuguesa. Figura no dicionário do terrorismo na Bélgica de Manuel Abramowicz.
    [13] Extracto de Christie, delle Chiaie , p.32. Igualmente em Lobster , Outubro 1989, p.18.
    [14] Ibid. , p.30.
    [15] João Paulo Guerra, "'Gladio' actuou em Portugal" no diário português O Jornal de 16 Novembro 1990.
    [16] Ibid . E Christie, delle Chiaie, p.30.
    [17] Senato della Repubblica. Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabiliy delle stragi : Il terrorismo, le stragi ed il contesto storico politico. Redatta dal presidente della Commissione , senador Giovanni Pellegrino. Roma 1995, p.157.
    [18] Os investigadores Fabrizio Calvi e Frédéric Laurent, especialistas dos serviços secretos, realizaram provavelmente o melhor documentário sobre o atentado da Piazza Fontana: Piazza Fontana : Storia di un Complotto difundido a 11 Dezembro 1997 às 20 h 50 no canal público Rai Due . Uma adaptação em francês intitulada: L'Orchestre Noir : La Stratégie de la tension foi difundida em duas partes no canal franco-alemão Arte quarta-feira 13 e quinta-feira 14 de Janeiro de 1998, às 20h 45. Nesse filme, interrogam uma grande quantidade de testemunhas incluindo juízes que investigaram o assunto durante anos, Guido Salvini e Gerardo d'Ambrosio. Activistas fascistas como Stefano Delle Chiaie, Amos Spiazzi, Guido Giannettini, Vincenzo Vinciguerra e o capitão Labruna, o antigo primeiro-ministro Giulio Andreotti, assim como Victor Marchetti e Marc Wyatt da CIA.
    [19] Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabili delle stragi. 9ª sessão , 12 Fevereiro 1997
    [20] Philip Willan, " Terrorists 'helped by CIA' to Stop Rise of Left in Italy " no quotidiano britânico The Guardian de 26 Março 2001. Willan é um especialista das intervenções secretas norte-americanas em Itália. Assinou o muito interessante Puppetmasters. The Political Use of Terrorism in Italy (Constable, Londres, 1991).
    [21] Diário italiano La Stampa de 22 Junho 1996.
    [22] Peter Dale Scott, "Transnational Repression : Parafascism and the US" no periódico britânico Lobster Magazine , n°12, 1986, p.16.
    [23] João Paulo Guerra, "'Gladio' actuou em Portugal" no diário português O Jornal de 16 Novembro 1990.
    [24] Koch e Schröm, Aginter , p.8.
    [25] Extracto de Christie, delle Chiaie , p.28.
    [26] Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia e sulle cause della mancata individuazione dei responsabili delle stragi. 9ª sessão , 12 Fevereiro 1997.
    [27] Koch e Schröm, Aginter , p.11–12.
    [28] Semanário português Expresso de 17 Novembro 1990.
    [29] Diário português Diário de Noticias de 17 Novembro 1990.
    [30] Sem autor especificado, "Ministro nega conhecimento da rede Gladio. Franco Nogueira disse ao DN que nem Salazar saberia da organização" no diário português Diário de Noticias, de 17 Novembro 1990.
    [31] Ibid.
    [32] Sem autor especificado, "Manfred Woerner explica Gladio. Investigadas ligações a extrema-direita" no diário português Expresso de 24 Novembro 1990.
    [33] João Paulo Guerra, "'Gladio' actuou em Portugal" no semanário português O Jornal de 16 Novembro 1990.


    [*] Historiador suíço, especialista em relações internacionais contemporâneas. É professor na Universidade da Basileia.

    O original encontra-se em http://www.voltairenet.org/article169872.html . Tradução de Margarida Ferreira.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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