segunda-feira, 30 de julho de 2012

Sadismo económico

Sadismo? Sim, sadismo. Que outro nome dar a essa satisfação com que se causa dor e humilhação às pessoas? Nestes anos de crise temos visto como a inclemente aplicação do cerimonial punitivo «austeritário» exigido pela Alemanha provocou – na Grécia, na Irlanda, em Portugal, em Espanha e noutros países da União Europeia – um aumento exponencial do sofrimento social (desemprego, pobreza, mendicidade, suicídios).


Apesar disso, Angela Merkel e os seus aliados continuam a afirmar que sofrer é bom e que, em vez de nele se ver um suplício, se deve ver um momento de deleite… Segundo eles, a cada nova expiação seremos purificados, regenerados, e ficaremos mais próximos do fim da tormenta. Esta filosofia da dor não se inspira no marquês de Sade, mas antes nas teorias de um dos pais do neoliberalismo, Joseph Schumpeter, segundo o qual todo o sofrimento social responde a um objectivo económico necessário, sendo por isso errado diminuir o suplício, mesmo que ligeiramente.

Eis portanto Angela Merkel no papel de «Vanda, a dominadora», encorajada por um coro de instituições financeiras fanáticas (Bundesbank, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional…) e pelos eurocratas sectários do costume (Durão Barroso, Van Rompuy, Olli Rehn, Joaquim Almunia…). Todos apostam na existência de um masoquismo popular que levaria os cidadãos, não apenas à passividade, mas a reclamar mais punições e mais mortificações «ad maiorem Europa gloriam». Sonham até com administrar aos povos o que a polícia designa como «submissão química», ou seja, substâncias capazes de eliminar total ou parcialmente a consciência das vítimas, que sem o quererem são transformadas em marionetas nas mãos do agressor. Mas deviam ter cuidado, porque as massas começam a fazer-se ouvir.

Em Espanha, por exemplo, com o governo conservador a aplicar políticas selvagens de austeridade no limite do «sadismo» [1], multiplicam-se as manifestações de descontentamento social. Numa altura em que este país se encontra, tal como a Grécia, no centro da crise financeira mundial, Mariano Rajoy e a sua equipa económica deram durante meses a impressão de que estavam a avançar sem qualquer orientação. Geriram a crise financeira com uma evidente inabilidade, nomeadamente quando deixaram deteriorar-se o caso da falência do Bankia e quando praticaram o mais obtuso negacionismo a propósito do plano de salvamento europeu dos bancos espanhóis, plano esse que havia sido apresentado pelo ministro espanhol da Economia, Luis de Guindos, como a atribuição «de uma simples linha de crédito que em nada afecta o défice público» [2].

É certo que depois disso já ocorreu a Cimeira Europeia de 28 e 29 de Junho, durante a qual – devido à pressão conjugada de França, Itália e Espanha – a Alemanha acabou por aceitar que o novo Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) possa emprestar directamente aos bancos europeus em dificuldade (nomeadamente aos espanhóis) sem que essa ajuda venha engrossar a dívida soberana dos Estados. Em contrapartida, estes terão no entanto de aplicar severas políticas de ajustamento e de austeridade exigidas pela União Europeia e de ceder uma parte da sua soberania em matéria orçamental e fiscal.

Berlim quer aproveitar o choque criado pela crise, bem como a sua posição dominante, para atingir um velho objectivo: a integração política da Europa segundo as condições alemães. «O nosso objectivo hoje», declarou Angela Merkel num discurso no Bundestag, «é conseguir fazer o que não foi feito [quando o euro foi criado] e acabar com o círculo vicioso da dívida eterna e da não aplicação das regras. Sei que é duro, doloroso. É uma tarefa hercúlea, mas indispensável» [3].

Se o «salto federal» ocorrer e se avançar para uma maior união politica, isso vai significar para cada Estado-membro da União Europeia, repita-se, a renúncia a novas parcelas da sua soberania nacional. Em nome dos compromissos europeus, uma instância central poderá intervir directamente para ajustar o orçamento público e fixar os impostos e as taxas de cada Estado. Que países estão dispostos a abandonar tanta soberania nacional? É certo que, num processo de integração como o da União Europeia, ceder certos aspectos da soberania é inevitável. Mas não se pode confundir federalismo com neocolonialismo [4]…
Nos países da União Europeia submetidos a «planos de salvamento», estas importantes perdas de soberania são já uma realidade. Wolfgang Schaüble, o ministro alemão das Finanças, declarou aliás, a propósito de Espanha, que a «Troika» (BCE, Comissão Europeia, FMI) iria controlar a reestruturação da banca [5]. Irá isto mudar depois da decisão adoptada na Cimeira Europeia de 28 e 29 de Junho últimos?

É provável, porque, tal como recordaram os economistas Niall Ferguson e Nouriel Roubini, «a estratégia de recapitalizar os bancos forçando os Estados a endividar-se junto dos mercados nacionais de títulos — ou do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF) – foi desastrosa para a Irlanda e para a Grécia; provocou uma explosão da dívida pública e tornou o Estado ainda mais insolvente. Ao mesmo tempo, os bancos tornaram-se um risco incontrolável, na medida em que passaram a deter uma parte maior da dívida pública» [6].

Se esta estratégia não funciona, por que motivo foram implantadas durante anos políticas «austeritárias»? O desespero das sociedades permitiu inflectir em parte o sadismo económico representado pela Alemanha. Por quanto tempo?

domingo 22 de Julho de 2012

por Ignacio Ramonet


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A alegria nacional na televisão

A prestação nacional em grandes espectáculos desportivos, como o recente Euro 2012, proporciona momentos privilegiados para ouvir os «portugueses». Equipas de jornalistas calcorreiam o país de microfone em punho e fazem perguntas sobre a selecção de futebol e os seus jogadores; pedem prognósticos e transmitem as aspirações e desejos das pessoas com quem falam; programas de entretenimento assumem o vínculo à equipa nacional realizando «directos» em inúmeros locais públicos, onde os participantes são convidados a demonstrar o seu apoio absoluto. Questões curtas, que induzem quase sempre a resposta, procuram manifestações de entusiasmo. A alegria pelas vitórias desportivas não é encenada e a sua importância na vida dos indivíduos está longe de ser despicienda, embora as manifestações de agrado sejam amplificadas pela presença da câmara, que exige uma performance ao sujeito filmado. Os grandes espectáculos são momentos privilegiados para convidar o «povo» para participar no espaço público televisivo, que é uma montra de representação do país. Este desempenho ocorre, no entanto, num contexto particular. O cidadão surge na condição de adepto, e dele se espera um determinado comportamento; como pouco mais se sabe da sua existência fora dessa condição, a sua representação, enquanto forma exemplar do «povo», é controlada e restrita.


A imagem estrutural de um país em crise tem chegado pelos meios de comunicação social em forma de informação em bruto: os números do desemprego, da quebra de salários, da eliminação dos subsídios de férias e Natal, das bolsas escolares, a restrição da acção da Segurança Social, etc. Pelos jornais, televisões e rádios um conjunto de comentadores remete estes dados para o quadro de equações mais vastas que desembocam inevitavelmente na questão produtiva. Àqueles números é dado o mesmo estatuto que outros que definem mais directamente a pujança da actividade económica: o nível das exportações, do consumo, da balança comercial, os resultados da Bolsa de Valores. Nas televisões, intervenções diárias analisam a evolução das Bolsas, os títulos que sobem e que descem, o modo como estes resultados se relacionam com dinâmicas internacionais, com os mercados europeus, com os números do crescimento do emprego nos Estados Unidos, com os últimos resultados da produção industrial alemã, com os juros da dívida italiana, etc. O ritmo da Bolsa torna-se uma espécie de oráculo sobre o futuro próximo, cuja lógica se encontra no fim de um número complexo de operações, impossíveis de descodificar pela grande maioria da população e em relação às quais os próprios especialistas se revelam genericamente incompetentes. Através destas representações numéricas, dependentes da equação produtiva, a crise surge sem faces ou experiências concretas e a opinião do «povo» é remetida ao resultado da sondagem política, que simplifica de forma brutal a experiência vivida de quem escolhe. O «povo» em crise ouve-se pouco na televisão, sobretudo em comparação com o «povo» alegre, transmutado em partidário integral das cores nacionais, ou esse outro «povo», imaginado pelo sonho liberal, constituído por empreendedores individuais, exemplos de iniciativa que incutem na sociedade um sentimento de culpa generalizado, assumido por aqueles que mais sofrem com a crise.

A própria condição de adepto de futebol é reduzida pela transmissão televisiva. O futebol é um meio específico de as pessoas se relacionarem e de participarem na vida quotidiana através das suas opiniões; enquanto idioma social ocupa um impressionante espaço, nas escolas, nos locais de trabalhos, em momentos de lazer, embora esteja substancialmente mais presente no âmbito de sociabilidades masculinas. Nestes contextos, suscita debates e confrontações que expressam o modo como, enquanto cultura popular de amplo espectro, se pode tornar uma forma de comentário social, dado ser veículo de observações com uma dimensão ética e moral: sobre justiça, mérito, capacidade, habilidade, estratégias, etc. Estas opiniões e discussões dão origem a debates e enformam a existência de um espaço público específico.

Na televisão, no entanto, a complexidade do adepto tende a desaparecer perante as condições de construção do espectáculo televisivo em ambiente de unidade nacional. Os sorrisos e a alegria, como noutros formatos de entretenimento, são exigências da produção; o adepto é convidado, pelo modo como é solicitado, a confirmar essa adesão, mesmo aquele que apenas se aproxima do futebol, um jogo que não acompanha e de que não gosta particularmente, por exigência patriótica. Para a televisão, e sobretudo para as grandes marcas − cervejeiras, bancárias, gasolineiras −, esta alegria é, por sua vez, um elemento fundamental do seu negócio. O risco dos anunciantes e das televisões, perante resultados desportivos menos conseguidos, ou exibições pobres, é a demonstração pública da dissensão: os assobios nos campos, as crónicas negativas, o jogador fora de forma, o ponto de vista clubista, que rompe com a unidade, enfim todos os elementos que prejudicam a marca portuguesa e as marcas dos produtos que usam a identidade nacional enquanto razão última do consumo. A crítica é então severamente estigmatizada; ao «português» pede-se uma adesão sem hesitações. A obrigação de apoiar a selecção, de afirmar, porque tem de ser e contra a evidência, que Cristiano Ronaldo é o melhor jogador do mundo, faz-se em nome dos valores nacionais, mas persegue objectivos económicos; os media e os negócios associados instrumentalizam e reforçam assim os sentimentos nacionais. Simultaneamente, esta representação do «povo-adepto incondicional» articula-se com um contexto político actual em que a esse mesmo «povo» são exigidos sacrifícios e abnegação. Como no futebol, perante a necessidade de união nacional, no espaço público alargado, a crítica política, tal como as greves, os protestos ou as manifestações tornaram-se uma espécie de antipatriotismo. O espectáculo televisivo do futebol dá enfim a palavra ao povo, mas assegurando que a sua opinião se reduza à demonstração da alegria nacional.

sexta-feira 6 de Julho de 2012

por Nuno Domingos

http://pt.mondediplo.com/spip.php?article873

sábado, 28 de julho de 2012

Pour tout l'or de Colombie

A AGENDA POLÍTICA PORTUGUESA

A desinformação continua a todo vapor nos media portugueses que se auto-proclamam como "referência". A intensificação da crise capitalista neles é edulcorada ou omitida de todo. Neste momento a desagregação da União Europeia já pode ser antevista; a catástrofe da economia espanhola é o assunto do dia (a seguir vem a Itália); o descarte da Grécia da zona euro está anunciado para Setembro próximo (depois de ser deixada exangue pela troika UE/BCE/FMI); a classificação "triplo A" da própria Alemanha já está sob ameaça; o dólar americano cambaleia sob o peso de uma dívida impagável (e o mesmo se passa com a libra britânica). Seria um objecto de discussão com interesse saber quem ruirá primeiro, se o euro ou o dólar.


Enquanto isso, a opinião pública vai sendo entretida com casos de figurinhas insignificantes e desprezíveis como o sr. Relvas e a sua licenciatura mal amanhada. A pequena política serve nesse caso para ocultar o que é importante. Quanto à troika, os palradores da TV asseveram diariamente ser preciso que Portugal cumpra a todo custo as suas exigências — ou seja, ao custo da destruição do tecido produtivo do país, da sua economia real.

Está na hora de enfrentar opções que têm de ser enfrentadas, como a manutenção de Portugal no euro e na UE, a recuperação da soberania monetária, o lançamento de uma nova moeda de emissão estatal (e não de banqueiros privados como agora), a cessação de pagamentos ao exterior e de empréstimos cada vez mais ruinosos, a renacionalização do sector financeiro e de grandes grupos económicos oligopolistas, a redemocratização de Portugal. A opção está entre sofrer dificuldades temporárias imediatamente após a saída do euro e da UE e a servidão perene ao capital financeiro que nos condenará a um subdesenvolvimento cada vez maior. Daqui a um par de anos, com a continuação das actuais receitas da troika, poderá ser tarde. O exemplo grego é eloquente.
 
retirado do resistir.info

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