sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A Rússia na mira


por Paul Craig Roberts
 
O ataque de Washington à Rússia ultrapassou a fronteira do absurdo e entrou no âmago da insânia.

O novo chefe do US Broadcasting Board of Governors, Andrew Lack, declarou que o novo serviço russo, RT, o qual difunde em múltiplas línguas, é uma organização terrorista equivalente ao Boko Haram e ao Estado Islâmico. Por sua vez, a Standard and Poor's acaba de degradar a classificação de crédito da Rússia ao nível de lixo.

Hoje a RT International entrevistou-me acerca destes desenvolvimentos insanos.

Outrora, quando a América ainda era um país são, a acusação de Lack teria levado a que fosse escorraçado do cargo. Ele teria sido obrigado a demitir-se e desaparecer da vida pública. Hoje, no mundo simulado que a propaganda ocidental criou, a declaração de Lack é tomada a sério. Mais uma ameaça terrorista foi identificada – a RT. (Embora tanto Boko Haram como o Estado Islâmico empreguem o terror, estritamente falando eles são organizações políticas à procura de domínio, não organizações terroristas, mas esta distinção estaria para além da cabeça de Lack. Sim, eu si. Há uma piada que se podia fazer aqui acerca do que falta a Lack [NT] . Um nome adequado.)

No entanto, seja o que for que possa faltar a Lack, duvido que ele acredite na sua declaração disparatada de que a RT é uma organização terrorista. Então, qual é o seu jogo?

A resposta é que os media prostitutos (presstitute) do Ocidente, ao tornarem-se Ministérios da Propaganda de Washington, criaram grandes mercados para a RT, a Press TV e Al Jazeera. Como cada vez mais povos do mundo voltam-se para estas fontes mais honestas de notícias, declinou a capacidade de Washington de falsificar explicações em causa própria.

A RT, em particular, tem uma grande audiência ocidental. O contraste entre reportagens verdadeiras da RT e as mentiras cuspidas pelos media dos EUA está a minar o controle de Washington da explicação. Isto já não é mais aceitável.

Lack enviou uma mensagem à RT. A mensagem é: contenha-se; parece de informar de modo diferente da nossa linha; pare de contestar os factos tais como Washington declara que são e que os presstitutos relatam; embarque nisso ou se não...

Por outras palavras, o "livre discurso" que Washington e seus estados fantoches da UE, canadiano e australiano apregoam significa: livre discurso para a propaganda e as mentiras de Washington, mas não para qualquer verdade. A verdade é terrorismo, porque a verdade é a principal ameaça a Washington.

Washington preferiria evitar o embaraço de realmente fechar a RT, tal como o seu vassalo do Reino Unido fez com a Press TV. Washington simplesmente quer calar a RT. A mensagem de Lark à RT é:   auto-censurem-se.

Na minha opinião, a RT já não diz tudo (understates) nas suas coberturas e reportagens, como faz Al Jazeera. Ambas as organizações noticiosas entendem que não podem ser demasiado directas, pelo menos não demasiado seguidamente ou em demasiadas ocasiões.

Muitas vezes pergunto-me porque o governo russo permite que 20 por cento dos media russos funcionem como quinta coluna de Washington no interior da Rússia. Suspeito que a razão é que ao tolerar a propaganda descarada de Washington dentro da Rússia, o governo russo espera que algumas notícias factuais possam ser relatadas nos EUA via RT e outras organizações noticiosas russas.

Estas esperanças, tais como outras esperanças russas acerca do Ocidente, provavelmente serão desiludidas no fim. Se a RT for fechada ou assimilada ao padrão dos media presstitutos ocidentais, nada será dito acerca disso, mas se o governo russo acabar com os agentes de Washington, mentirosos descarados, nos media russos, ouviremos para sempre que os malévolos russos suprimem o "livre discurso". Recordem: o único "livre discurso" permissível é a propaganda de Washington.

Só o tempo dirá se a RT decide ser encerrada por contar a verdade ou se somará a sua voz à propaganda de Washington.

AS AGÊNCIAS DE CLASSIFICAÇÃO DE RISCO

O outro ponto da entrevista era a degradação do crédito russo à categoria de lixo.

A degradação feita pela Standard and Poor's é, sem qualquer dúvida, um acto político. Ela prova o que já sabíamos e é que as firmas americanas de classificação são operações políticas corruptas. Recordam a classificação "Investment Grade" que as agências de classificação americanas deram ao lixo óbvio da subprime? Estas agências de classificação são pagas pela Wall Street e, tal como a Wall Street, servem o governo dos EUA.

Uma olhadela aos factos permite estabelecer a natureza política da decisão. Não espere que a corrupta imprensa financeira dos EUA examine os factos. Mas neste exacto momento, nós examinaremos os factos.

Na verdade, colocaremos os factos no contexto da situação da dívida estado-unidense.

De acordo com contadores da dívida (debt clocks) disponíveis online, a dívida nacional russa como percentagem do PIB russo é de 11 por cento. A dívida nacional americana em percentagem do PIB dos EUA é de 105 por cento, cerca de dez vezes mais alta. Meus co-autores, Dave Kranzler, John Williams e eu temos mostrado que, quando medida correctamente, a dívida dos EUA em percentagem do PIB é muito mais alta do que o número oficial.

A dívida nacional russa per capital é de US$1.645. A dívida nacional estado-unidense per capita é de US$56.952.

A dimensão da dívida nacional da Rússia é de US$235 mil milhões, menos de um quarto de um trilião. A dimensão da dívida nacional dos EUA é de US$18 triliões (milhões de milhões), 76,6 vezes maior do que a dívida russa.

Colocando isto em perspectiva de acordo com os contadores da dívida, o PIB dos EUA é de US$17,3 triliões e o PIB da Rússia é de US$2,1 triliões. Assim, o PIB dos EUA é oito vezes maior do que o da Rússia, mas a dívida nacional dos EUA é 76,5 vezes maior do que a dívida russa.

Evidentemente, é a classificação de crédito dos EUA que deveria ter sido degradada para o status de lixo. Mas isto não pode acontecer. Qualquer agência de classificação de crédito que contasse a verdade seria fechada e processada. Não importaria quão absurdas fossem as acusações. As agência de classificação seriam culpadas por serem anti-americanas, organizações terroristas como a RT, etc e tudo o mais, e elas sabem disso. Nunca espere qualquer verdade de qualquer cidadão da Wall Street. Eles mentem como modo de vida.

Segundo este sítio web , os EUA deviam à Rússia desde Janeiro de 2013 a quantia de US$162,9 mil milhões. Como a dívida nacional russa é de US$235 mil milhões, 69 por cento desta é coberta pelas obrigações de dívida dos EUA para com a Rússia.

Se isto é uma crise russa, eu sou Alexandre o Grande.

Como a Rússia tem haveres suficientes em US dólar para resgatar toda a sua dívida nacional e ainda lhe sobrar um par de centenas de milhares de milhões de dólares, o que é o problema da Rússia?

ECONOMISTAS NEOLIBERAIS, A QUINTA COLUNA

Um dos problemas da Rússia é o seu banco central. Na sua maior parte, os economistas russos são os mesmos neoliberais incompetentes que existem no mundo ocidental. Os economistas russos estão enamorados dos seus contactos com o Ocidente "superior" e com o prestígio que eles imaginam que estes contactos lhes dão. Enquanto os economistas russos concordam com os ocidentais, obtêm convites para conferências no exterior. Estes economistas russos são de facto agentes americanos, quer o percebam ou não.

Actualmente o banco central russo está a esbanjar desnecessariamente os grandes haveres russos de divisas externas para apoiar o ataque ocidental ao rublo. Isto é um jogo de loucos que nenhum banco central deveria jogar. O banco central da Rússia deveria recordar, ou aprender se não souber, o ataque de Soros ao Banco da Inglaterra.

As reservas da Rússia deveriam ser utilizadas para que se retirasse da dívida nacional em aberto, tornando-a então o único país do mundo sem dívida nacional. Os dólares restantes deveriam ser descarregados em acções coordenadas com a China a fim de destruir o dólar, a base de poder do imperialismo americano.

Alternativamente, o governo russo deveria anunciar que a sua resposta à guerra económica que está a ser conduzida contra a Rússia pelo governo em Washington e pelas agências de classificação da Wall Street é o incumprimento dos seus empréstimos a credores ocidentais. A Rússia nada tem a perder quando já está desligada do crédito ocidental devido às sanções estado-unidenses. O incumprimento russo causaria consternação e crise no sistema bancário europeu, o que é exactamente o que a Rússia precisa a fim de romper o apoio da Europa às sanções estado-unidenses.

Na minha opinião, os economistas neoliberais que controlam a política económica russo são uma ameaça muito maior à soberania da Rússia do que as sanções económicas e as bases de mísseis dos EUA. Para sobreviver a Washington, a Rússia precisa desesperadamente de pessoas que não sejam românticas acerca do Ocidente.

Para dramatizar a situação, se o Presidente Putin conceder-me cidadania russa e permitir-me nomear Michael Hudson e Nomi Prins como meus representantes, assumirei o comando do banco central russo e colocarei o Ocidente fora das operações.

Mas isso exigiria que a Rússia assumisse os riscos associados à vitória. Os Integracionistas Atlantistas no interior do governo russo querem a vitória para o Ocidente, não para a Rússia. Um país cheio de traição dentro do próprio governo tem possibilidades reduzidas contra Washington, um jogador determinado.

Outra quinta coluna a operar contra a Rússia a partir de dentro são as ONGs financiadas pelos EUA e Alemanha. Estes agentes americanos mascarados como "organizações de direitos humanos", "organizações de direitos da mulher", "organizações para a democracia" e quaisquer outros títulos politicamente correctos de que se servem e que são incontestáveis.

Ainda outra ameaça à Rússia vem da percentagem da juventude russa que cobiça a cultura depravada do Ocidente. Permissividade sexual, pornografia, drogas, auto-absorção. Estas são as ofertas culturais do Ocidente. E, naturalmente, matar muçulmanos.

Se os russos quisessem matar pessoas por diversão e consolidar a hegemonia dos EUA sobre si próprios e o mundo, eles deveria apoiar a "integração atlantista" e virar as costas ao nacionalismo russo. Por que serem russos se você podem ser servos dos americanos?

Que melhor resultado para os neoconservadores americanos do que terem apoio russo à hegemonia de Washington sobre o mundo? Isso é o que os economistas neoliberais russos e os "integracionistas europeus" apoiam. Estes russos estão desejosos de serem servos americanos a fim de fazerem parte do Ocidente e serem bem pagos pela sua traição.

Quanto fui entrevistado pela RT acerca destes desenvolvimentos, o âncora do noticiário esteve a tentar confrontar as acusações de Washington com osf actos. É espantosos que os jornalistas russos não entendam que os factos nada têm a ver com isto. Os jornalistas russos, aqueles independentes de subornos americanos, pensam que os factos importam nas discussões acerca das acções russas. Eles pensam que os assaltos a civis pelos nazis ucranianos apoiados pelos americanos são um facto. Mas, naturalmente, nenhum de tais factos existe nos media ocidentais. Nos media do Ocidente os russos, e apenas os russos, são responsáveis pela violência na Ucrânia.

A narrativa de Washington é que a malévola intenção de Putin de restaurar o império soviética é a causa do conflito. Esta linha dos media no Ocidente não tem relacionamento com quaisquer factos.

Na minha opinião a Rússia está em grave perigo. Os russos estão a confiar nos factos e Washington está a confiar na propaganda. Para Washington, factos não são relevantes. As vozes russas são escassas em comparação com as vozes ocidentais.

A falta de uma voz russa deve-se à própria Rússia. A Rússia aceitou viver num mundo controlado pelos serviços financeiros, legais e de telecomunicações dos EUA. Viver neste mundo significa que a única voz é a de Washington.

Por que a Rússia concordou com esta desvantagem estratégica é um mistério. Mas em consequência deste erro estratégico, a Rússia está com uma desvantagem.

Considerando as intrusões que Washington tem dentro do próprio governo russo, os oligarcas economicamente poderosos e os empregados do estado com conexões ao Ocidente, bem como os media russos e a juventude russa, com as centenas de ONGs financiadas por americanos e alemães que podem colocar russos na ruas para protestar contra qualquer defesa da Rússia, o futuro da Rússia como um país soberano é duvidoso.

Os neoconservadores americanos são implacáveis. O seu oponente russo está enfraquecido pelos êxitos no interior da Rússia da propaganda ocidental de guerra fria e que retrata os EUA como o salvador e o futuro da espécie humana.

A escuridão do Sauron América continua a propagar-se sobre o mundo.
 
 
26/Janeiro/2015
[NT] Jogo de palavras intraduzível.

Ver também:

  • Instrumentalisation des agences de notation , Jacques Sapir

    O original encontra-se em www.paulcraigroberts.org/2015/01/26/russia-cross-hairs-paul-craig-roberts/


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

    Liberdade, onde estás? Não na América ou na Europa


    por Paul Craig Roberts 
     
     
    Mario Draghi, cartoon de Fernão Campos. Quando o antigo executivo da Goldman Sachs que dirige o Banco Central Europeu (BCE) anunciou que ia imprimir 720 mil milhões de euros por ano e com eles comprar dívidas não pagas (bad debts) de grandes bancos politicamente conectados, o Euro afundou e tanto o mercado de acções como o Franco suíço subiram. Tal como nos EUA, a facilidade quantitativa (quantitative easing, QE) serve para enriquecer o que já são ricos. Ela não tem outro objectivo.

    As bem endinheiradas instituições financeiras que compraram as perturbadas dívidas soberanas da Grécia, Itália, Portugal e Espanha a baixos preços agora venderão os títulos ao BCE a altos preços. E apesar do desemprego a nível de depressão na maior parte da Europa e da austeridade imposta sobre os cidadãos, o mercado de acções ascende na antecipação de que grande parte dos 60 mil milhões de novos Euros que serão criados a cada mês encontrará o seu caminho para os preços das acções. A liquidez alimenta o mercado de acções.

    Para onde mais o dinheiro pode ir? Algum irá para Francos suíços e algum para o ouro enquanto ele ainda está disponível, mas para a maior parte o BCE está a activar as impressoras a fim de promover a riqueza dos Um Porcento que possui acções. O Federal Reserve e o BCE levaram o Ocidente outra vez aos dias em que um punhado de aristocratas possuía tudo.

    Os mercados de acções são bolhas enchidas pela criação de dinheiro do banco central. Na base do raciocínio tradicional não há razões saudáveis para estar nas acções e investidores lúcidos tem-nas evitado.

    Mas já não há ponto de retorno em parte alguma e os bancos centrais são dirigidos pelos ricos para os ricos, o raciocínio lúcido demonstrou ser um erro durante os últimos seis anos. Isto mostra que durante um período indeterminável a corrupção pode prevalecer sobre os princípios fundamentais.

    Como demonstrei, conclusivamente, no meu livro, The Failure of Laissez Faire Capitalism, primeiro a Goldman Sachs enganou prestamistas ao emprestar em excesso ao governo grego. A seguir antigos executivos da Goldman Sachs assumiram o comando dos assuntos financeiros da Grécia e impuseram austeridade sobre a população a fim de evitar perdas aos prestamistas estrangeiros.

    Isto estabeleceu um novo princípio na Europa, o mesmo que o FMI tem aplicado implacavelmente a devedores latino-americanos e do Terceiro Mundo. O princípio é que quando prestamistas estrangeiros cometem erros e emprestam excessivamente a governos estrangeiros, carregando-os com dívida, os erros dos banqueiros são rectificados roubando as populações pobres. Pensões, serviços sociais e emprego público são cortados, recursos valiosos são vendidos em liquidação a estrangeiros por centavos e o governo é forçados a apoiar a política externa dos EUA. As "Confissões de um pistoleiro económico" ("Confessions of an Economic Hit Man") [NR] , de John Perkins descrevem o processo perfeitamente. Se não leu o livro de Perkins, não faz ideia de quão corrupto e vicioso são os Estados Unidos. Na verdade, Perkins mostra que os empréstimos excessivos são intencionais, a fim de preparar o país para o saqueio.

    Foi isto o que o Goldman Sachs fez à Grécia, intencionalmente ou não.

    Levou muito tempo para os gregos perceberem isso. Aparentemente, 36,5 por cento da população foi despertada pelo aumento da pobreza, do desemprego e das taxas de suicídios. Esse número, pouco mais de um terço do eleitorado, foi suficiente para colocar o Syriza no poder nas eleições que acabam de terminar, expulsando o corrupto partido da Nova Democracia que sistematicamente entregou o povo grego aos bancos estrangeiros. No entanto, 27,7 por cento dos gregos, se a contagem for correcta, votou pelo partido que sacrificou o povo grego aos banksters. Mesmo na Grécia, um país habituado a manifestações populares nas ruas, uma percentagem significativa da população está com os cérebros suficientemente lavado para votar contra os seus próprios interesses.

    Pode o Syriza fazer alguma coisa? Isto está para ser vista, mas provavelmente não. Se este partido político tivesse recebido 55% ou 65% ou 75% dos voto, sim. Mas a votação máxima de 36,5% não mostra um país unificado consciente dos seus apuros e do seu saqueio nas mãos dos banksters ricos. A votação mostra que uma percentagem significativa da população grega apoia o saqueio estrangeiro da Grécia.

    Além disso, o Syriza enfrenta os vilões: os bancos alemães e holandeses que possuem empréstimos da Grécia e os governos que apoiam os bancos, a União Europeia que está a utilizar a crise da dívida soberana para destruir a soberania dos países individuais que compreendem da União Europeia, Washington que apoia o poder soberano da UE sobre os países individuais pois é mais fácil controlar um governo do que um par de dúzias deles.

    Os prostitutos (presstitutes) media financeiros do Ocidente já advertem o Syriza para não por em perigo sua condição de membros da divisa comum desviando-se do modelo de austeridade imposto de fora sobre os cidadãos gregos, com a cumplicidade da Nova Democracia.

    Aparentemente, há uma falta de meios formais de saída da UE e do Euro, mas mesmo assim a Grécia pode ser ameaçada de expulsão. A Grécia deveria saudar calorosamente a expulsão.

    Sair da UE e do Euro é a melhor coisa que pode acontecer à Grécia. Um país sem a sua própria divisa não é um país soberano. É um estado vassalo de uma outra potência. Um país sem a sua própria divisa não pode financiar as suas próprias necessidades. Embora o Reino Unidos seja membro da UE, o RU mantém a sua própria divisa e não está sujeito ao controle do BCE. Um país sem a sua própria moeda é impotente. É uma não-entidade.

    Se os EUA não tivessem o seu próprio dólar, o EUA não teriam qualquer importância na cena mundial.

    A UE e o Euro foram fraude e trapaça. Países perderam sua soberania. Chega de "autogestão", "liberdade", "democracia" ocidentais, tudo slogans sem conteúdo. Em todo Ocidente não há nada excepto o saqueio do povo pelos Um Por Cento que controlam os governos.

    Na América, o saqueio não repousa no endividamento, porque o US dólar é a divisa de reserva e os EUA podem imprimir todo o dinheiro que necessitarem a fim de pagar suas contas e resgatar sua dívida. Na América o saqueio do trabalho tem sido através da deslocalização de empregos (jobs offshoring).

    As corporações americanas descobriram, e se não o fizessem eram informadas pela Wall Street que deviam ir para o exterior ou serem tomadas, que podiam aumentar os lucros deslocalizando suas operações manufactureiras no estrangeiro. O custo do trabalho mais baixo resultava em lucros mais altos, partilha de preços mais altos, enormes bónus para as administrações com base no "desempenho" e ganhos de capital para os accionistas. A deslocalização aumentou grandemente a desigualdade de rendimento e riqueza nos EUA. O capital teve êxito no saqueio do trabalho.

    Os bem pagos trabalhadores manufactureiros que foram deslocados, se foram capazes de encontrar empregos substitutivos, trabalhavam em tempo parcial em emprego de salário mínimo na Walmart e no Home Depot.

    Economistas, se é que merecem tal designação, tais como Michael Porter e Matthew Slaughter, prometeram aos americanos que a ficcional "Nova Economia" produziria melhor, com pagamentos mais altos e empregos mais limpos para os americanos do que os empregos de "unhas sujas" e que foi afortunado nossas corporações estarem a deslocalizar-se.

    Anos depois, como provei conclusivamente, não há sinal destes empregos da "Nova Economia". O que temos ao invés é um agudo declínio na taxa de participação da força de trabalho pois os desempregados não podem encontrar empregos. Os empregos substitutivos para os empregos da manufactura são principalmente nos serviços domésticos em tempo parcial.

    As pessoas têm de ter dois ou três destes empregos para conseguirem sustentar-se.

    Agora que este facto, outrora controversa acredite-se ou não, provou-se completamente verdadeiro, os mesmos porta-vozes comprados e pagos para roubar o trabalho e destruir os sindicatos clamam, sem uma réstia de evidência, que os empregos deslocalizados estão a voltar para casa.

    Segundo estes propagandistas, temos agora o que é chamado "re-escoramento" ("reshoring").

    Um propagandista do "re-escoramento" afirma que o crescimento do mesmo ao longo dos últimos quatro anos é de 1.775 por cento, um aumento de 18 vezes. www.manufacturingnews.com/... Não há sinal de quaisquer destes alegados empregos "re-escorados" nas estatísticas de empregos com base em folhas de pagamento do Bureau of Labor Statistics (BLS).

    Este re-escoramento é nada mais que propaganda para neutralizar a tardia percepção de que os acordos de "livre comércio" e a deslocalização de empregos não foram benéficos para a economia americana ou para a sua força de trabalho, mas foram benéficos só para os super-ricos.

    Tal como povos através da história, o povo americano está a ser transformado em servos e escravos porque os loucos acreditam nas mentiras com que os alimentam. Eles sentam em frente à Fox News, CNN e tudo o mais. Eles lêem o New York Times. Se quiser saber quão mal os americanos têm sido serviço pelos assim chamados media, leia "Uma história do povo dos Estados Unidos" (A People's History of the United States) de Howard Zinn e "A história não contada dos Estados Unidos" (The Untold History of the United States), de Oliver Stone e Peter Kuznick.

    Os media ajudam o governo e os interesses privados que lucram com o seu controle do governo, com controle da lavagem cerebral do público. Temos de invadir o Afeganistão porque uma facção ali a combater pelo controle político do país está a proteger Osama bin Laden, a quem os EUA acusam sem qualquer prova de embaraçar os poderosos EUA com o ataque de 11/Set. Temos de invadir o Iraque porque Saddam certamente tem "armas de destruição em massa" apesar dos relatórios em contrário dos inspectores de armas. Temos de derrubar Kadafi por causa de uma lista de mentiras que era melhor esquecer. Temos de derrubar Assad porque ele utilizou armas químicas muito embora toda a evidência seja em contrário. A Rússia é responsável por problemas na Ucrânia, não porque os EUA derrubaram o governo democrático eleito mas porque a Rússia aceitou uma votação de 97,6% dos habitantes da Crimeia para se reunirem à Rússia, à qual aquela província tem pertencido desde há centenas de anos antes de um líder ucraniano soviético, Krushev, ter fincado a Crimeia na Ucrânia, naquele tempo parte da União Soviética juntamente com a Rússia.

    Guerra, guerra, guerra, é tudo o que Washington quer. Ela enriquece o complexo militar e de segurança, o maior componente do PNB dos EUA e o maior contribuidor, juntamente com a Wall Street e o lobby de Israel, para campanhas políticas estado-unidenses.

    Toda e qualquer pessoa ou organização que apresente a verdade ao invés das mentiras é demonizada. Na semana passada o novo chefe do US Broadcasting Board of Governors, Andrew Lack, listou o serviço russo de Internet e TV Russia Today como o equivalente dos grupos terroristas Boko Haram e Estado Islâmico. Esta acusação absurda é um prelúdio para encerrar a RT nos EUA, tal como os fantoches de Washington no governo britânico encerraram a Press TV do Irão.

    Por outras palavras, aos anglo-americanos não são permitidas quaisquer notícias diferentes daquelas que lhes são servidas pelos "seus" governos.

    Este é o estado da "liberdade" no Ocidente de hoje.
     


    [NR] O livro de John Perkins pode ser descarregado em resistir.info/livros/

    O original encontra-se em http://www.paulcraigroberts.org/2015/01/25/freedom-america-europe-pcr/


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

    quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

    O futuro dos EUA será a ruína


    por Paul Craig Roberts
     
    Graffiti nos EUA Os neoconservadores instalados em seus gabinetes em Washington devem estar em festa com seu sucesso em usar o episódio Charlie Hebdo para reunir a Europa ao redor da política externa dos Estados Unidos. Acabaram os votos dos franceses ao lado dos palestinos contra as posições EUA/Israel. Não mais crescerá a simpatia dos europeus em relação aos palestinos. Findou-se o crescimento da oposição europeia ao lançamento de mais e mais guerras no Oriente Médio. Não mais acontecerão apelos do presidente francês para que sejam suspensas as sanções contra a Rússia.

    Mas por acaso os neoconservadores em Washington entenderam, também, que amarraram os europeus aos partidos políticos anti-imigração de extrema-direita? A onda de apoio ao Charlie Hebdo é a mesma onda de apoio à Frente Nacional de Marine Le Pen, do Partido Independente do Reino Unido de Nigel Farage e do alemão PEGIDA em que está engolfada a Europa. Foi o fervor anti-imigração pensado e orquestrado para reunir europeus a Washington e Israel que deu a estes partidos a perspectiva de poder que hoje ostentam.

    Mais uma vez os insolentes e arrogantes neoconservadores estão errados. O fortalecimento dos partidos anti-imigração tem o potencial para revolucionar a política europeia e destruir o império de Washington. Ver minha entrevista ao King World News com análises sobre o potencial que estes acontecimentos têm de mudar o jogo.

    A notícia do jornal inglês Daily Mail e do site Zero Hedge de que a Rússia cortara totalmente as entregas de gás para seis países europeus deve ser incorreta. Reconhecendo embora a credibilidade destas fontes bem informadas, não se observa a turbulência política e financeira que aconteceria fatalmente se o relato fosse verdadeiro. Portanto, a menos que em relação a essa notícia esteja acontecendo um total blackout noticiário, as ações da Rússia foram mal interpretadas. [NR]

    Sabemos que alguma coisa realmente aconteceu. Caso contrário, não haveria como explicar a consternação expressa pelo assessor para a energia da União Europeia, Maros Sefcovic. Embora eu não tenha ainda uma informação definitiva, creio saber o que realmente ocorreu. A Rússia, cansada dos ladrões ucranianos, que roubam o gás que passa através do país em seu percurso até a Europa, tomou a decisão de enviar o gás através da Turquia, descartando a Ucrânia.

    O ministro da Rússia para a Energia confirmou esta decisão acrescentando que se os países europeus quiserem ter acesso a este abastecimento de gás deverão construir suas próprias estruturas ou gasodutos.

    Em outras palavras, não há corte no presente, mas há potencial para um corte no futuro.

    Os dois eventos – Charlie Hebdo e a decisão russa de cessar a entrega de gás para a Europa através da Ucrânia – devem nos lembrar de não descartar eventuais black swans [1] e que black swans podem surgir de consequências não intencionais de decisões oficiais. Nem mesmo a “superpotência” americana está imune a black swans.

    Há tanta evidência circunstancial de que a CIA e a inteligência francesa foram responsáveis pelo tiroteio no Charlie Hebdo como de que os disparos foram perpetrados pelos dois irmãos, cujo cartão de identidade foi convenientemente esquecido no suposto carro de fuga. Como a França agiu de forma a ter a certeza de que os irmãos seriam mortos antes de poderem falar, nunca saberemos o que teriam a dizer acerca da trama.

    A única evidência existente de que os irmãos eram os culpados pelo atentado é a afirmação das forças de segurança. Sempre que ouço o governo acusar sem evidências reais lembro-me das “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein, de que Assad “fazia uso de armas químicas” e de que o Irão “teria um programa de fabricação de armas nucleares”. Se um assessor da Segurança Nacional pode fazer aparecer a partir do nada “uma nuvem em forma de cogumelo sobre uma cidade americana”, então Cherif e Said Kouachi podem ser transformados em assassinos. Afinal, estão mortos mesmo e não podem reclamar.

    Se isto foi (e nunca saberemos) uma operação de falsa bandeira, então foi alcançado o objetivo de Washington de reunificar a Europa sob Washington com os aplausos de Israel. Porém há uma consequência inesperada neste sucesso. A consequência inesperada é unificar a Europa sob a bandeira da política de anti-imigração dos partidos de direita, reforçando os líderes destes partidos.

    Caso estas suposições estejam corretas, então Marine Le Pen e Nigel Farage estarão com suas vidas e/ou reputações em perigo, pois Washington resistirá a qualquer ascensão de lideranças que não adotem as linhas que impõe.

    A grande consternação causada pela decisão russa de relocalizar o ponto de entrega do seu gás à Europa (na Turquia) é uma prova de que a Rússia possui muitas cartas para jogar que podem desestabilizar as estruturas financeiras do ocidente.

    A China possui cartas semelhantes.

    Os dois países ainda não estão jogando estas cartas sobre a mesa, pois pensam que ainda não precisam. Em vez disso, as duas potências estão se retirando do sistema financeiro ao serviço da hegemonia ocidental sobre o mundo. Ambos os países estão criando todas as instituições econômicas de que precisam para se tornarem completamente independentes do ocidente

    Portanto, o raciocínio dos governantes chineses e russos é: "Porque ser provocador e esbofetear os idiotas ocidentais... eles podem usar as armas nucleares que possuem e o mundo inteiro estaria perdido. Vamos simplesmente afastar-nos no momento em que eles com as suas provocações nos encorajam a partir.

    Sejamos pois agradecidos ao fato de que Vladimir Putin e os líderes chineses são inteligentes e humanos, ao contrário dos líderes ocidentais

    Imaginem as terríveis consequências para o ocidente se Putin se tornasse pessoalmente envolvido em consequência das numerosas afrontas que sofrem tanto a Rússia como ele próprio. Putin pode destruir a OTAN e todo o sistema financeiro ocidental no momento que quiser. Tudo o que tem a fazer é anunciar que como a OTAN declarou guerra econômica contra a Rússia, esta não mais venderá energia a membros da OTAN.

    A consequência seria a dissolução da OTAN, pois a Europa não pode sobreviver sem os abastecimentos energéticos da Rússia. Seria o fim do império de Washington.

    Putin percebe que os insolentes neoconservadores teriam de apertar o botão nuclear a fim de salvar a face. Ao contrário de Putin, seus egos estão em causa. Portanto, Putin salva o mundo da guerra nuclear ao não se deixar provocar.

    Agora, imagine se o governo chinês perdesse a paciência com Washington. Para confrontar a “excepcional, indispensável e único potência” com a realidade da sua impotência, tudo o que a China precisa fazer é despejar no mercado seus ativos financeiros maciços denominados em dólar, tudo de uma vez só, da mesma forma que os agentes bancários do Federal Reserve despejam maciçamente no mercado de futuros contratos de ouro a descoberto.

    A fim de evitar o colapso financeiro dos EUA, o Federal Reserve teria de imprimir montantes maciços de novos dólares com os quais comprar a avalanche despejada pelos chineses. Como o Federal Reserve protegeria os mercados financeiros estado-unidenses através da compra dos haveres despejados pelos chineses, estes últimos nada perderiam com a venda. Mas o passo seguinte é que é fatal. O governo chinês simplesmente despejaria a quantidade maciça de dólares recebida pela liquidação dos seus instrumentos financeiros denominados em dólar.

    O que aconteceria em seguida? O Federal Reserve pode imprimir dólares com os quais comprar os haveres despejados pelos chineses denominados, mas o Fed não pode imprimir moeda estrangeira com a qual comprar os dólares despejados no mercado.

    A oferta maciça de dólares despejados pela China no mercado de câmbios não encontraria compradores. O valor do dólar entraria em colapso. Washington não poderia mais pagar suas contas através da impressão de dinheiro. Os americanos, que vivem em um país dependente de importações, graças aos empregos que foram deslocados para outros países, seriam confrontados com altos preços que afetariam de forma severa seu modo de vida, que desgastaria o seu padrão de vida. Os Estados Unidos experimentariam instabilidade econômica, social e política.

    Deixando de lado suas lavagens cerebrais, seus apoios defensivos e patrióticos ao regime em Washington, os americanos precisam perguntar a si mesmos: Como pode o governo dos Estados Unidos, uma alegada superpotência, ser tão inconsciente das suas verdadeiras vulnerabilidades a ponto de Washington ser capaz de pressionar duas potências reais até o ponto de elas dizerem basta e jogarem as cartas que possuem?

    Os americanos precisam entender que a única coisa realmente excepcional acerca dos Estado Unidos é a ignorância da população e a estupidez do governo.

    Qual outro país no mundo deixa um bando de crápulas da Wall Street controlar a sua economia e política externa, dirigir o seu Banco Central e o seu Tesouro e subordinar os interesses dos seus cidadãos aos interesses dos bolsos de um por cento [da população]?

    Uma população tão despreocupada está totalmente à mercê de Rússia e da China.

    Ontem houve um novo evento tipo black swan, o qual poderia desencadear muitos outros: o Banco Central suíço anunciou o fim da ligação [pegging] do franco suíço ao euro e ao dólar .


    Três anos atrás a fuga de dólares e euros para o franco suíço elevou tanto o valor cambial do franco que isto passou a ameaçar a própria existência da indústria suíça de exportação. O país anunciou então que quaisquer novas entradas de divisas estrangeiras convertidas em francos seria cumprida pela criação de novos francos a fim de absorver a entradas de modo a não elevar ainda mais a taxa de câmbio futura. Em outras palavras, a Suíça ligou o franco.

    Ontem o Banco Central suíço anunciou que essa ligação cessou. O valor do franco subiu no mesmo instante. Ações de companhias suíças tiveram queda significativa, e hedge funds erradamente posicionados sofreram grandes golpes na sua solvência.

    Por que a Suíça desligou o franco? Não se trata de uma ação sem custos. Para seu Banco Central e sua indústria de exportação, o custo será substancial.

    A resposta é que o Procurador-Geral da UE determinou que era permissível para o BCE iniciar uma ação de Quantitative Easing – ou seja, a impressão de novos euros – a fim de salvar (bail out) banqueiros privados dos erros que cometeram. Isso significa que a comunidade financeira da Suíça ficaria na expectativa de ser confrontada com uma fuga maciça do euro e que o Banco Central suíço não deseja imprimir novos francos para manter a ligação. O banco central suíço acredita que teria de acelerar tanto a máquina de impressão que oferta monetária suíça explodiria, excedendo em muito o PIB do país.

    A política de imprimir dinheiro sem lastro dos Estados Unidos, Japão e agora presumivelmente da União Europeia tem forçado outros países a inflar suas próprias moedas a fim de impedirem o aumento do valor de troca das suas divisas, o que prejudicaria sua capacidade exportadora e de ganhar divisas estrangeiras com as quais pagar suas importações. Assim, Washington tem forçado o mundo a imprimir dinheiro.

    A Suiça retirou-se deste sistema. Seguir-se-ão outros? Ou será que o resto mundo vai simplesmente seguir os governos de Rússia e China em seus novos arranjos monetários, virando as costas para o ocidente corrupto e incorrigível?

    O nível de corrupção e manipulação que caracteriza a economia e a política externa dos Estados Unidos de hoje era impossível em outros tempos, quando a ambição e Washington era constrangida pela União Soviética. A ganância pelo poder hegemônico tornou Washington o governo mais corrupto do planeta.

    A consequência disto é a ruína.

    “A liderança passa a império. O império gera a insolência. A insolência traz a ruína.”

    O futuro dos EUA é a ruína.
    16/Janeiro/2015
     

    NT
    [1] Acontecimentos inesperados que provocam consequências imprevisíveis. A expressão foi forjada por Nicholas Taleb no livro com o mesmo título.
    [2] Quantitative easing: flexibilização monetária, facilitação monetária, facilitação quantitativa, etc. Trata-se de emitir dinheiro sem lastro.

    [NR] Ver a respeito: A Rússia deixa no frio o comissário europeu da energia


    O original encontra-se em www.informationclearinghouse.info/article40723.htm e a versão em português em redecastorphoto.blogspot.com.br/... . Tradução de mberublue (com pequenas alterações).


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

    quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

    A UE não existe


    por Daniel Vaz de Carvalho 
     

    1 – Ascensão e queda do mito europeu

    A UE existe? Não, o que existe é um projeto de fundamentalismo neoliberal conduzido por tecnocratas. O que temos é uma "união" de desemprego, pobreza, desesperança e revolta cidadã, em que milhões de pessoas são deixadas à margem, esmagadas pela austeridade enquanto a oligarquia acumula riqueza e todas as hipóteses de equilíbrio ou convergência estão excluídas na prática.

    Uma "união" que se constrói comandada pela oligarquia alemã e que, face ao seu total falhanço, ensaia já soluções de extrema-direita como no leste europeu, e de que o drama ucraniano é sintomático.

    Segundo o Eurostat o risco de pobreza ou exclusão social atingia em 2013 na Grécia 35,7% da população, na Espanha 27,3%, na Roménia 40,4%, na Letónia 35,1%, no Reino Unido 24,8%, na própria Alemanha 20,3%. Em Portugal como se sabe era de 27,4%. No entanto, como estes dados se referem a medianas podemos avaliar os níveis de pobreza pelos respetivos salários mínimos (brutos) que abrangem crescentes faixas de trabalhadores. Assim, na Roménia era de 157,5 €, na Letónia de 286,66 €, na Polónia 392,73 €.

    A UE tornou-se até risível para seus próceres como Christine Lagarde, ao afirmar temer que uma dieta de dívidas elevadas, crescimento fraco e desemprego se torne a nova normalidade na Europa. [1] A UE encaminha-se para nova recessão e o sistema bancário apesar de todas as medidas apresentadas desde 2008 como condições sine qua non para a "salvação" – de quê?! – está tão ou mais fragilizado que antes.

    A propaganda evolui no meio de ilusões, não apenas sobre a realidade, mas sobre as soluções adotadas. Este falso otimismo é apenas uma máscara para impor aos povos a austeridade que toma a forma de uma guerra social. A estabilidade económica da UE é ilusória. Pior, a UE encontra-se na terrível situação de as únicas soluções que poderiam resolver os problemas existentes levariam à destruição dos seus mitos e ambições de grande potência continental, para onde os seus tratados pretendiam convergir.

    Para os impor, a propaganda dizia ser necessário a "Europa (?) falar a uma só voz". Como se os interesses nacionais pouco ou nada importassem aos seus "ideais europeístas". Que espécie de UE é esta em que a única igualdade estatuída é para o capital multinacional? Em que os cidadãos são cada vez mais marginalizados, suas esperanças e projetos de vida negados em nome da "eficiência dos mercados". Em que a contestação se generaliza e é cada vez maior o descrédito dos políticos e das instituições que suportam este estado de coisas.

    Quaisquer que sejam os acontecimentos futuros, o poder enfeudado a Bruxelas/Berlim afastou-se de tal modo das pessoas e dos seus problemas, que, face à dissolução do poder dos Estados e à decadência económica, a contestação a uma "união" que na realidade não existe, continuará a acentuar-se.

    Que a UE não existe confirma-o Draghi ao afirmar, e com ele comentadores e políticos do conformismo vigente, que o contrato social europeu é obsoleto e há que substituí-lo. É a "nova ordem europeia" em marcha: o neofascismo. A oligarquia dominante, a finança e seus políticos não estão em estado de suportar uma liberdade e uma democracia em que as aspirações populares sejam tidas em conta.

    2 – O euro uma aberração económica e social

    Com o euro foi preparado o caminho para os países deixarem de ter soberania. No Manifesto, Marx refere-se à moeda, ao dinheiro, como a ligação social dominante à qual todas as outras relações se reduzem. A tese da neutralidade da moeda – um dos dogmas do monetarismo – conduz à "independência" dos bancos centrais, entidades que não dependem do poder político democrático, tendo como objetivo apenas garantir o que a oligarquia financeira define como prioritário e essencial. Os resultados estão à vista com o sistema financeiro europeu próximo do caos, mascarado pela austeridade e pela comunicação social controlada.

    Os preços monetários resultam de compromissos e conflitos de interesses, nisto decorrem da distribuição do poder. A moeda é um instrumento na luta entre indivíduos e grupos sociais à volta da apropriação deste tipo de direito. O cálculo monetário não tem sentido senão a partir de um conhecimento da distribuição de rendimentos. Ele é portanto dependente da organização social e não prévio ou a sua essência. [2]

    A desorientação que reina no sistema financeiro da UE pode ser avaliada pelo contorcionismo técnico a que o BCE recorre ao comprar títulos classificados como "lixo". É esta a forma de mascarar a verdadeira situação da banca europeia. Porém, isto apenas aumenta o descrédito do sector e da própria moeda, o euro.

    O BCE colocou o interesse dos banqueiros acima dos interesses dos povos. O facto de largo conjunto de bancos terem colapsado ou terem-se arrastado na fraude (por ex. casos Barclays, Deutsch BanK, Dexia, etc). A falta de credibilidade do sistema ficou demonstrada quando bancos colapsaram após terem passado nos testes de stress. Tal ocorreu na Irlanda, em Portugal, na Grécia – e depois de as regras terem sido supostamente tornadas mais eficazes, os bancos continuam a ir à falência atulhados de casos fraudulentos, como no Dexia ou no BES, verdadeiro "case study" político e económico de todo o sistema financeiro da UE.

    O euro, com o seu BCE, mais parece uma arma de vândalos que procedem à devastação e ruína dos povos para manter o seu poder discricionário. Porém, para que serve tudo isto? Dado que os países cederam o seu poder de criar dinheiro ao BCE e à banca privada, aceitando o uso do euro, é de facto possível irem à falência. Isto apenas torna a política do BCE mais idiótica ao tornar ainda mais difícil a vida dos países que se debatem para pagar as suas dívidas. [3]

    O euro é um instrumento do domínio alemão, impondo a moeda que mais lhe convêm, não permitindo a criação de moeda sem juros por bancos centrais dos Estados, dependentes do poder político democrático. A catástrofe não é sair do euro, é permanecer no euro que apenas trouxe estagnação, insuportável endividamento, dependência e, consequentemente, inevitável pobreza.

    3 – LARGO AL FACTOTUM

    No estado a que a UE chegou, pretende-se que as eleições sejam uma farsa. Uma farsa que faz lembrar o "largo al factotum" (deixem passar o faz-tudo) das Bodas de Fígaro (Mozart – Da Ponte). A "mulher mais poderosa da Europa", a Merkel, não passa do factótum do sr. Schauble, ignorante como qualquer fanática, tal como Isabel de Castela, obedecendo ao inquisidor Torquemada.

    Que dizer de Draghi, de Hollande, dos políticos do "arco do poder" em Espanha, na Grécia, ou Portugal com Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque e Cavaco Silva? Não passam de factótuns que mestre Miguel Urbano qualificava como uma "casta de aventureiros sem escrúpulos que a política de direita fez florescer e tornam o país um microcosmos do capitalismo no seu estado mais apodrecido." [4]

    O B de P é na realidade um departamento do BCE. O seu governador é um mero funcionário do BCE às ordens dos burocratas para os quais os interesses do povo português estão resumidos nos formulários que lhes foram atribuídos. Os governadores limitam-se a cumprir ordens e olhar para o lado quanto à má gestão e às fraudes.

    Vejam-se os presidentes da CE do inepto e subserviente Barroso a Junker, envolvido num escândalo (rapidamente abafado) de acordos fiscais secretos no Luxemburgo a centenas de multinacionais. Centenas de milhares de milhões de euros extorquidos aos países e aos povos! São indivíduos sem perfil, que agem como vozes do dono, repetem clichés, esgotam promessas que, de tão falseadas, se tornam meras mentiras que as pessoas ignoram ou desprezam.

    A austeridade é aplicada com a argumentação de pretender reconstituir um pretenso equilíbrio económico, resultado mecânico duma "concorrência livre e não falseada" que produziria mercados perfeitos. É a economia a funcionar como uma máquina hidráulica…

    Em nome de uma hipotética eficiência, impõe-se a lógica do mercado como regulador absoluto ignorando os riscos que lhe estão associados, como a corrupção, a fraude, as crises ditas "sistémicas". Este "mercado livre", com monopólios e especulação, está espartilhado num conjunto de regras autoritárias e determinações de agentes burocráticos. Porém, construir ou reformular a sociedade de acordo com um modelo pré-definido como ideal e perfeito e julgar as pessoas e as sociedades de acordo com esse modelo, releva da teologia fundamentalista. [5]

    Os políticos do sistema nem sequer põem a questão de avaliar se o tal equilíbrio financeiro é socialmente justo. A "ciência económica" vigente não passa de uma superstição destinada a subordinar os povos e o funcionamento das economias nacionais aos interesses das megaempresas transacionais e seus multimilionários.

    É este o resultado do modelo defendido pela social-democracia/socialismo reformista: um drástico retrocesso das condições sociais, com a UE a desempenhar o papel da "Santa Aliança" do século XIX.

    4 – A Grécia já está a arder?

    A simples hipótese das eleições na Grécia serem ganhas por um partido que não se afasta da social-democracia tradicional, provocou ameaças, quedas na bolsa, juros a subirem para inconcebíveis 9,7%; quando o BCE fornece dinheiro à banca privada sem custos e sem riscos.

    Os comentadores falaram em "nervosismo (!) dos mercados" e o FMI suspendeu a "ajuda" até ao novo governo. Só não se percebe é como uma "mão invisível" pode estar nervosa! Esta gente já não hesita em usar o obscurantismo e a estupidez como arma ideológica.

    O ministro alemão das finanças, Schauble, disse que "as políticas definidas por Bruxelas (que modéstia!), as reformas duras estão a dar frutos (quais? a quem?), têm de ser mantidas e não há alternativas." "As novas eleições não vão alterar os compromissos que temos com o governo grego. Qualquer novo governo tem de manter os compromissos assumidos pelos antecessores."

    Os nazis não pensavam de outra forma relativamente ao resto da Europa, só que a hipocrisia era menor. Não escondiam ao que iam. Na iminência da libertação de Paris, a questão colocada pelo Alto Comando nazi foi: "Paris já está a arder?" A versão atual de Paris a arder para que a "Alemanha" triunfe é a austeridade, o fogo lento que consume económica e socialmente os povos.

    Na Grécia, como em Portugal e por toda a UE, a "ajuda" e os "frutos" de que falava Shauble, estão envenenados, traduziu-se em mais miséria, desemprego, recessão económica, degradação das condições sociais e como vemos a instauração do neofascismo liberal. Simultaneamente, as instituições passaram a exercer um controlo desmedido sobre as políticas nacionais impondo um Estado hiperautoritário, designadamente uma estrutura de vigilância e punição anti-laboral e anti-social. [6]

    A democracia na UE tornou-se meramente formal com tratados que impõem à revelia dos povos as políticas neoliberais, fechando as portas às opções dos povos. A democracia como ato de participação e decisão coletiva deixa de ser necessária face à transformação da econometria neoliberal em ideologia. Cliques de "sábios", como os provenientes dos grandes grupos financeiros, decidem "o que é melhor para nós", o povo, tal como no fascismo.

    Quando os países fragilizados por estes processos, mais precisavam de poder democrático para decidir o seu destino e respirar a liberdade da soberania, foram colocados sob iníquas tutelas hipocritamente apelidadas de ajuda.

    Perante o aumento da contestação à burocracia de Bruxelas e à ditadura de Berlim, a Alemanha ensaia um recuo estratégico com algumas apressadas promessas que apenas comprovam que tudo o que andaram a obrigar os outros a fazer, não estava apenas errado, era absurdo e socialmente criminoso.

    Mas são remendos que nada alteram do essencial das políticas. Trata-se apenas de disfarçar um pouco o descalabro de uma falsa UE incapaz de resistir às perturbações que originou na Grécia, que não representa sequer 2% do PIB da zona euro e 1,4% da UE.

    A UE não existe, o que existe é um problema, uma guerra de classe contra os povos sob a designação de UE. Que democracia, que vontade do povo se permite então nesta UE? Que partidos democráticos aceitam esta chantagem? Portugal perdeu a soberania monetária, económica e até a legislativa está drasticamente limitada. Uma chantagem que se exerce contra as opções eleitorais, como o PR se faz eco com os seus pseudo consensos.

    O Estado democrático e a soberania popular garantidos pela Constituição, são as formas de proteger Portugal e os portugueses e nunca um poder espúrio transferido para uma decadente UE contra os interesses nacionais.
     
    Notas
    [1] Patrick Wintour in Brisbane, The Guardian, 17 novembro 2014
    [2] Jacques Sapir, Les trous noirs de la science économique, Ed. Seuil, 2013, p. 239, 240, 242.
    [3] Geoff Davies, Sack the Economists - and Disband their Departments , Bwm Books, Canberra, 2014, p. 184
    [4] Um zoo humano de inimigos do povo
    [5] Jacques Sapir, obra citada, p. 108, 128, 129
    [6] Jacques Sapir, obra citada, p. 98, 99

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/


    aqui:http://resistir.info/v_carvalho/ue_nao_existe.html 

    quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

    Os privados são mais eficientes

    O Charlie Hebdo têm as costas largas

    por  Thierry Meyssan

    Enquanto milhões de franceses se ergueram sem hesitação para defender as liberdades de expressão e de culto, a classe política e a imprensa, aos quais uma e outra desrespeitam constantemente, aproveitam a oportunidade para refazer uma imagem de “inocência”. Para Thierry Meyssan, o governo conduziu uma vasta manipulação para se encenar à cabeça de uma grande manifestação popular, e busca, actualmente, como justificar uma nova operação militar na Líbia.

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    Cinquenta chefes de Estado e de Governo que participaram na manifestação.
    Em três dias, em França, um grupo de quatro ou cinco pessoas, proclamando ser, ao mesmo tempo, tanto da Al-Qaida, no Iémene, como do Emirado Islâmico (Daesh), massacrou a redacção do Charlie Hebdo, e, depois, assassinou uma mulher-polícia municipal e vários reféns, em três situações diferentes. A França, que não experimentava tal grau de violência desde os ataques da O.A.S.(Organization Armée Secrète- ndT), há mais de 50 anos, reagiu gritando «Nós somos todos Charlie!», liquidando três terroristas e organizando uma enorme manifestação de vários milhões de pessoas.
    O Presidente da República, François Hollande, recebeu os líderes dos partidos políticos representados no Parlamento. Ele conclamou os Franceses à unidade nacional e participou na manifestação, acompanhado por uma cinquentena de chefes de governos estrangeiros.
    Num artigo anterior [1], observei que o procedimento operacional dos terroristas não tinha nenhuma relação com o modo habitual de agir dos jihadistas, mas mais com o de comandos militares. Eu concluía que, em consequência, pouco importa quem eles eram, a única coisa que interessa saber é quem os comanditou. Eu queria, neste segundo artigo, regressar à análise das reações suscitadas por este caso.

     

    A suspensão do direito de manifestação


    Desde o anúncio do massacre de Charlie Hebdo, a 7 de janeiro de 2015 cerca do meio-dia, o primeiro-ministro Manuel Valls ordenou a entrada em acção do Plano Vigipirate- atentados na Ile-de-France. Este, inclui uma centena de medidas automáticas e cerca de duas centenas de outras opcionais. Entre as medidas escolhidas, o Ministério do Interior anunciava o adiamento de todas as manifestações já autorizadas. As autoridades temiam, com efeito, que os terroristas disparassem sobre a multidão.
    No entanto, um partido de extrema-esquerda apelou para uma manifestação, imediata, em apoio do Charlie Hebdo. Depois de algumas horas de hesitação, o Comissário da Polícia autorizava um comício que teria atingido 100. 000 pessoas. Mais estranho ainda : o Primeiro-ministro declarava luto nacional para o dia seguinte, 8 de janeiro. Numerosas manifestações foram organizadas pelas administrações do governo para celebrar um minuto de silêncio. Ainda mais espantoso : o Partido Socialista apelava para uma ampla manifestação nacional no domingo, dia 11, que teria reunido mais de 2 milhões de pessoas em Paris.
    Assim, o governo podia proibir as manifestações porque eram perigosas para seus participantes, mas os seus membros podiam organizar uma enorme, e convidar chefes de governo estrangeiros, sem temer pela sua segurança. Esta manipulação confirma que, ao contrário das suas declarações, o governo conhecia exactamente a amplitude da ameaça, e sabia que ela não tinha a ver com as manifestações.
    Deste modo, é melhor gravarmos, apenas, este extraordinário élan popular pela liberdade.

     

    A união nacional


    Nesta situação de crise, a direita e a esquerda puseram-se de acordo em participar juntas numa manifestação nacional. Mas por que valores, ou contra quem, vão elas manifestar-se ?
    Descobrimos que os dirigentes da direita e da esquerda partilhavam os valores anti- religiosos, anti-nacionais e anti-militaristas do muito “gauchista” (esquerdista -ndT) Charlie Hebdo. Sabíamos que o seu fundador, Philippe Val , era um amigo dos Sarkozy. Descobre-se, de repente, que o seu novo director, Charb, era o companheiro de uma ministro de direita, Jeannette Bougrab.
    Esta foi a convidada do jornal da TF1. Muito emocionada, ela confessa o seu amor. Depois, ela apresentou as convicções anti-religiosas de Charb como um compromisso de laicismo face ao Islamismo, antes de comparar o seu amigo a Jean Moulin (herói da Resistência Francesa- ndT) e apelar a que seja enterrado, tal como ele, no Panteão. Ela terminou revelando que o casal tinha pensado deixar a França e refazer a sua vida em outro lugar. Fica-se aparvalhado. Em poucas palavras, Jeannette Bougrab acabava de mostrar o seu desprezo pelos seus concidadãos, assemelhando o laicismo à luta anti-religiosa, e colocando num pé de igualdade um humorista anti-nacional com o fundador do Conselho Nacional da Resistência . A família de Charb bem protestou, mas a confusão está lançada.
    E para que se compreenda bem o que é a «união nacional», vista de direita e de esquerda, líderes socialistas declaram que a Frente Nacional seria excluída da manifestação «republicana». Compreendem bem a enormidade de tal proposição ? Líderes políticos evocando a República para excluir os seus rivais. No final, a F.N. juntou-se às manifestações nas províncias.

     

    A União Internacional


    Ao convidar todo o tipo de chefes de Estado, e de Governo, a abrir com ele a manifestação, o presidente Hollande pretendia dar à mesma reforçada solenidade.
    Entre os presentes, destacavam-se David Cameron e Benjamin Netanyahu, cujos estados dispõem de uma todo-poderosa censura militar; ou ainda o secretário norte- americano da Justiça, Eric Holder, cujo país ama tanto a liberdade de expressão que bombardeou e destruiu numerosas Televisões, desde a de Belgrado até às cadeias da Líbia; o Primeiro-Ministro turco, Ahmet Davutoglu , cujo país proibiu a construção de igrejas cristãs (mesmo se parece pronto a autorizar, em breve, uma); ou ainda Benjamin Netanyahu que saudou os combatentes da Al-Qaida tratados em hospitais israelitas ; sem esquecer ainda outra vez Eric Holder, Ahmet Davutoglu e o rei Abdallah da Jordânia, cujos Estados reorganizaram o Daesh em janeiro de 2014 .
    Que vieram, pois, fazer estes fulanos a Paris? Não, certamente, defender as liberdades de expressão e de culto que eles combatem, na prática.

     

    A liberdade de expressão


    Não foi só a classe política quem se aproveitou da ocasião para atrair os holofotes. Foi também o caso da imprensa. Ela vê no Charlie Hebdo um exemplo da liberdade que ela própia continua atropelando, auto-censurando-se em permanência e mostrando-se sempre solidária com os crimes cometidos no estrangeiro pelo governo.
    A imprensa francesa é, com efeito, vasta, mas extremamente conformista e, portanto, nem um pouco pluralista. Até à unanimidade que ela apresenta com o Charlie Hebdo. Porque, contrariamente ao que agora pretende mostrar, o jornal satírico reivindicava a sua oposição à liberdade de expressão, nomeadamente, quando ele peticionava para a interdição da Frente Nacional ou militava pela censura da internet.
    Seja como for, só podemos felicitar-nos por ver a imprensa, finalmente, tomar a defesa daqueles que são atacados pelo que disseram.

     

    A propósito da pista jiadista


    Prosseguindo a sua investigação na direção errada, a imprensa traça o perfil dos terroristas e esquece-se de procurar os seus comanditários. Com ar sério, ela explica que esta vaga de atentados é uma colaboração entre membros da Al-Qaida, no Iémene, e do Daesh, quando as duas organizações se envolveram, desde há um ano, numa guerra feroz, que já provocou pelo menos 3.000 vítimas em ambos os campos.
    A este propósito, eu espanto-me por estas referências; em breve, deverão encontrar uma nova que ligue este atentado à Líbia. De facto, se F. Hollande seguisse os passos de George W. Bush ele deveria atacar o Iémene, embora a França não tenha nisso grande interesse. Mas, o seu chefe de Estado-maior particular, o General Puga, prepara actualmente uma nova intervenção militar na Líbia.
    Este alvo é muito mais lógico. A França poderia então colher os benefícios que ela esperava obter na sua primeira intervenção. E, terminaria o projecto norte-americano de remodelagem do «Médio-Oriente Alargado», tal como foi publicado por Robin Wright no The New York Times, em setembro de 2013 [2], e iniciado pelo Daesh no Iraque e na Síria.
    Tradução
    Alva

    [1] “Quem ordenou o ataque contra o Charlie Hebdo?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 9 de Janeiro de 2015.
    [2] “Imagining a Remapped Middle East” (Ing- «Visualizando um Médio-Oriente Redesenhado»- ndT), Robin Wright, The New York Times Sunday Review, 28 de setembro de 2013.
    aqui:http://www.voltairenet.org/article186459.html

    sábado, 10 de janeiro de 2015

    A linguagem da tortura

    por 

    Robert Fisk

    Um dos aspectos chocantes de muita da reacção política e mediática à publicação - da versão altamente censurada – do relatório do Senado dos EUA sobre a prática da tortura pela CIA é a linguagem escolhida. E os recursos jornalísticos para banalizar os mais repugnantes crimes.

    Graças a Deus por Noam Chomsky. Não tanto por uma vida inteira de implacável denuncia da nossa hipocrisia política como pela sua linguística. Muito antes de o conhecer, o estudante Fisk trabalhava no seu curso universitário de linguística, onde o trabalho de Chomsky foi primeiro a alertar-me para a perniciosa utilização da linguagem. É no seu seguimento que condeno a vil semântica do Pentágono e da CIA. Não só a velha e obscena frase “danos colaterais”, mas também a linguagem da tortura.

    Ou, como a rapaziada que tortura em nosso nome lhe chama, “técnicas de interrogatório melhoradas”. Olhemos a questão com um pouco mais de detalhe. “Melhorado” é uma palavra que sugere algo melhor, mais culto, inclusivamente menos penoso. Por exemplo, “medicina melhorada” implica presumivelmente uma forma mais elegante de melhorar a tua saúde. Tal como “escolarização melhorada” poderia sugerir uma educação mais valiosa para uma criança. “Interrogatório” pelo menos indica do que é que se trata. Fazer preguntas e obter, ou não, uma resposta. Mas “técnicas” ganha a todas. Uma técnica é uma habilidade técnica, ¿não é assim? Em geral, diz-me o dicionário, na obra artística.

    Portanto, aqueles que levam a cabo os “interrogatórios” têm habilidades especiais – o que implica capacitação, trabalho aprendido, o produto de elaboração mental. O que suponho é, de certo modo, aquilo a que se refere a tortura. Não se trata simplesmente da forma como eu normalmente descreveria o processo de espancar pessoas contra as paredes, afogando-as em água e introduzindo húmus pelo recto. Mas caso isto seja excessivamente gráfico, os rapazes e raparigas da imprensa dos Estados Unidos arranjaram uma forma familiar de se referirem à coisa. Todo o processo de “técnicas de interrogatório melhoradas” é agora chamado EIT. Tal como as armas de destruição massiva (as chamadas WMD) – outra treta no nosso vocabulário político – todo o repugnante assunto está envolto numa abreviatura de três letras.

    E depois damo-nos conta de que tudo esto é parte de um “programa”. Algo cuidadosamente planeado, compreendem, um programa, uma actuação, correcta, devidamente aprovada, teatral inclusivamente. O meu velho e fiel American College Dictionary define até “programa” como “um entretenimento com referência às peças ou números que o compõem”, que é o que suponho que os psicopatas na CIA estavam disfrutando perante as suas vítimas. Atem-no, trapos sobre o rosto, vertam a água, cuidado, por favor poucas bolhas de ar. Ah bom, espanquem-no novamente contra a parede. Um verdadeiro programa, por certo.

    Dick “Lado Escuro” Cheney usou a palavra “programa” quando condenou o relatório do Senado estado-unidense sobre torturas da CIA. Curiosamente, entretanto, a sua descrição do documento como “cheio de merda” continha um efeito secundário não desejado do processo que ele aplaude. Porque sucede frequentemente a quem sofre a tortura urinar-se e defecar e - como sabemos por parte dos que sofreram estes “programas” - a CIA muitas vezes deixa as suas vítimas paradas nuas, o que fez com que defecassem sobre elas mesmas. Cheney quer evidentemente que acreditemos que estes pobres homens deram informações importantes às vis criaturas que os torturavam. É exactamente isso que as inquisições medievais descubriram quando acusaram inocentes de bruxaria. Na sua quase totalidade, as vítimas admitiram que tinham voado pelos ares. Talvez tenha sido isso que Khalid Sheikh Mohammed, depois de ser submetido 183 vezes ao submarino (waterboarding), disse aos seus torturadores da CIA. Que podia voar pelo ar. Um drone humano terrorista. Suponho que deve ser desse tipo a “informação vital” que Cheney afirma que as vítimas forneceram à CIA.

    Ficou evidentemente para o director da CIA, John Brennan, sentindo talvez na nuca o bafo de alguns advogados dos direitos humanos, dizer que algumas das “técnicas” – sim, foi essa a palavra que utilizou – não estavam autorizadas e eram “abomináveis”. E assim apresentou habilmente uma nova versão dos crimes da CIA. As AIT – Abomináveis Técnicas de Tortura– “devem ser repudiadas por todos” – mas não, ao que parece, o devem ser as boas EIT–. Como disse Cheney, a tortura era “algo que evitamos muito cuidadosamente”. Tomo nota das palavras “muito cuidadosamente”. E estremeço.

    O bom sr. Brennan disse-nos que “ficámos aquém do necessário quando se tratou de responsabilizar alguns agentes [sic]”. Mas é perfeitamente claro que os torturadores – ou “agentes”– não vão ser responsabilizados. Nem o sr. Brennan. Nem Dick Cheney. E, ouso mencionar isto, o são os regimes árabes para onde a CIA transferia as vítimas que considerava merecerem um tratamento ainda más vil do que o que podiam dispensar nas suas próprias prisões secretas. Um pobre tipo, Maher Arar, era cidadão canadiano, um condutor de camiões apanhado pela CIA no aeroporto JFK de Nova York e encaixotado para a Síria de antes da guerra civil para receber un pouco de AIT – não EIT, que fique claro – a pedido dos estado-unidenses. Metido num buraco pouco maior que um caixão, o seu primeiro contacto com AIT era ser chicoteado com cabos eléctricos.

    Foi desta forma que Cheney e a sua rapaziada deram largas ao seu sadismo por interposta gente, no mesmo Estado cujas “técnicas de interrogatório” indignam agora tanto o Ocidente que este está a apelar ao derrube do regime sírio (juntamente com o derrubamento de Isis e Jabhat al-Nusra), a favor dos “moderados” recentemente armados que, supostamente, empregam apenas EIT e não em AIT.

    Mas como vem assinalando o meu colega jornalista Rami Khouri, os 54 países do “programa” de rendições da CIA incluem Argélia, Egipto, Irão, Iraque, Jordânia, Marrocos, Arábia Saudita, Síria, Turquia, os Emiratos Árabes Unidos e Iémen. Podem juntar a Líbia de Khadafi a essa lista. De facto, a polícia secreta italiana até ajudou a CIA a sequestrar um íman nas ruas de Milão e a mandá-lo para o Cairo por um pouco de AIT às mãos dos interrogadores de Mubarak. O que provavelmente explica por que tem estado algo calado o mundo árabe e muçulmano desde que o relatório do Senado dos EUA – mesmo na sua forma altamente censurada - foi publicado na semana passada.

    Foi o jornalista egípcio Mohamed Hassanein Heikal quem primeiro escreveu acerca de como a CIA fez circular um filme de uma mulher iraniana a ser torturada pela polícia secreta do Shah, de forma a que outros países pudessem aprender a forma de fazer falar prisioneiros femininos. A nova e melhorada CIA de hoje, evidentemente, não faria isso. Destruiu as suas próprias gravações em vídeo antes de o Senado lhes poder deitar a mão. Mas a natureza subserviente dos regimes árabes também deveria ser objecto de estudo. Porque eles também torturaram – a nosso pedido. Como Khouri perguntou na semana passada, «Iremos nós mencionar, ou tentar reparar, a nossa cumplicidade criminosa e imperial com uma abertura que ao menos se aproxime daquela com que os EUA abordaram esta questão?». É escusado aguardar por uma resposta.
    Os confronto são rejeitados, só “conversações” são permitidas.

    Ainda sobre Chomsky e as palavras, antes de sair do Canadá a caminho de Beirute comprei um excelente casaco de inverno. Fabricado na China, evidentemente. Mas a garantia informava-me de que corresponde a um alto padrão “de impermeabilidade e respirabilidade”(waterproofness and breathability). Essas palavras vêm juntar-se ao horrível palavreado que os governos e as empresas agora utilizam para argumentar.

    Já não nos dizem que estão em confronto com alguém. Estão “a conversar” sobre “um assunto”. E se eu deparo com outro médico que me venha falar de “bem-estar” (wellness), aplicarei de imediato AIT ao culpado.

    * Fonte: The Independent, UK.

    aqui:http://www.odiario.info/?p=3520

    sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

    A defesa do imperialismo do dólar


    por Mike Whitney [*]

     
    "A 'necessidade' de o Fed ter um papel ainda mais activo, enquanto os estrangeiros abrandam ainda mais a compra da nossa divisa, é para travar a corrida da desvalorização cambial que ocorre no mundo desenvolvido – uma corrida que está a precipitar-nos para o fim do actual regime de divisas".
    – Stephanie Pomboy, MacroMavens

    "Seja o que for que os nossos correspondentes ocidentais nos digam,
    podemos ver o que se está a passar. A NATO está a montar
    descaradamente as suas forças na Europa de Leste,
    incluindo as áreas do Mar Vermelho e do Mar Báltico.
    As suas actividades operacionais e de treino em combate estão a aumentar".
    – Presidente russo Vladimir Putin

    Se houvesse uma forma de os Estados Unidos poderem concretizar os seus objectivos a longo prazo e, simultaneamente, evitarem uma guerra com a Rússia, fa-lo-iam. Infelizmente, isso não é uma opção e por isso vai haver um confronto entre os dois adversários com armas nucleares em algum momento no futuro próximo.

    Passo a explicar: A administração Obama está a tentar reequilibrar a política dos EUA mudando o foco da atenção do Médio Oriente para a Ásia, que, segundo se prevê, será a região de maior crescimento no próximo século. Chama-se a esta mudança de política o "pivô" para a Ásia. A fim de beneficiar do grande crescimento da Ásia, os EUA planeiam incrementar a sua presença neste continente, expandir as suas bases militares, reforçar alianças bilaterais e acordos comerciais e assumir o papel-chave da segurança regional. O objectivo nada secreto desta política é a "contenção" da China, ou seja, Washington quer preservar a sua posição de única superpotência mundial, controlando o crescimento explosivo da China. (Os EUA querem uma China fraca, dividida, que faça o que lhe mandarem).

    A fim de atingir os seus objectivos na Ásia, os EUA precisam de empurrar a NATO mais para Leste, apertar o seu cerco à Rússia e controlar o fluxo do petróleo e do gás de Leste para Oeste. Estas são as pré-condições necessárias para instituir o domínio hegemónico no continente. E é por isso que a administração Obama está tão interessada em apoiar o governo torpe da junta de Kiev; é porque Washington precisa das tropas de choque neonazis de Poroshenko para arrastar a Rússia a um conflito na Ucrânia que esgote os seus recursos, desacredite Putin aos olhos dos seus parceiros comerciais da UE e crie o pretexto para posicionar a NATO na fronteira ocidental da Rússia.

    A ideia de que o exército pró-Obama na Ucrânia está a defender a soberania do país é uma charlatanice pura. O que se passa nos bastidores é que os EUA estão a tentar combater um declínio económico irreversível e uma parte sempre contracção do PIB global, em permanente redução, através da força militar. Assistimos hoje na Ucrânia a uma versão do século XXI do Grande Jogo, implementado por fantasistas políticos e com dificuldades financeiras, que acham que podem atrasar o relógio para o tempo do apogeu pós II Guerra Mundial do Império americano, quando o mundo era a pérola da América. Graças a Deus, esse período acabou.

    Não se esqueçam que as gloriosas forças armadas americanas passaram os últimos 13 anos a lutar no Afeganistão com pastores de cabras calçados com sandálias num conflito que, na melhor das hipóteses, pode ser caracterizado como um impasse. E agora a Casa Branca quer conquistar a Rússia?

    Estão a ver a loucura desta política?

    Foi por isso que o secretário da Defesa, Chuck Hagel, foi demitido na semana passada, porque não se mostrou suficientemente ansioso para prosseguir nesta política louca de reforçar as guerras no Afeganistão, no Iraque, na Síria e na Ucrânia. Toda a gente sabe que é verdade, a administração nem sequer tentou negá-lo. Preferem agarrar-se a palhaços enraivecidos, como Susan Rice e Samantha Power, do que a um veterano condecorado que tem mais credibilidade e inteligência no dedo mindinho do que toda a equipa de Segurança Nacional de Obama, em conjunto.

    Portanto, Obama está agora totalmente rodeado por imbecis defensores da guerra, que subscrevem o mesmo conto de fadas de que os EUA vão reduzir a Rússia a pó, derrubar Assad, redesenhar o mapa do Médio Oriente, controlar o fluxo de gás e de petróleo do Médio Oriente para os mercados da UE, e estabelecer miríades de bases pela Ásia onde podem manter um controlo apertado sobre o crescimento da China.

    Diga-me, caro leitor, isso não lhe parece um pouco improvável?

    Claro que a claque de Obama pensa que tem tudo sob controlo, porque, bem, porque é o que lhe têm dito para pensar e porque isso é o que os EUA têm de fazer se quiserem manter a sua posição excelsa enquanto única superpotência mundial, quando o seu significado económico no mundo está a declinar paulatinamente. Este é o problema. A nação excepcional está a tornar-se cada vez menos excepcional e é isso que tem preocupado a classe política, porque vêem os graffiti nas paredes e eles dizem: "Gozem enquanto dura, porque já não vão ser o número um por muito mais tempo".

    Os EUA também têm aliados nesta louca cruzada, nomeadamente Israel e a Arábia Saudita. Os sauditas têm sido especialmente prestimosos ultimamente, inundando o mercado com petróleo para fazer baixar os preços e esmagar a economia russa. (Na sexta-feira, os preços de referência do crude caíram ao nível do preço de há quatro anos, com o preço do crude Brent a baixar para os 69,11 dólares por barril). A administração Obama está a usar o clássico golpe duplo das sanções económicas e da quebra das receitas do petróleo para forçar Moscovo a retirar-se da Crimeia, para que Washington possa avançar com o seu arsenal nuclear para uma distância mínima de Moscovo. Aqui está algo do Guardian:
    "Pensem em como a administração Obama vê o estado do mundo. Quer que Teerão desista do seu programa nuclear. Quer que Vladimir Putin se retire da Ucrânia oriental. Mas, depois das recentes experiências no Iraque e no Afeganistão, a Casa Branca não está interessada em pôr as botas americanas no terreno. Em vez disso, e com a ajuda do seu aliado saudita, Washington está a tentar baixar o preço do petróleo, inundando de crude um mercado já débil. Como os russos e os iranianos são profundamente dependentes das exportações do petróleo, a presunção é que assim será mais fácil lidar com eles.
    John Kerry, o secretário de Estado dos EUA alegadamente fechou um acordo com o rei Abdullah em Setembro, segundo o qual os sauditas venderiam o crude abaixo do preço de mercado. Isso ajudaria a explicar porque é que o preço tem estado a descer numa altura em que, dadas as convulsões no Iraque e na Síria provocadas pelo 'estado islâmico', o natural seria que estivesse a subir".
    ( Stakes are high as US plays the oil card against Iran and Russia , Larry Eliot, Guardian )
    E há mais, de Patrick L. Smith, do Salon:
    "Menos de uma semana depois da assinatura do Protocolo Minsk, Kerry fez uma viagem pouco noticiada a Jedá para se encontrar com o rei Abdullah na sua residência de Verão. Quando acabou por ser noticiada, foi justificada como fazendo parte da campanha de Kerry para garantir o apoio árabe na luta contra o 'estado islâmico'".
    Alto lá. A visita não foi só por causa disso, é o que me dizem minhas fontes de confiança. A outra metade da visita teve a ver com o desejo inabalável de Washington de arruinar a economia russa. Para isso, Kerry disse aos sauditas 1) para aumentar a produção, e 2) para reduzir o preço do crude. Não se esqueçam destes números pertinentes: os sauditas precisam de um preço de menos de 30 dólares/barril para equilibrar o orçamento nacional, enquanto os russos precisam de 105 dólares
    Pouco depois da visita de Kerry, os sauditas começaram de facto a aumentar a produção – em mais 100 mil barris por dia durante o resto de Setembro, segundo parece, para virem a aumentar ainda mais…
    Pensem nisto. O Inverno está a chegar, há graves interrupções de produção no Iraque, na Nigéria, na Venezuela e na Líbia, há outros membros da OPEP aos gritos a pedir um alívio e os sauditas fazem movimentos de recuo que levam a uma maior descida dos preços? Façam as contas, pensando no itinerário oculto de Kerry e, para vos ajudar, ofereço-vos isto de uma fonte extremamente bem posicionada nos mercados de produtos: 'Há agora mãos muito poderosas a pressionar o petróleo na oferta global, escreveu noutro dia essa fonte num e-mail".
    ( What Really Happened in Beijing: Putin, Obama, Xi And The Back Story The Media Won't Tell You , Patrick L. Smith, Salon)
    A equipa de Obama conseguiu convencer os nossos bons amigalhaços, os sauditas, a inundar o mercado de petróleo, a baixar os preços e a precipitar a economia russa no abismo. Simultaneamente, os EUA intensificaram as sanções económicas, fizeram tudo o que puderam para sabotar o gasoduto South Stream da Gazprom (que contornaria a Ucrânia e forneceria o gás natural à Europa através dum caminho pelo Sul) e convenceu o parlamento ucraniano a leiloar 49 por cento dos direitos de leasing e das instalações de armazenagem subterrâneas a empresas estrangeiras pertencentes a privados.

    Gostam disto? Assim, os EUA desencadearam uma guerra devastadora contra a Rússia que tem sido totalmente omitida pelos meios de comunicação ocidental. Estão surpreendidos?

    Washington está determinado a bloquear ainda mais a integração económica da Rússia na União Europeia, a fim de fazer desabar a economia russa e pôr o capital estrangeiro a controlar a distribuição regional da energia. Tem tudo a ver com o eixo. Os rapazes do grande capital acham que os EUA têm que ser o eixo para a Ásia. para poderem manter o seu papel no próximo século. Todos estes ataques não provocados a Moscovo baseiam-se nessa estratégia louca.

    Mas as pessoas na UE não vão ficar irritadas quando não puderem obter a energia de que precisam (aos preços que querem) para os seus negócios e para aquecer a casa?

    Washington acha que não. Washington acha que os seus aliados no Médio Oriente podem satisfazer as necessidades de energia da UE sem qualquer dificuldade. Vejam este trecho de um artigo do analista F. William Engdahl:
    "… estão a aparecer pormenores dum novo segredo e de um acordo bastante estúpido Arábia Saudita-EUA sobre a Síria e o chamado 'estado islâmico'. Envolve o controlo do petróleo e do gás de toda a região e o enfraquecimento da Rússia e do Irão, pela inundação saudita do mercado mundial com petróleo barato…
    A 11 de Setembro, o secretário de estado Kerry encontrou-se com o rei saudita Abdullah no seu palácio do Mar Vermelho. O rei convidou o antigo chefe dos serviços secretos sauditas, o príncipe Bandar, para assistir. Foi preparado um acordo que previa o apoio saudita a ataques aéreos sírios contra o ISIS com a condição de Washington dar apoio aos sauditas para derrubar Assad, um firme aliado da Rússia e também do Irão, e um obstáculo aos planos sauditas e dos Emirados Árabes Unidos para controlar o mercado emergente do gás natural da UE e destruir o comércio lucrativo da Rússia com a UE. Uma notícia no Wall Street Journal fazia notar que tinha havido meses de trabalho nos bastidores entre os líderes americanos e árabes, que acordaram na necessidade de cooperar contra o 'estado islâmico' mas não como nem quando.
    O processo deu aos sauditas a possibilidade de arrancar aos EUA o compromisso de reforçar o treino para os rebeldes lutarem contra o Sr. Assad, cuja queda os sauditas continuam a considerar uma prioridade absoluta". ( The Secret Stupid Saudi-US Deal on Syria , F. William Engdahl, BFP)
    Portanto, as guerras na Ucrânia e na Síria não são conflitos separados de modo algum. Fazem parte da mesma guerra global por recursos que os EUA têm desencadeado nos últimos 15 anos. Os americanos planeiam cortar o fluxo de gás russo e substitui-lo pelo gás do Qatar que atravessará a Síria e entrará no mercado da UE depois de Assad ser derrubado.

    Eis o que se está a passar: os problemas da Síria começaram pouco depois de ela ter anunciado que ia participar de um "gasoduto islâmico" para transferir o gás natural do reservatório de gás de South Pars, ao largo da costa do Irão, através do Iraque e da Síria, que viria a ligar ao lucrativo mercado da Grécia e da UE. Segundo o autor Dmitri Minin:
    "Um gasoduto a partir do Irão seria altamente lucrativo para a Síria. A Europa também ganharia com isso, mas há nitidamente no ocidente quem não goste da ideia. Os fornecedores de gás, aliados do ocidente no Golfo Pérsico, também não ficaram satisfeitos, nem a Turquia, o transportador de gás número um, porque ficaria fora do jogo".
    ( The Geopolitics of Gas and the Syrian Crisis: Syrian "Opposition" Armed to Thwart Construction of Iran-Iraq-Syria Gas Pipeline , Dmitri Minin, Global Research)
    Dois meses depois de Assad ter assinado o acordo com o Iraque e o Irão, rebentou a rebelião na Síria. É uma grande coincidência, não acham? É curioso como este tipo de coisas acontece tão frequentemente quando os líderes estrangeiros não afinam com Washington.

    Mas há mais de Minin:
    "O Qatar está a fazer tudo o que pode para torpedear a construção do gasoduto, incluindo armar os combatentes de oposição na Síria, muitos dos quais vêm da Arábia Saudita, do Paquistão e da Líbia…
    O jornal árabe Al-Akhbar cita informações segundo as quais há um plano aprovado pelo governo dos EUA para criar um novo gasoduto para transportar gás de Qatar para a Europa, envolvendo a Turquia e Israel…
    Este novo gasoduto deverá começar em Qatar, atravessar o território saudita e depois o território da Jordânia, ultrapassando assim o Iraque xiita, e chegar à Síria. Perto de Homs o gasoduto dividir-se-á em três direcções: para Lataquia, Trípoli no norte do Líbano, e Turquia. Homs, onde também há reservas de hidrocarbonetos, é a principal encruzilhada do projecto, e não é para admirar… que ocorra aí a luta mais feroz. O destino da Síria está a ser decidido aí. As partes do território sírio onde estão a operar os destacamentos de rebeldes, com o apoio dos EUA, Qatar e Turquia, ou seja, o Norte, Homs e os arredores de Damasco, coincidem com o caminho que o gasoduto deverá seguir para a Turquia e Trípoli, no Líbano. Uma comparação de um mapa das hostilidades armadas e um mapa da rota do gasoduto de Qatar indica um elo entre as actividades armadas e o desejo de controlar estes territórios sírios. Os aliados de Qatar estão a tentar atingir três objectivos: quebrar o monopólio do gás da Rússia na Europa; libertar a Turquia da sua dependência do gás iraniano; e dar a Israel a hipótese de exportar o seu gás para a Europa por terra a um custo menor".
    Que tal, gostam disto, mais uma coincidência: "A luta mais feroz (na Síria) está a ocorrer" onde há enormes "reservas de hidrocarbonetos" e ao longo da rota planeada para o gasoduto.

    Portanto, o conflito na Síria não tem nada a ver com terrorismo. Trata-se do gás natural, de gasodutos concorrentes e do acesso aos mercados na UE. Trata-se de dinheiro e de poder. Toda essa história do ISIS é uma grande mistificação para esconder o que se está realmente a passar, que é uma guerra global pelos recursos, mais sangue para o petróleo.

    Mas como é que os EUA beneficiam de tudo isto, afinal as receitas do gás não vão para Qatar e para os países por onde transita o gasoduto, em vez de irem para os EUA?

    Claro que vão. Mas o gás também vai ser denominado em dólares que aumentarão brutalmente a procura do dólar americano, perpetuando assim o sistema de reciclagem do petrodólar, o que cria um grande mercado para a dívida dos EUA e que ajuda a manter as acções e títulos dos EUA na secção da hemorragia (apenas) nasal. É disto que se trata, de preservar a supremacia do dólar forçando as nações a manterem quantidades excessivas de dólares americanos para usar nas transacções de energia e para servir suas dívidas denominadas em dólares.

    Enquanto Washington puder controlar os abastecimentos mundiais de energia e forçar o mundo a comerciar em dólares, pode gastar muito mais do que produz e não ser responsabilizado por isso. É como ter um cartão de crédito que nunca seja preciso reembolsar.

    Isto é uma trapaça que o Tio Sam está preparado para defender com tudo o que tiver, incluindo bombas nucleares.
    01/Dezembro/2014
     

    [*] Vive no estado de Washington, EUA, fergiewhitney@msn.com , colaborou em Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion , AK Press.

    O original encontra-se em www.counterpunch.org/2014/12/01/defending-dollar-imperialism/ . Tradução de Margarida Ferreira.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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