sexta-feira, 23 de maio de 2014

Às vésperas das eleições ao PE : Os mediocres fundadores da União Europeia

por Jacques-Marie Bourget
Annie Lacroix-Riz.
 
Annie Lacroix-Riz lembra Eric Hobsbawm, o gigante inglês da história, especialista em nações e em nacionalismo. Um exemplo: em 1994 este sábio escreveu "A era dos extremos", um livro que nos fixa à verdade, sem dúvida como Arquimedes no instante de gritar "Eureka". Para Hobsbawm, o século XX não durou cem anos mas apenas 75, de 1914 a 1991. Antes da "Grande Guerra", o século XIX acaba o seu tempo a espezinhar seu sucessor e, após a "Guerra do Golfo", o XXI já está a chamar. O historiador inglês é aborrecido com os calendários ainda que tenha o seu modo de os por em dia. E o que aconteceu a este livro que se deve ter sempre na mala em caso de êxodo? Em França, nada. Foi preciso que Le Monde Diplomatique se mobilizasse para que Hobsbawm fosse traduzido e editado pela Complexe. Em Paris, a camarilha que domina a publicação dos livros de história não queria mostrar o ponto de vista deste britânico. Para eles era desqualificado uma vez que marxista, portanto paleolítico e forçosamente cúmplice do Gulag.

Annie Lacroix-Riz vive a mesma desventura no próprio seio de uma "comunidade" reduzida ao palavreado, a dos nossos historiadores oficiais que escrevem as suas obras directamente para a televisão – sentados ao colo de BHL . Em geral eles têm um passado de duros militantes do PCF e, como todos os convertidos, tornaram-se Savonarolas . Tanto pior, a investigadora tem uma boa reputação no resto do planeta e junto aos anglo-saxónicos, até mesmo junto aos seus colegas mais reaças. O que os investigadores apreciam é a capacidade de trabalho desta dama que come uma sande nos arquivos e acaba por ali dormir. Ela lê tudo em todas as línguas, com Lacroix-Riz estamos na brutalidade dos factos, suas citações fazem dos seus leitores testemunhas da história.

. Ela acaba de publicar um livro que, estamos certos, jamais ouvirão falar: "Aux origines du carcan européen (1900-1960)" [1] ("Nas origens da sujeição europeia (1900-1960)") publicado pelas edições Le Temps des Cerises. Neste período em que nos pedem para votar sobre a Europa, suas palavras têm sentido. Recordemos o postulado, aquele que justifica a União como uma evidência: "A Europa é o meio de evitar a guerra"... Em algumas frases Lacroix-Riz arruma este slogan lembrando as guerras da Jugoslávia, as divisões violentas e hoje a Ucrânia que é um drama exemplar. Sua motivação é sempre a mesma, para avançar seus interesses os Estados Unidos continuam a utilizar a Europa como uma ferramenta. Desta vez para combater a Rússia.

O trabalho da historiadora remonta à fonte deste esquema, daquilo que se poderia chamar "Euramérica". Pois esta Europa de hoje, seu germe, ou seu ovo, é bem mais antiga que os mano-a-mano de De Gaulle ou de Mitterrand com os chanceleres alemães. No fim deste livro, o balanço das investigações: a Europa é apenas uma sucessão de ententes oportunas entre os grandes grupos financeiros alemães e franceses, com os Estados Unidos a velarem pelo respeito do contrato de casamento. Primeiro um idílio escondido, na fase mais brutal da guerra de 1914. Um conflito que faria matar os homens mais prósperos da indústria. Assim, lembra-nos Lacroix-Riz, em Agosto de 1914, após a entrada dos alemães em Briey, foi feito um acordo secreto de "não bombardeamento" dos estabelecimentos do Senhor de Wendel. Cartazes "a proteger" foram mesmo afixados a fim de que um mariola com capacete de ponta não viesse prejudicar o património sagrado desta família. Outro exemplo de entente muito cordial, o de Henry Gall e seu trust químico Ugine. Este, por intermédio da sua fábrica suíça de La Lonza, fornecerá à Alemanha toda a sua produção eléctrica e os produtos químicos necessários ao fabrico de armas terríveis como a cinamida. Entre firmas, durante a guerra continua a paz.

Outra demonstração desta estratégia transfronteiriça: a invalidação do tratado de Versalhes. Este, que punha fim à guerra de 1914 e constrangia a Alemanha a sanções, é conscienciosamente sabotado pelos Estados Unidos que temiam "o imperialismo" de uma França demasiado forte e demasiado laica. A 13 de Novembro de 1923 Raymond Poincaré é constrangido a ceder à pressão de Washington. O acordo é o seguinte: vocês se retiram do Ruhr, aceitam um Comité de peritos e financeiros americanos, e nós cessamos de especular contra o vosso franco. É o secretário de Estado Hugues que apresenta este ultimato em nome do banqueiro JP Morgan, este mesmo banco que encontramos hoje na origem da crise financeira mundial. Neste ukase do lado de lá do Atlântico encontra-se a mão na sombra que, pouco a pouco, vai modelar a Europa tal qual ela é.

Uma anedota: em Agosto de 1928, quando Raymond Poincaré propõe a Gustav Stresemann, o ministro alemão dos Negócios Estrangeiros (que em 1923, por breve tempo, foi chanceler) fazer uma "frente comum" contra "a religião americana do dinheiro e os perigos do bolchevismo", há uma recusa. Para Lacroix-Riz, Stresemann é um "pai da Europa" demasiado desconhecido, o peão dos bancos da Wall Street e exactamente do JP Morgan ou do Young. Em 1925, aquando da assinatura do pacto de Locarno, que redesenha a Europa do após guerra, é o mesmo Stresemann que Washington alcunha como grande arquitecto, ao passo que Aristide Briand e a França são assentados na ponta das nádegas sobre um trampolim. Stresemann assina o que ele qualifica secretamente de "pedaço de papel enfeitado com numerosos carimbos". O governo do Reich já assinou acordos secretos com os nacionalistas estrangeiros, amigos.   Stresemann sabe que este Pacto é obsoleto à nascença. No entanto "Locarno", quando Hitler bate às portas, permanecerá nos discursos dos partidos de direita e aqueles das Ligas, a palavra sagrada. Um sinónimo de paz quando não é senão uma máscara do nazismo.

. Tendo a França perdido seu domínio sobre o Ruhr, é tempo de assinar a verdadeira paz, a dos negócios. É o nascimento da "Entente internacional do aço", que dará o "Pool carvão-aço", ou seja, nossa Europa feita em bancos. A Alemanha obtém 40,45% da Entente, a França 31,8%:   a guerra está acabada e uma outra pode começar. E ela vem. Em 1943 os Estados Unidos e a Inglaterra modelam o "estatuto monetário" que deverá ser executado uma vez terminado o conflito. O vencedor (os Estados Unidos) "imporá às nações aderentes o abandono de uma parte da sua soberania por fixação das paridades monetárias". Este desejo demorou algum tempo para se realizar mas, com os papéis desempenhados hoje pelas agências de notação e pela obrigação que os Estados da Europa têm de não contrair empréstimos senão no mercado privado, o plano está a ser finalmente respeitado.

A 12 de Julho de 1947 abre-se em Paris a "Conferência dos dezasseis". Os canhões nazis ainda estão quentes quando a Alemanha e os Estados Unidos choram novamente sobre o destino do Ruhr. Ainda que à margem da Conferência, anglo-americanos e alemães têm reuniões paralelas a fim de liquidar os desejos da França. Por uma vez Paris mantém-se firme. Furiosos, os americanos enviam um emissário a fim de "reescrever o relatório geral da Conferência". No bom sentido. Em particular seis pontos são ditados por Clayton, o secretário de Estado do Comércio. Eles resumem o programa comercial e financeiro mundial, e portanto europeu, de Washington. Os Estados Unidos exigem a constituição de uma "organização europeia permanente encarregada de examinar a execução do programa europeu". Esta máquina será a OECE. Ela prefigura "nossa" Europa. E Charles-Henri Spaak, primeiro presidente da Organização Europeia de Cooperação Económica não é senão um secretário que aplica as instruções americanas.

Quanto aos heróis que celebramos, eleições europeias obrigam, "os pais da Europa", ao ler Lacroix-Riz não se tem vontade de sermos seus filhos. Jean Monnet? Primeiro reformado em 1914, mercador de álcool durante a Lei Seca, fundador da Bancarmerica em São Francisco, conselheiro de Tchang Kai-Chek por conta dos americanos. Depois, em Londres em 1940, Monet recusa-se a associar-se à France Libre para, em 1945, tornar-se o enviado de Roosevelt junto ao general Giraud ... Eis aqui um homem com o perfil ideal para por de pé uma Europa livre. Neste jogo de família quer um outro "Pai"? Eis aqui Robert Schuman, outro ícone. Um pormenor da vida do herói é suficiente para qualificá-lo:   no Verão de 1940 ele vota a favor de plenos poderes para Pétain e aceita como prémio ser membro do seu governo. Após a guerra, Schuman será posto em penitência, o que é uma prática habitual para um tão bom católico. Depois, esquecido o passado, ele vai pressionar por uma Euro-América: capitalista, cristã e a desenvolver-se na estufa da NATO.

Antes das eleições "europeia" de 25 de Maio próximo ainda há tempo para ler "Aux origines du carcan européen", um livro deixa o rei nu. Aqueles que, como François Hollande, estão convencidos de que "Deixar a Europa é deixar a história" poderão constatar que o Presidente diz a verdade. Deixar uma história escrita pelos banqueiros americanos.
16/Maio/2014

[1] Aux origines du carcan européen (1900-1960), co-edição Delga-Le temps des cerises, Abril 2014, 15 euros

O original encontra-se em www.afrique-asie.fr/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

aqui:http://resistir.info/europa/fundadores.html                   

terça-feira, 20 de maio de 2014

Os tabus e as alternativas


por Daniel Vaz de Carvalho [*]

 
A liberdade de um povo está na força e na duração da sua Constituição e a sua liberdade morre sempre com ela.
Discursos e Relatórios, Saint-Just, Ed. Estampa
Só conheço um meio de resistir à Europa: é opor-lhe o espírito da liberdade.
(Idem)
Saída limpa. 1 – A LÓGICA AXIOMÁTICA

A lógica axiomática permite a construção de raciocínios perfeitamente coerentes, embora possam nada ter a ver com a realidade. A partir do momento em que se definam os axiomas o resto vem por acréscimo de acordo com a própria lógica.

Um exemplo muito curioso é o das geometrias. Euclides, perante a impossibilidade de demonstrar alguns conceitos da sua geometria, admitiu-os como verdadeiros e indemonstráveis. Assim, foi considerado durante 22 séculos até no século XIX os seus axiomas serem contestados construindo-se as geometrias ditas não euclidianas: a esférica ou elíptica e a hiperbólica. [1]

A economia política ao serviço do capital impôs uma lógica axiomática, da qual resultou o neoliberalismo, destacando-se neste processo os srs. Hayek e Friedman. Mesmo desmentida pelos factos e posta ao serviço de horrorosas ditaduras, a argumentação baseada nessa lógica dava os subterfúgios necessários à exploração capitalista, permitindo contestar quer o marxismo quer o keynesianismo, vendo um tão ameaçador como o outro para os interesses do grande capital e multinacionais.

As sociedades europeias estão dominadas por axiomas como a eficiência dos "mercados" financeiros, o euro como moeda única, a UE como espaço de democracia e progresso. Se não se começar por contestar esses axiomas a crítica é apenas circunstancial, não sai da lógica do sistema. O discurso de ministros, deputados da maioria e do PS, comentadores, pode então ser perfeitamente lógico… mas sem relação com a realidade ou incapaz de a alterar. A sua coerência tem a ver apenas com os axiomas assumidos: sem estes a assertividade e o país das maravilhas de Coelho, Portas & Cia, não passa de um baralho de cartas.

Para além das invocações propagandísticas, os axiomas que referimos funcionam como se as pessoas não existissem, fossem descartáveis; tratados ao nível da peça de mobiliário da empresa: um custo. A noção de necessidades sociais simplesmente não existe. Para se ser eficiente é preciso ser-se anti-social. Dizia o sr. César das Neves: "Direitos são muito bonitos mas é preciso pagá-los". (RTP, INF, Contas Certas. 8/5) Por outras palavras: os direitos da agiotagem estão antes do das pessoas. Os seus axiomas levam-nos a subordinar a utilidade social aos interesses financeiros e monopolistas.

Os apoios sociais, o próprio salário, são considerados uma concessão ao nível da esmola, nunca como direito humano e apenas para que a pobreza não chegue a gerar revoltas que ponham em causa os seus axiomas.

Os mercados são considerados entidades absolutamente racionais e eficientes. É falso. Os "mercados" são entidades corruptas, fraudulentas, que convivem com o dinheiro do crime organizado, que apenas se guiam pelos seus interesses e que transformaram em legal o que ainda há escassas décadas era crime (paraísos fiscais, livre transferência de capitais, fuga aos impostos, etc.).

A partir do momento em que tudo fica nas mãos dos "mercados" e do que isto significa em termos de poder político e social, o mito liberal da igualdade, o "personalismo" democrata-cristão ou o "Estado Social" do PS, vão para o caixote do lixo da retórica, pois, como proclamam os srs. César das Neves, M. Carreira, V. Bento, etc., "só podemos ter o Estado que podemos pagar", ou seja, só podemos ter a democracia e a solidariedade social que os detentores do dinheiro permitam em função dos seus interesses.

O sr. Vítor Gaspar definiu bem o nível axiomático, das políticas atuais: "A questão não é sobre as regras que estão definidas e são reconhecidas (!) é sobre a qualidade da execução". (debate no ISCTE em 19/4) Os alquimistas do século XVIII não falavam de forma diferente.

2 – TABUS E FALÁCIAS

Perante o falhanço das políticas atuais, os seus defensores procuram manter a opinião pública iludida fazendo dos seus axiomas tabus, algo sagrado, intocável. Os "mercados" financeiros, o euro, os tratados da UE, são como que a "santíssima trindade" da dogmática vigente. Daqui a "religião" do dinheiro parte para outros "mistérios": a economia do lado da oferta que justifica a descida do IRC, as desigualdades crescentes, os intocáveis paraísos fiscais; o salário mínimo e os direitos laborais como fatores de desemprego; o pacto orçamental da UE, base do euro, como "regra de ouro".

Quando se diz, para justificar os desmandos da troika: "gastava-se mais do que se produzia", ou "gastava-se acima das possibilidades", nunca se pergunta porquê, pois isso levaria a pôr em causa os tabus instituídos. O sr. César das Neves acha que "É bom que os países sejam humilhados" e comenta escandalizado que "o povo comprou casa, carro, frigoríficos (!), fez viagens". (RTP Informação, Contas Certas, 5/5)

Esta afirmação, mesmo sendo uma falácia, só prova que os seus dogmas estão errados: quem fomentou o consumismo foi o sistema bancário sem regulação, entregue a uma hipotética eficiência pelo mercado; bem como as pretensas "escolhas racionais" que desviaram o crédito do sector produtivo para a especulação imobiliária e o consumo, em busca de elevados lucros a curto prazo.

Tratava-se na realidade de corromper os povos, afastá-los dos seus interesses fundamentais e da defesa dos seus direitos, corrompe-los com o crédito e o consumismo. Os que se opunham a este modelo eram então classificados de dinossauros e… "estalinistas".

Finalmente quem consumiu de mais? Segundo um relatório da OCDE Portugal foi dos países onde a riqueza do 1% mais rico mais cresceu. Entre 1980 e 2012 o rendimento do 1% aumentou105%, ou seja, mais que duplicou, aparecendo em terceiro lugar a seguir aos EUA e Reino Unido. Portugal tem o segundo mais elevado índice de desigualdade da zona euro e os 25 mais ricos valem mais de 10% do PIB.

Todos os indicadores que a propaganda do governo apresenta como sucessos, não passam de falácias. O desemprego está escamoteado pela emigração, o trabalho parcial e os que deixaram de figuram nos registos. Quanto ao PIB esconde-se que o país está ao nível de há 15 anos, e o investimento ainda mais. A baixa dos juros é outro "sucesso": atingem 3,4 ou 3,6% a 10 anos, omitindo que o BCE concede aos "mercados" dinheiro a 0,25%, com cobertura de riscos garantida, para estes investirem nas dívidas públicas.

O sucesso da "saída limpa", é desmentido pelas agências de rating que mantêm Portugal como "lixo" financeiro, pelos relatórios da troika exigindo austeridade permanente e continuando a fiscalizar Portugal duas vezes por ano.

A lógica das oligarquias com os seus "mercados", está em que "controlando a dívida controla-se tudo". Com 94% do PIB de dívida pública diziam que estávamos na "bancarrota", a "5ª coluna" neoliberal tudo fez para a ocupação do país pela troika; agora com 130% festejam o sucesso. O chamado programa de ajustamento serviu apenas para compensar a finança (em primeiro lugar a alemã) dos desajustes provocados pelo euro e pelo seu projeto económico. Mas o sr. Daniel Beça (Prós e Contras, 5/5) diz que "os credores estiveram cá durante quase três anos a ajudar o país". A direita teve o sucesso que queria.

Os elogios aos sacrifícios dos "portugueses" fazem lembrar os do fascismo colonialista aos sacrifícios dos soldados numa guerra perdida, que estava a ser "ganha em todas as frentes" ainda no dia 24 de Abril. A mentira é crónica na direita. O que há a fazer é em primeiro lugar discutir a fundamentação, a validade, as consequências dos seus axiomas.

3– A "EUROPA" E O EURO

A UE tornou-se um espaço antidemocrático que trata os países mais vulneráveis como colónias. Convive com a extrema-direita em vários países, tornou-se xenófoba, fomenta miseravelmente o nazismo na Ucrânia, apoia o terrorismo na Síria, agiu criminosamente na Líbia, na Jugoslávia, etc. Hostiliza a Venezuela, a Bolívia, o Equador, Cuba. Os partidos da social-democracia/socialismo reformista alinham nestes procedimentos, de que são vergonhosos exemplos as posições do sr. Hollande.

A burocracia que enxameia pelas instituições europeias não foi eleita, não representa o povo da UE, mas são eles que decidem os nossos destinos. Funcionários coligados nas troikas assustam a opinião pública com seus tabus. Dominam cultivando uma aparente discórdia que não põe em causa os seus axiomas, irrelevante para os seus interesses.

Assis e a sua alma gémea. Como conciliar a coesão social e o próprio regime democrático com o tratado orçamental da UE? Francisco Assis, dizia que o PS havia de o cumprir "de forma inteligente", só não diz como. Constança Cunha e Sá (TVI-24, 21/04) replicava dizendo que só havia uma forma inteligente de o fazer: "é não cumprir". Ricardo Pais Mamede referiu como um triângulo de impossibilidades : o tratado orçamental, o pagamento da dívida nos termos atuais e o Estado Social. Assumir os dois primeiros torna incompatível o terceiro.

J. Ferreira do Amaral considera com razão que o euro transforma o país numa junta de freguesia da UE. Portugal fica às ordens de um Alto-Comissário como um qualquer protetorado. O PS qualifica isto de "soberania partilhada". Afinal, idêntica à do Egipto dos paxás perante o império britânico, no século XIX…

A riqueza produzida em Portugal é levada para a Holanda e para outros paraísos fiscais. Trabalhamos para a finança, em grande parte devido às empresas privatizadas. Saint-Just dizia que vencidos os inimigos da Revolução no campo de batalha "esses povos, ou antes quem os domina, são nossos inimigos, declararam-nos guerra com seu ouro".

O presidente do Eurogrupo diz que Portugal precisa encontrar um equilíbrio entre nível salarial e produção competitiva, para se terem produtos baratos para exportar e ganhar dinheiro. É um exemplo acabado da lógica axiomática, no entanto não conseguem (ou não querem) definir que nível de salários deveria ser atingido no seu modelo competitivo.

A perspectiva é uma "economia Wall-Mart" e "fast-food" em que os trabalhadores são vigiados e perseguidos com processos ou despedimentos por atividades sindicais e reivindicativas. É aqui que a troika quer chegar, subvertendo toda a proteção legal aos trabalhadores, estabelecendo uma corrida para o nível mais baixo possível das condições de trabalho e salários. À pretendida destruição da contratação coletiva o primeiro-ministro chama "dinamizar". É concretamente um objetivo fascizante.

O sr. F. Assis, diz que o governo PSD-CDS é "excessivamente liberal". Portanto aceita todos os axiomas do neoliberalismo, mas não "excessivamente". Não adianta o PS iludir-se e iludir com "menos austeridade" baseada no programa da troika, quando afinal perspectiva uma coligação com o PSD, segundo Ana Gomes pode ser necessário…

Para António Costa "enquanto não se resolver o efeito assimétrico que o euro tem sobre as economias dificilmente sairemos disto." Sendo assim, que propõe? E se a "Europa" não estiver interessada nessa resolução, se tal for impossível atendendo aos interesses da Alemanha (ou de quem a domina) e de outros países? Qual é o plano B?

4 - AS ALTERNATIVAS E O RUMO À VITÓRIA

Para Marx os filósofos tinham até ali tentado explicar o mundo, o que se tratava agora era de transforma-lo. É a diferença entre a crítica e a criação de alternativas. Para criar alternativas é preciso destruir tabus, não cair nos falsos dilemas dos axiomas. Sem isto, críticas, análises, enunciado de medidas mesmo aparentemente muito corretas nada alteram do essencial, são voluntarismo ou cosmética. O fascismo salazarista teve ministros tecnicamente competentes, nada alteraram ao contexto geral de pobreza, atraso, repressão.

Einstein teria dito que, nunca resolvemos os problemas que enfrentamos com o mesmo modo de pensar que os originou: torna-se necessário criar outro modo de pensar. Nisto consiste essencialmente a criação de alternativas.

O que se passa na Alemanha, na Áustria ou na Finlândia, nada tem de comum com o que se passa entre nós. É preciso ir às causas dos problemas e procurar as soluções. O euro, os mercados financeiros, os tratados da UE, são verdadeiras camisas-de-forças para o progresso e a democracia para Portugal, mas também para os outros povos da UE.

O primeiro passo para a criação de alternativas é a discussão sem tabus destes temas. No II Congresso Marx em Maio , Nuno Teles lembrou o avanço na compreensão da renegociação da dívida e da saída do euro desde há alguns anos. E com razão, é que as alternativas reais não aparecem como situações acabadas: são processos.

Os tabus europeus e neoliberais a que também o PS está aferrado, não passam de situações em que "o rei vai nu". Fora da UE: estão países como a Islândia e a Noruega e fora do euro países como a Dinamarca e a Suécia, não se dando nada mal com isso.

Ao falarmos de alternativas não podemos ignorar as lições que o "Rumo à Vitória" [2] encerra. Escrito em 1964, o "Rumo à Vitória" não é um livro datado. É uma obra importante do pensamento marxista, no que tem de análise da sociedade portuguesa, das suas contradições e do seu potencial revolucionário. A partir dessa análise foram elaboradas as teses para a construção e a concretização da alternativa que resultaria na Revolução de Abril e na sua Constituição.

O "Rumo à Vitória" foi feito num período em que o regime fascista exibia uma propaganda triunfalista de êxitos, que o governo atual copia: "crescimento e emprego" (que agora nem sequer existem) sobre uma estrutura económica e social cheia de vícios e contradições.

Em certos sectores mesmo alinhados à esquerda há a ideia de que determinados temas não devem ser discutidos porque as pessoas não estão preparadas e não ser oportuno. É o caso do euro, dos mercados financeiros, da UE. Também quando o "Rumo à Vitória" foi elaborado se podia dizer – e foi dito – que não havia condições e várias das suas propostas não seriam oportunas. Porém cabia justamente aos marxistas criar essas condições e alargar o debate com todos os democratas e progressistas.

No momento atual, é cada vez mais oportuno tornar evidente que a mudança é não só necessária mas possível. A Constituição de Abril foi e ainda é o maior consenso nacional. Todos os álibis são usados pelos seus inimigos para anularem os seus princípios. Porém continua a ser aí que encontramos as respostas para superação da crise atual, para a concretização de um novo "Rumo à Vitória" – que urge.
 

Notas
[1] Na geometria esférica ou elíptica de Rieman, os triângulos somam menos de 180º e numa esfera ao aumentar o raio do círculo pode diminuir o seu perímetro. Na geometria hiperbólica de Lobatchevsky, entre outros, os triângulos somam mais de 180º. A primeira verifica a relatividade generalizada de Einstein. A segunda, poderá aplicar-se no caso de uma permanente expansão do universo. Porém mesmo na Terra a geometria de Euclides deixa de ser válida em grandes distâncias. Assim, a linha mais curta entre dois pontos não é uma linha reta (a loxodrómica) traçada na carta de navegação, mas sim a ortodrómica que segue um círculo máximo.
[2] Rumo à Vitória, Álvaro Cunhal, Ed. Avante.


[*] Autor de "Girassóis", uma história de antes, durante e depois do 25 de Abril. A obra pode ser obtida na secção livros para descarregamento


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/


aqui:http://resistir.info/v_carvalho/tabus_e_alternativas.html 
 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Tragédia limpa

por Sandra Monteiro

Estamos perante uma farsa limpa, uma realidade suja e uma saída que, nestes moldes, simplesmente não existe. A farsa, eficazmente montada por responsáveis políticos preocupados com as eleições de 25 de Maio para o Parlamento Europeu e reproduzida sem qualquer exigência crítica pela generalidade dos meios de comunicação, está a tornar-se intoxicação. E isso fará dela uma tragédia.

O Memorando de Entendimento assinado em 2011 com a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional), tanto na versão inicial como nas ultrapassagens pela direita depois introduzidas, serviu para disfarçar de «ajuda financeira externa a um país em dificuldades» um empréstimo bancário muito condicionado a políticas orçamentais de reconfiguração do Estado (amputando as suas dimensões sociais e os serviços públicos) e do trabalho (cortando empregos, direitos e salários, precarizando e forçando tantos desempregados à emigração).

Este programa tipicamente neoliberal, que nem deixou de fora as privatizações de empresas e sectores lucrativos, permitiu ao sistema financeiro internacional transformar uma crise bancária e financeira numa crise de dívidas dos Estados. Mesmo países como Portugal, que antes da crise iniciada em 2008 não tinham grandes problemas de dívida pública, caíram na armadilha. O que contou foi a particular debilidade de uma dívida externa há décadas associada a um padrão de especialização produtiva muito frágil face aos embates que a economia tem sofrido – desde logo com a integração numa arquitectura europeia e monetária disfuncional, em que os défices que martirizam os povos do Sul fazem os excedentes dos credores que enriquecem a Norte.

O programa de ajustamento neoliberal do Memorando cujo período de cumprimento agora termina não foi uma intervenção limitada no tempo, num país agora entregue à sua sorte. Os constrangimentos inscritos nos tratados europeus, em particular no Tratado Orçamental, e as intocadas regras institucionais e monetárias, dão a qualquer governo argumentos para manter e agravar durante anos as políticas de austeridade, de ataque ao Estado social e ao trabalho. Se a isto juntarmos o garrote da dívida pública, formatada para ser insustentável e garantir a asfixia permanente, temos todas as condições para que Portugal, crescentemente inserido nos mecanismos financeiros da Europa e da globalização, ambas neoliberais, tenha sido atirado, com ou sem visitas regulares da Troika, para uma trajectória duradoura de endividamento e empobrecimento.

A celebração da «saída limpa» não é, portanto, nem «saída» nem «limpa» A única «limpeza» é a da farsa, que aproveita de forma obscena as fragilidades de uma população sequiosa de boas notícias e alguma esperança. Há poucas mentiras tão detestáveis quanto as que são ditas nestas condições de sofrimento colectivo. Pelas ausência de limites na prossecução dos seus fins, mas também por serem um concentrado de anti-democracia. Governar pela impostura é expulsar do conflito político-social as regras do jogo democrático (e a confiança nelas depositada para resolver problemas colectivos); é alimentar soluções que prescindem da democracia. As farsas não se transformam em tragédias de um dia para o outro. Durante algum tempo convivem traços de uma e de outra no tecido social. Os cidadãos das classes populares e médias que se sentem gozados quando ouvem falar de «saídas limpas» e as comparam com a sua realidade, cada vez mais encardida pelas políticas que lhes são impostas, têm razões para não terem esperança no «pós-Troika». Esta espécie de «ir para fora cá dentro» já não promete uma perspectiva de férias, como na publicidade de outrora, mas as mil e uma formas de a Troika anunciar que sai, não saindo.

Uma saída a sério exige, seja qual for o governo em funções, que ele esteja disposto a armar-se de um consenso com o seu povo, com os povos austerizados, para afrontar as metas monetaristas do Tratado Orçamental e impor aos credores financeiros uma reestruturação profunda da dívida. Fora deste cenário, e das alianças virtuosas e fortes que ele tem condições para criar, a realidade de quem vive do seu trabalho será trabalhar mais e receber menos; a de quem cai na precariedade será a constante perda de direitos; a de quem está desempregado será a emigração ou a eternização dessa condição (com subsídios reduzidos ou sem qualquer protecção social, como já acontece a 445 mil dos 812 mil desempregados); a de quem se reforma será a de pensões que deterioram muito o seu nível de vida. Ao lado da pobreza e da desigualdade, a riqueza continuará a acumular-se entre os beneficiários da austeridade.

Se não for agora que a esquerda, que todas as esquerdas, se empenham em deter este empreendimento criminoso e substituí-lo por políticas que promovam a justiça social, quando será? Quando as regras de saída das crises já nada quiserem com o jogo democrático? Por muito que se tente manipular a realidade, a tragédia, quando se instala, é sempre suja.

sexta-feira 9 de Maio de 2014

aqui:http://pt.mondediplo.com/spip.php?article992

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Romper o silêncio: o assomar de uma guerra mundial

por John Pilger 


Por que toleramos a ameaça de outra guerra mundial?

Por que permitimos mentiras que justificam este risco? A escala d
a nossa doutrinação, escreveu Harold Pinter, é um "acto de hipnose brilhante, mesmo jocoso e altamente conseguido", como se a verdade "nunca acontecesse mesmo enquanto estava a acontecer".

Todos os anos o historiador americano William Blum publica o seu "sumário actualizado do registo da política externa estado-unidense" o qual mostra que, desde 1945, os EUA tentaram derrubar mais de 50 governos, muitos deles eleitos democraticamente; interferiu grosseiramente em eleições de 30 países; bombardeou as populações civis de 30 países; utilizou armas químicas e bacteriológicas e tentou assassinar líderes estrangeiros.


Em muitos casos a Grã-Bretanha foi uma colaboradora. O grau de sofrimento humano, sem mencionar a criminalidade, é escassamente reconhecido no ocidente, apesar a presença das mais avançadas comunicações do mundo e nominalmente do jornalismo mais livre. Que a maior parte das numerosas vítimas do terrorismo – o "nosso" terrorismo – é muçulmana, é indizível. Que o jihadismo extremo, o qual levou ao 11/Set, foi cultivado como uma arma da política anglo-americana (Operação Ciclone no Afeganistão) é omitido. Em Abril do Departamento do Estado dos EUA observou que, a seguir à campanha da NATO em 2011, "a Líbia tornou-se um abrigo seguro para terroristas".

O nome do "nosso" inimigo mudou ao longo dos anos, de comunismo para islamismo, mas na generalidade é qualquer sociedade independente do poder ocidental e a ocupar território estrategicamente útil ou rico em recursos. Os líderes destas nações obstrutivas habitualmente são violentamente empurrados para o lado, tais como os democratas Muhammad Mossedeq no
Irão e Salvador Allende no Chile, ou são assassinados como Patrice Lumumba no Congo. Todos eles são sujeitos a uma campanha de caricaturas e difamação pelos media ocidentais – basta pensar em Fidel Castro, Hugo Chávez, agora Vladimir Putin.

O papel de Washington na Ucrânia é diferente apenas quanto às suas implicações para todos nós. Pela primeira vez desde os anos Reagan, os EUA ameaçam levar o mundo à guerra. Com a Europa oriental e os Balcãs agora como postos avançados da NATO, o último "estado tampão" ("buffer state") a bordejar a Rússia está a ser despedaçado. Nós no ocidente estamos a apoiar neo-nazis num país onde nazis ucranianos apoiaram Hitler.

Tendo engendrado o golpe de Fevereiro contra o governo democraticamente eleito de Kiev, o plano de Washington de tomar a histórica e legítima base naval da Rússia em águas quentes, na Crimeia, fracassou. Os russos defenderam-se, tal como o fizeram contra toda ameaça e invasão do ocidente durante quase um século.

Mas o cerco militar da NATO acelerou-se, juntamente com ataques orquestrados pelos EUA a russos étnicos na Ucrânia. Se Putin puder ser provocado a vir em sua ajuda, o seu papel pré-decretado de "pária" justificará uma guerra de guerrilha dirigida pela NATO que provavelmente se estenderá à própria Rússia.

Putin, ao invés, confundiu o partido da guerra ao procurar uma acomodação com Washington e a UE, ao retirar tropas da fronteira ucraniana e ao instar os russos étnicos na Ucrânia oriental a abandonarem o referendo provocatório do fim de semana. Este povo que fala russo e é bilingue – um terço da população da Ucrânia – deseja há muito uma federação democrática que reflicta a diversidade étnica do país e seja tanto autónoma como independente de Moscovo. Na maior parte não são nem "separatistas" nem "rebeldes" mas cidadãos que querem viver em segurança na sua pátria.

O crime de Odessa num cartaz neo-nazi.
Tal como as ruínas do Iraque e do Afeganistão, a Ucrânia foi transformada pela CIA num parque temático – dirigido em Kiev pelo director da CIA John Brennan, com "unidades especiais" da CIA e do FBI a instalarem uma "estrutura segura" que supervisione ataques selvagens àqueles que se opõem ao golpe de Fevereiro. Assista aos vídeos, leia os relatos de testemunhas oculares do massacre em Odessa este mês. Bandidos fascistas transportados em autocarro incendiaram a sede da casa dos sindicatos, matando 41 pessoas presas no seu interior. Observe a polícia de prontidão. Um médico descreveu como tentou resgatar pessoas, "mas fui impedido por radicais nazis pró ucranianos. Um deles empurrou-me para longe brutalmente, prometendo que em breve eu e outros judeus de Odessa iriam deparar-se com o mesmo destino... Gostava de saber porque todo o mundo está a manter silêncio".

Os ucranianos de língua russa estão a combater pela sobrevivência. Quando Putin anunciou a retirada de tropas russas da fronteira, o secretário da defesa da junta de Kiev – um membro fundador do partido fascista Svoboda – jactou-se de que os ataques a "insurgentes" continuariam. Em estilo orwelliano, a propaganda no ocidente inverteu isto para Moscovo "a tentar orquestrar conflitos e provocação", segundo William Hague. O seu cinismo vai a par com as grotescas congratulações de Obama à junta golpista pela "notável contenção" a seguir ao massacre de Odessa. A junta, ilegal e dominada por fascista, é descrita por Obama como "devidamente eleita". O que importa não é a verdade, disse outrora Henry Kissinger, mas "o que é percebido ser verdadeiro".

Nos media dos EUA a atrocidade de Odessa foi subestimada como "nebulosa" e uma "tragédia" na qual "nacionalistas" (neo-nazis) atacaram "separatistas" (pessoas a colectarem assinaturas para um referendo sobre uma Ucrânia federal). O Wall Street Journal de Rupert Murdoch condenou as vítimas – "Incêndio fatal na Ucrânia provavelmente ateado pelos rebeldes, diz o governo".

A propaganda na Alemanha tem sido pura guerra fria, com o Frankfurter Allgemeine Zeitung a advertir os seus leitores para uma "guerra não declarada" da Rússia. Para alemães, é uma ironia odiosa que Putin seja o único líder a condenar a ascensão do fascismo na Europa do século XXI.

Um truísmo popular é que "o mundo mudou" a seguir ao 11/Set. Mas o que mudou? Segundo o grande denunciante Daniel Ellsberg, um golpe silencioso teve lugar em Washington e agora domina o militarismo desenfreado. O Pentágono actualmente dirige "operações especiais" – guerras secretas – em 124 países. Internamente a ascensão da pobreza e a hemorragia da liberdade são o corolário histórico de um estado de guerra perpétuo. Acrescente-se o risco de guerra nuclear e a pergunta que resulta é: por que toleramos isto?
14/Maio/2014
Ver também:

  • The Odessa Massacre - What REALLY Happened (video)


  • Pourquoi le massacre d’Odessa a-t-il si peu d’écho dans les médias?

    O original encontra-se em www.globalresearch.ca/break-the-silence-a-world-war-is-beckoning/5382248


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
  •  
  • aqui:http://resistir.info/pilger/pilger_14mai14.html 
  • segunda-feira, 5 de maio de 2014

    Europa reocupada

    por César Príncipe


    A República Federal da Alemanha absorveu a República Democrática Alemã. Aumentou a massa corporal e muscular. A reincorporação não ocorreu por magia, não obstante a Conversão da Rússia constar dos apostolados. O milagre teve os seus agentes e artífices: na sombra, operou a inteligência germano-americana; à luz do dia, actuou o complexo mediático; e como seguro contra todos os riscos da blitzkrieg 89, a camarilha da Perestroika desguarneceu as muralhas do Kremlin. Até acreditou ou simulou acreditar na promessa de que a NATO jamais integraria estados e regiões da área de influência e segurança da URSS. O ataque-relâmpago do Novo Eixo mereceu tratamento de visita guiada. Gorbachev confessou (sem pingo de rubor) que, no Ocidente, à excepção dos USA, todos estavam contra a queda do muro e a reunificação, desde Thatcher a Andreotti, a Mitterrand: Todos vieram até mim, um após o outro, pedindo isso. Mitterrand era ferozmente contrário. Mais esperto do que os outros, dizia: “Amo a Alemanha de tal forma que prefiro ter duas” Só depois, quando tudo se precipitou, todos assinaram. [1] Os amigos ocidentais (ingleses, italianos, franceses, etc.) chegaram a implorar que o Exército Vermelho esmagasse o levantamento. Contudo, o Actor Principal da Glasnost , capitulacionista de salão e padecente da doença infantil do capitalismo, deu ouvidos ao interlocutor de facto. Genuflectiu como se uma superpotência real não tivesse argumentário. O valentaço Gorby foi o mesmo que, anos antes, noutra entrevista, declarou, visando a marioneta Ieltsin: Temos uma Rússia fraca e um presidente fraco. [2] Quanto à Europa NATO/UE, resmunga e amua mas não passa de pátio dianteiro dos USA, recomendável para acampamentos do Pentágono, estações e prisões da CIA, mobilizações predatórias, vendas de armas e pacotes de propaganda, jogos bolsistas e fundistas, colocação de apples, googles, cineprodutos, transgénicos, fármacos, heroína do Afeganistão e cocaína da Colômbia (demarcações da Esfera político-militar USA). O narcomercado é um dos super-negócios do planeta. Os USA são o guardião-dealer. Na definição dos interesses vitais e dispositivos da sua manutenção, não admira, pois, que a chamada Europa não tenha nem esteja autorizada a ter política de defesa nem política externa fora dos varais e canais dos USA, embora a sede da NATO e a sede da UE, irmãs gémeas, se encontrem na mesma cidade (Bruxelas), com moradas autónomas para fingir independência ou disfarçar que não são geridas desde Washington. Dominique Villepin, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e antigo primeiro-ministro de França, desabafou (cito de memória), num momento de franqueza e finura de guilhotina: Não há NATO. Há generais americanos. A própria Alemanha está sob tutela do patrono atlântico: os USA mantêm em solo alemão cerca de 60 mil efectivos e 227 bases, algumas dotadas de bombas nucleares. As instalações norte-americanas funcionam ainda como parabólicas de espionagem, constituindo a nação-hospedeira um dos alvos. A Alemanha é um ocupante-ocupado, como Portugal foi um colonizador-colonizado. De resto, na linha de reactualização e reconfiguração do Eixo (também o Japão se acha ocupado pelos USA), que aí dispõem de 50 mil efectivos em 135 bases, algumas equipadas com cargas atómicas. A Alemanha e o Japão jazem sob o dicktat dos USA, que lhes distribui guiões e fixa taxas de empenhamento no tarefário geo-estratégico, particularmente no cerco à Rússia e à China. O Império norte-americano não levanta ferro. Nem sequer entreabre a cortina.

    Muro na Palestina. Muro da vergonha
    Caiu em Berlim
    Vergonha só lá
    Muros há sem fim
    [3]

    O mundo estava cortado e recortado por altos e grossos muros e continuou a levantar vedações de betão, arame farpado, cabos eléctricos e torres de metralhadoras, mas só um foi apodado de vergonhoso. Todavia, convém destapar outras barreiras, as credoras de aplauso, de compreensão, tolerância ou esquecimento da comunidade internacional, tão proficientemente facetada e discricionariamente representada pelos USA e pelos seus carros de guerra psicológica, as televisões, as rádios, os jornais. Eis uma lista de muros deixados em paz pelas chancelarias e pelos agitadores de direitos universais: USA-México, Índia-Bangladesh, Índia-Paquistão, Índia-Birmânia, Paquistão-Afeganistão, Marrocos-Sara Ocidental, Botsuana-Zimbábue, Coreia do Sul-Coreia do Norte, China-Coreia do Norte, Uzbequistão-Quirquistão, Irão-Paquistão, Arábia Saudita-Iraque, Israel-Cisjordânia, Israel-Líbano, Egipto-Gaza, Grécia-Turquia, Chipre (divisória greco-turca), Ceuta/Melilla (Espanha), Belfast (Irlanda do Norte), Bagdad (Iraque), La Molina (Peru), Rio de Janeiro (Brasil). Todos se encontram de pé e prometem durar e perdurar. Inadiável era a queda do Muro de Berlim, prenúncio aparatoso e ruidoso do desabamento da URSS e do bloco socialista. Festejável com música rock, tanques de cerveja, pichagens alucinogénias. Vinte anos depois, enquanto os redesenhadores de mapas e as trupes do Wall Show celebravam a efeméride, a população da ex-Alemanha Democrática sentia o ferrete da anexação ou reunificação. [4]

    Muro entre pobres e ricos no Rio de Janeiro.
    IV Reich em acção

    Demolido o muro, riscada do planisfério a Alemanha socialista, a Alemanha capitalista e imperialista encetou o desarme das alfândegas continentais, acobertando-se sob as vestes da confraria europeia: instituiu a livre circulação de capitais; fixou taxas de câmbio irrevogáveis; fez entrar o marco em circulação com nome de euro, assim se posicionando como player nos mercados de divisas e condicionando as exportações, especialmente dos países do Sul/Leste; desestruturou as actividades concorrenciais (desmantelamento e deslocalização de indústrias, abate de frotas pesqueiras, subsídios de funeral para as agriculturas). De seguida, a Nova Alemanha, a que carrega 100 milhões de mortos (contabilidade do séc. XX) e uma vasta geografia de ruínas, acelerou a reocupação dos submetidos na II Grande Guerra. Só a Noruega resistiu. Acertaram o passo com o ex-ocupante: Áustria, Bélgica, Bulgária, Checoslováquia (República Checa e Eslováquia), Dinamarca, Estónia, França, Grécia, Hungria, Itália, Jugoslávia (Croácia/ Eslovénia/ Macedónia/ Sérvia/ as duas últimas à espera que o ex-ocupante aceda ao pedido de reocupação), Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Mónaco, Holanda, Polónia, República Checa, San Marino, Ucrânia (a caminho da reocupação). Paralelamente, o IV Reich foi ornando o cinturão de caça com uma série de troféus que no período do III Reich haviam demonstrado comportamento de bons alunos : Espanha, Finlândia, Portugal, Roménia. Há igualmente que inscrever a zona grega do Chipre e a República de Malta na Cartografia da Grande Guerra Financeira. Pelo meio, com a Alemanha Democrática reintegrada, dissolvida e recentrada, a Germânia liderou a desintegração da República Federativa da Jugoslávia, que tinha de levar uma ensinadela por se manter não-alinhada, soberana e socialista. O Curso de PatroNATO durou de 24/03/ a 11/06 de 1999, sem mandato das Nações Unidas, a pretexto de instantes razões humanitárias. O programa NATO School incluiu escombros generalizados e selectivos, doses de urânio empobrecido com certificado de garantia para centenas de milhares de anos, extensas manchas de sangue e lágrimas e a imposição de um estado fantoche e artificial (Kosovo), com uma super-base USA, governado com savoir-faire pelo mundo do crime (local e sem fronteiras).

    Wehrmacht do Euro

    O Euro é o Marco do Neo-Expansionismo. Na guerra económico-financeira, os Estados do Sul, previamente desarmados, entre a espada da moeda forte e a parede da economia fraca, tentaram o salto em frente, seduzidos pelo crédito de torneira aberta e pela carteira de fundos, contraindo a doença da dívida galopante e do défice excessivo, estimulada pelos credores, apostados em arrastar os esfomeados de barriga dilatada para uma situação de emergência. Sob a bota e a batota da usura, com governos-carpete que vendem a pataco as jóias da economia e tripudiam os princípios da soberania, o capitalismo euroglobal lançou os seus rapazes ou rapaces sobre os activos sociais (salários, reformas, pensões, receitas fiscais, reservas de ouro e divisas, serviços públicos) e os activos empresariais do Estado. A operação de saque amigo foi implacavelmente montada. Nem será preciso recorrer a teóricos de última geração da economia de guerra e do garrote financeiro. Bastará rebuscar fontes da mesma água, validadas pela constância dos factos e a didáctica dos séculos. Neste caso, fontes euro-americanas. Portadoras de credenciais. Insuspeitíssimas. Uma a jorrar da bocarra de um banqueiro, alemão e judeu, e outra da carranca de um fazendeiro, congressista e presidente com direito a efígie monetária e a inscrição In God We Trust/Deus Seja Louvado/Confiamos em Deus.

    Eis a voz da banca:
    Dai-me o controlo da moeda de um país e não me importará quem faz as leis. [5]

    Eis o porta-voz:
    Há duas maneiras de submeter e escravizar uma nação: uma é pela espada e outra é pela dívida. A dívida é uma arma contra os povos. Os juros são as munições. [6]

    Guião falangista

    De sublinhar que o projecto de domínio regional e intercontinental está a ser assessorado pela extrema-direita. Cada vez mais motivada com chavões anticomunistas, anti-semitas, racistas, xenófobos, homofóbicos, machistas. Está a levedar um microclima século XX, anos 30. O capitalismo volta a dar corda à delinquência falangista, a fim de ensaiar governos de mão dura para acentuar a espoliação e conter a resistência popular. Enraivecer e desnortear as massas, desviando-as dos referenciais democráticos e do sentido de classe, faz parte do caderno de encargos da besta negra. Os operacionais de trabalhos sujos da História aí estão nas ruas e os branqueadores movem-se pelos parlamentos, pelos governos, pelos meios de comunicação, pelas academias. É o caldo de cultura dos bárbaros. Que não estão às portas da Europa: estão dentro. A Ucrânia é o mais recente caso de tomada do poder pelo bandoleirismo nazifascista, redoutrinado, treinado, municiado e subvencionado (com especial zelo pela Alemanha e pelos USA). Em termos eleitorais e sociais, Holande e Valls, garçons de bureau do alto capital e catapultas da assunção aos céus de Nôtre Dame Le Pen, são o cartaz mais patético da França e a caricatura mais servil da social-democracia. Phillipe Pétain, marechal da desonra, primeiro-ministro e presidente da República (1940-1944), condenado à morte por traição e indultado por De Gaulle, sepultado na Île d`Yeu, sorrirá como só as caveiras sabem sorrir.
     

    (1). La Repubblica, entrevista de Fiammetta Cucurnia, 09/11/2009, 20º aniversário da queda do muro.
    (2). Jornal de Notícias, entrevista de César Príncipe, 17/06/1995, no 4º aniversário da dissolução da URSS.
    (3) César Príncipe, Correio Vermelho, Seara de Vento, 2008.
    (4) O dia em que se comemoram os 20 anos sobre a queda do Muro de Berlim, uma sondagem conclui que os alemães de Leste consideram que a reunificação não foi consumada e que a esmagadora maioria sentia-se bem na antiga Alemanha Democrática. O estudo indica que 50 por cento dos cidadãos da antiga Alemanha Democrática lamentam as diferenças reais do nível de vida, lembrando que no Leste o desemprego é maior, os salários são mais baixos e o PIB é de apenas de um terço do registado no lado ocidental do país. Doze por cento dos inquiridos recordam com saudade os tempos da RDA e outros tantos defendem mesmo que o muro devia ser reconstruído. Somente um quinto dos alemães de Leste considera que a reunificação vai no bom sentido e muitos outros dizem que os irmãos do Ocidente os tratam com arrogância. [TSF , 09/11/2009)
    (5) Mayer Amschel Rothschild (1744-1821), fundador da dinastia de banqueiros.
    (6) John Adams (1735-1826), presidente dos USA.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

    aqui:http://resistir.info/europa/reocupacao_da_europa.html 

    O pacote de resgate do FMI coage a Ucrânia à guerra civil

    sexta-feira, 2 de maio de 2014

    1 de Maio de 2014EUA: o estudo que não fazia falta

    Crise na Ucrânia acelera a reestruturação do mundo

    por Pierre Charasse

    A crise ucraniana não mudou radicalmente a situação internacional, mas precipitou o desenvolvimentos em curso. A propaganda Ocidental, que nunca foi mais forte, oculta especialmente a realidade do declínio ocidental para as populações da OTAN; mas, não tem mais efeito na realidade política. Inexoravelmente, a Rússia e a China, apoiadas pelos outros BRICS, ocupam seu lugar de direito nas relações internacionais.


    A crise na Ucrânia pôs em evidência a magnitude de manipulação da opinião pública ocidental pela grande mídia, canais de TV como CNN, Foxnews, Euronews e muitos outros, bem como toda a imprensa alimentada por agências de notícias ocidentais. A maneira com que o público ocidental é mal informado é impressionante; mas, ainda é fácil de ter acesso a uma riqueza de informações por todos os lados. É preocupante ver quantos cidadãos do mundo estão sendo atraídos para uma russofobia, nunca vista mesmo nos piores momentos da Guerra Fria. A imagem que entra o inconsciente coletivo através da máquina de poderosos meios de comunicação ocidentais é que os russos são "bárbaros e atrasados" em relação ao mundo ocidental "civilizado". O discurso muito importante que Vladimir Putin fez em 18 de março, após o referendo na Crimeia, literalmente foi boicotado pelos meios de comunicação ocidentais [1], pois estes abriram um grande espaço para as reações ocidentais, todas negativas, é claro. No entanto, em seu discurso, Putin explicou que a crise na Ucrânia não foi desencadeada pela Rússia e apresentou, com grande racionalidade, a posição da Rússia e os legítimos interesses estratégicos de seu país no conflito pós-ideológico.

    Humilhada por seu tratamento pelo Ocidente desde 1989, a Rússia acordou com Putin e começou a reconectar-se com uma política de grande poder, tentando reconstruir as linhas da força histórica tradicional da Rússia czarista e da União Soviética. A geografia muitas vezes controla a estratégia. Tendo perdido grande parte de seus territórios"históricos", nas palavras de Putin, e população russa e de nacionalidade russa, a Rússia estabeleceu um grande projeto nacional e patriótico para recuperar o seu estatuto de superpotência com ação "global", garantindo a segurança de suas fronteiras terrestres e marítimas. Isso é exatamente o que o Ocidente quer evitar em sua visão de mundo unipolar. Bom jogador de xadrez que é, Putin está vários passos à frente graças a um profundo conhecimento da história, do mundo real e das aspirações de grande parte da população dos territórios anteriormente controlados pela União Soviética. Ele conhece a União Europeia perfeitamente, suas divisões e fraquezas, a capacidade militar da OTAN e o estado da opinião pública ocidental relutante em ver um aumento nos gastos militares em tempos de recessão econômica. Ao contrário da Comissão Europeia, cujo projeto coincide com o dos Estados Unidos para fortalecer o bloco político-econômico-militar Euro-Atlântico, os cidadãos europeus em sua maioria não procuram maior expansão da UE para o leste, nem com a Ucrânia ou com a Geórgia, e nem com qualquer outro país da União Soviética.
    Com sua postura e suas ameaças de sanções, a UE, servilmente alinhada com Washington, mostra que é impotente para "punir" a Rússia a sério. Seu peso real não é igual às suas ambições sempre proclamadas de moldar o mundo à sua imagem. O governo russo muito responsivo e malicioso tem apresentado "reações graduais", ridicularizando as medidas ocidentais punitivas. Putin, altivo, permite-se mesmo ao luxo de anunciar que vai abrir uma conta no banco Rossyia de Nova York para depositar seu salário! Ele não mencionou ainda a limitação do fornecimento de gás à Ucrânia e à Europa Ocidental; mas, todos sabem que ele tem esta carta na mão, o que já obrigou os europeus a pensar sobre a reorganização completa do seu abastecimento de energia, que vai levar anos para se materializar.

    Os erros e as divisões ocidentais colocam a Rússia em posição de força. Putin goza de popularidade excepcional no seu país e nas comunidades russas em países vizinhos, e podemos ter certeza de que seus serviços de inteligência já penetraram profundamente os países anteriormente controladas pela União Soviética, fornecendo informações abundantes de primeira mão sobre o equilíbrio do poder interno. Seu aparato diplomático dá argumentos fortes para remover o monopólio da interpretação do direito internacional do "Ocidente", particularmente sobre a espinhosa questão da autodeterminação. Como seria de esperar, Putin não hesita em citar o precedente de Kosovo para difamar a duplicidade do Ocidente, sua inconsistencia, e o papel desestabilizador que desempenhou nos Balcãs.

    Enquanto a propaganda da mídia ocidental estava em pleno andamento após o referendo de 16 de março na Crimeia, gritos ocidentais caíram subitamente um tom e o G7, no seu Encontro de Haia às margens da conferência sobre segurança nuclear, não ameaçou excluir a Rússia do G8, como tinha alardeado alguns dias antes, mas simplesmente anunciou que "não participaria do Encontro de Sochi." Isto lhe deu a oportunidade de reativar a qualquer momento esse fórum privilegiado de diálogo com a Rússia, criado em 1994 a seu pedido expresso. Primeiro recuo do G7. Obama, por sua vez, apressou-se a anunciar que não haveria nenhuma intervenção militar da OTAN para ajudar a Ucrânia, mas apenas uma promessa de cooperação para reconstruir o potencial militar desse país, composto em grande parte de equipamentos soviéticos obsoletos. Segundo recuo. Vai levar anos para colocar um exército ucraniano digno desse nome a seus pés e, perguntamo-nos, quem vai pagar tendo em conta a situação das finanças do país. Além disso, não sabemos exatamente qual é a situação das forças armadas da Ucrânia depois de Moscou ter convidado, com algum sucesso ao que parece, os ucranianos militares, herdeiros do exército vermelho, a se alistarem no exército russo, mantendo sua patente individual.

    A frota ucraniana já está totalmente sob controle russo. Finalmente, em outra espetacular reversão por parte dos Estados Unidos: teria havido conversações secretas muito avançadas entre Moscou e Washington para adotar uma nova Constituição na Ucrânia, para instalar um governo de coalizão cujos extremistas neonazistas seriam excluídos em Kiev por ocasião das eleições de 25 de maio e, especialmente, para impor um status neutro na Ucrânia, sua "Finlandização" (recomendado por Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski) [2], que proíbe sua entrada na OTAN, mas permite acordos econômicos com a UE e com a União Aduaneira da Eurásia (Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão). Se tal acordo for alcançado, a UE será confrontada com um fato consumado e terá que conformar-se a pagar a conta dessa decisão russo-americana. Com essas garantias, Moscou poderia considerar que seus requisitos de segurança foram atendidos. Teria recuperado o pé em sua antiga esfera de influência com o acordo de Washington, e abster-se-ia de fomentar o separatismo em outras províncias ucranianas ou na Transnístria (província Moldávia povoada pelos russos) enquanto reafirmando seu forte respeito para com as fronteiras europeias. O Kremlin ao mesmo tempo teria oferecido uma saída honrosa para Obama. Um golpe de mestre para Putin.

    Consequências geopolíticas da crise ucraniana

    O G7 não havia calculado que, tomando medidas para isolar a Rússia, além do fato de estar aplicando a si mesmo um "castigo sado-masoquista", nas palavras de Hubert Vedrine, antigo ministro francês dos negócios estrangeiros, estaria, apesar disso, precipitando um processo, já em curso, de reestruturação profunda do mundo em benefício de um grupo não-ocidental, liderado por China e Rússia, sob a égide dos BRICS. Em resposta ao comunicado do G7, de 24 de março [3], os chanceleres dos BRICS manifestaram sua rejeição a quaisquer medidas para isolar a Rússia e imediatamente aproveitaram a oportunidade para denunciar as práticas de espionagem dos Estados Unidos contra seus líderes e, como boa medida, exigiram que os Estados Unidos ratificassem a nova distribuição do direito de voto no FMI e no Banco Mundial como um primeiro passo para uma "ordem mundial mais justa" [4]. O G7 não esperava uma resposta tão rápida e virulenta dos BRICS.

    Esse episódio pode sugerir que o G20, do qual o G7 e os BRICS são os dois principais pilares, poderia atravessar uma grave crise antes do próximo encontro em Brisbane (Austrália), em 15 e 16 de novembro, especialmente se o G7 continuar a marginalizar e punir a Rússia. É quase certo que haverá uma maioria no G20 a condenar as sanções contra a Rússia, o que na verdade terá o efeito de isolar o G7. Em sua declaração à imprensa, os ministros dos BRICS sentiram que, decidir quem é membro do grupo e qual é seu propósito, cabe a todos os seus membros "em igualdade de condições", e nenhum dos seus membros "pode unilateralmente determinar sua natureza e seu caráter." Os ministros clamam que a crise atual se resolva no contexto das Nações Unidas, "com calma, visão ampla, renunciando à linguagem hostil, às penas e às sanções". Uma afronta para os países do G7 e da União Europeia! O G7, que colocou-se sozinho num beco sem saída, está avisado de que será necessário fazer concessões significativas, se quiser continuar a ter alguma influência no G20.

    Além disso, dois importantes eventos estão a ocorrer nas próximas semanas.

    Primeiro, Vladimir Putin vai pagar uma visita oficial à China em maio. Os dois gigantes estão prestes a assinar um grande acordo de energia que afetará substancialmente o mercado global de energia, tanto estrategicamente quanto financeiramente. As transações deixarão de ser em dólares, mas passarão a ser nas moedas nacionais dos dois países. Voltando-se para a China, a Rússia não terá nenhum problema para vender sua produção de gás no caso de a Europa Ocidental decidir mudar de fornecedor. E, com a mesma aproximação, China e Rússia poderiam assinar um acordo de parceria industrial para a produção do caça Sukhoi 25, um desenvolvimento altamente simbólico.

    Durante o encontro dos BRICS no Brasil em julho, o Banco de Desenvolvimento do grupo, cuja criação foi anunciada em 2012, pode tomar forma e oferecer uma alternativa aos financiamentos pelo FMI e pelo Banco Mundial, sempre relutantes em mudar o funcionamento das suas regras de financiamento para dar mais peso às economias emergentes e suas moedas, além do dólar.
    Finalmente, há um aspecto importante da relação entre a Rússia e a OTAN que escassamente é comentado na mídia mas que é muito revelador do estado de dependência em que o "Ocidente" se encontra enquanto retira as suas tropas do Afeganistão. Desde 2002, a Rússia concordou em cooperar com os países ocidentais para facilitar a logística das tropas no teatro afegão. A pedido da OTAN, Moscou autorizou o trânsito de equipamentos não-letais para a ISAF (Força de Assistência à Segurança Internacional), por via aérea ou terrestre entre Dushanbe (Tajiquistão), Uzbequistão e Estônia, através de uma plataforma multimodal em Oulianovk, na Sibéria. Isso não é nada menos do que transportar todos os suprimentos para milhares de homens que operam no Afeganistão, entre os quais estão toneladas de cerveja, vinho, tortas, hambúrgueres, alface fresca, todos transportados por aeronaves civis russas, desde que as forças ocidentais não têm ativos de ar suficiente para suportar uma implantação militar dessa magnitude. O acordo OTAN-Rússia de outubro 2012 amplia a cooperação para a instalação de uma base russa no Afeganistão com 40 helicópteros onde pessoal afegão é treinado na luta antidroga que o Ocidente abandonou. A Rússia continua a recusar-se a permitir o trânsito, através do seu território, de equipamentos pesados, o que tem-se constituído em grave problema para a OTAN no momento da retirada de suas tropas. Na verdade, eles não podem viajar por terra via Kabul-Karachi por causa de ataques a comboios pelos talibãs. Sendo impossível o caminho pelo norte (Rússia), o equipamento pesado voa de Cabul para os Emirados Árabes, sendo então enviado para portos europeus, o que quadruplica o custo da retirada. Para o governo russo, a intervenção da OTAN no Afeganistão tem sido um fracasso; mas, sua retirada precipitada, antes do final de 2014, vai aumentar o caos e afetar a segurança da Rússia, podendo causar um ressurgimento do terrorismo.

    A Rússia também tem importantes acordos com o Ocidente no campo dos armamentos. O mais importante é provavelmente o assinado com a França para a fabricação de duas operadoras de helicóptero para seus arsenais por US $ 1,3 bilhões euros. [5] Se o contrato for cancelado com as sanções, a França deve reembolsar quantias já pagas, bem como pagar penas contratuais, e perderá milhares de empregos. O pior é, provavelmente, a perda de confiança, do mercado, na indústria de armamento francêsa, como observado pelo Ministério da Defesa russo.

    Não nos esqueçamos de que, sem a intervenção da Rússia, os países ocidentais nunca seriam capazes de chegar a um acordo com o Irã sobre não-proliferação nuclear, ou com a Síria sobre o desarmamento químico. Esses são fatos sobre os quais os meios de comunicação ocidentais estão silenciosos. A realidade é que, por causa de sua arrogância, sua falta de conhecimento da história, sua falta de jeito, o bloco ocidental precipitou a desconstrução sistemática da ordem mundial unipolar e oferece, numa bandeja, para a Rússia e para a China, apoiadas pela Índia, pelo Brasil, pela África do Sul e por muitos outros países, uma "janela de oportunidades" para reforçar a unidade de um bloco alternativo. A evolução estava-se movendo para a frente, mas lenta e gradualmente (ninguém quer dar um pontapé no formigueiro e. de repente, desestabilizar o sistema global); mas, de repente, tudo está andando mais rápido e a interdependência está mudando as regras do jogo.

    Sobre o encontro do G20 em Brisbane, será interessante ver como o México posiciona-se, após os encontros do G7 em Bruxelas em junho, e o dos BRICS no Brasil em julho. A situação é muito fluida e irá evoluir rapidamente, o que exigirá grande flexibilidade diplomática. Se o G7 persistir em sua intenção de marginalizar ou excluir a Rússia, o G20 pode desintegrar-se. O México, apanhado nas redes do TLCAN [Tratado de Livre Comércio de América do Norte - nt] e do futuro TPP [Trans-Pacific Partnership - nt], deve escolher entre afundar com o Titanic do Ocidente ou adotar uma linha independente, mais em harmonia com os seus interesses como uma potência regional com ambições globais, aproximando-se dos BRICS.
    Tradução
    Marisa Choguill

    aqui:http://www.voltairenet.org/article183552.html

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