domingo, 22 de abril de 2018

Seguir o chefe, mesmo que se chame Donald Trump

por José Goulão

O sofrimento das crianças vende audiências e os terroristas sírios fazem-no até ao cadáver. Por cá, Costa e Marcelo assobiam marchas militares e seguem o chefe. Restam-nos a vergonha e o nojo.



Fotografia do documentário de Vanessa Beeley sobre os «capacetes brancos», segundo a agência SANA, que cita Beeley como tendo posto a descoberto que o grupo é uma criação propagandística criado por James Le Mesurier, ex-oficial de informações militares britânico.
Fotografia do documentário de Vanessa Beeley sobre os «capacetes brancos», segundo a agência SANA, que cita Beeley como tendo posto a descoberto que o grupo é uma criação propagandística criado por James Le Mesurier, ex-oficial de informações militares britânico. CréditosFonte: Beirut Press
 

Riam Dalati é um produtor de informação internacional da circunspecta BBC britânica, a trabalhar como enviado especial na Síria desde 2012. Em 11 de Abril, enquanto o mundo dito «informado» e «civilizado» esperava que ilustres democratas como Trump, May e Macron ajustassem contas com os autores do «grande massacre químico de Duma», que teria provocado um número tão indefinido de vítimas que cabe algures entre 50 e 500, a paciência de Dalati esgotou-se:

«Estou enojado e cansado de ver activistas e rebeldes usar cadáveres de crianças para forjar cenas emotivas para consumo ocidental. E depois interrogam-se sobre as razões pelas quais jornalistas põem em causa partes da narrativa» – escreveu ele no Twitter, acompanhando as palavras com imagens ilustrativas do conteúdo da mensagem.

O tweet esteve pouco tempo exposto, antes de se sumir nos subterrâneos censórios da rede, o que não impediu a reprodução da mensagem à velocidade da luz, através da internet. É certo que não chegou aos consumidores da informação digna e com chancela de qualidade que a põe a salvo de qualquer risco de contaminação pela «propaganda russa», mas despertou milhões para uma realidade cada vez mais difícil de esconder.

Em tweet anterior, Riam Dalati já mostrara o seu inconformismo perante as versões oficiais postas a circular sobre o que acontecera em Duma, desmontando então a foto do «último abraço», a chocante imagem com que os «Capacetes Brancos», destacamento dos serviços secretos britânicos, agitaram a opinião pública mundial. Os cadáveres de duas crianças mortas em andares separados de um prédio que desabou em Duma – como testemunham fotos captadas imediatamente a seguir à tragédia – foram depois colocados lado-a-lado, em posição de dramático abraço, para as fotos captadas no local de recolha e identificação das vítimas. É difícil qualificar adequadamente os seres humanos capazes de tais práticas necrófilas.

Os frequentadores do jornalismo sério, profissional e independente já tinham posto os olhos numa extraordinária reportagem do enviado da BBC, dada a conhecer em 13 de Novembro passado, na qual expôs minuciosamente, sem margem para dúvidas nem espaço para teses conspirativas, abundantes provas de que as potências da NATO, tão expeditas em bombardear arsenais químicos sem libertar um átomo de veneno para a atmosfera, estavam a mobilizar os próprios meios militares para dar fuga e encaminhar para novas regiões de acolhimento os terroristas do Estado Islâmico derrotados em Raqqa, o seu quartel-general na Síria ocupada. «O segredo sujo de Raqqa» é o título dado por Dalati ao seu trabalho.

Outro profissional da comunicação, o norte-americano Tucker Carlson da Fox News, por sinal uma das estações de televisão mais favoráveis a Donald Trump, levou a peito a frase de Orwell segundo a qual «a liberdade é também a capacidade de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir» e foi incapaz de se conter ao cabo de tantas certezas oficiais e académicas sobre Duma. Desabafou em directo:

«Todos os génios que dizem que Assad matou essas crianças saberão o que estão a dizer? Claro que não sabem. Estão a inventar. Não fazem ideia nenhuma do que aconteceu».

Também de nacionalidade norte-americana, o enviado especial da One America News Network (OAN) ao «massacre de Duma», Pearson Sharp, expôs frontalmente, perante as câmeras, os resultados da sua investigação no terreno: vagueou pelas ruas, entrevistou mais de 40 pessoas escolhidas ao acaso, visitou residências, hospitais, variados locais públicos e não viu nem ouviu nada que indiciasse a existência de um ataque químico. Vale a pena vê-lo e ouvi-lo:


Poderia continuar esta caminhada, de caso em caso, de profissional em profissional. Citar os vídeos e as fotos testemunhando que, nas zonas sírias controladas por terroristas, «moderados» ou não, há lugares onde as crianças são treinadas a simular os efeitos de ataques químicos, numa espécie de concursos em que são distinguidas as que melhor interpretam, por exemplo, os espasmos da agonia; ou então dar voz às declarações de pessoas que participaram nessas encenações, identificando-se a elas próprias nos vídeos em que foram figurantes.

Para muitos, através do mundo, a verdade destas mentiras montadas para não deixar esmorecer a guerra tornou-se um facto admissível, ou mesmo inquestionável.

Para muitos outros subsiste o natural cepticismo. Os efeitos da tese da teoria da conspiração são fortes e duradouros. Além disso, a guerra de propagandas é inerente aos conflitos militares, muito mais em situações, como a da Síria, onde se enfrentam, agora directamente, as mais poderosas potências mundiais.

A posição cúmplice de Portugal: lamentável, confrangedora e ultrajante

 

Há que distinguir, porém, entre o cidadão comum, certamente mais dependente da comunicação social que lhe chega sem fazer qualquer esforço, daqueles que têm outros níveis de responsabilidade política e social, como os deputados, os ministros, o primeiro-ministro, o Chefe de Estado.

É lamentável que a maioria dos eleitos da Assembleia da República tenham dado como confirmada a história do suposto ataque químico de Duma, apenas com base na versão dos «Capacetes Brancos», e não se informassem mais pluralmente antes de votar – assumindo como dogma as posições belicistas da NATO e da União Europeia, como seu braço civil.

É confrangedor que o primeiro-ministro António Costa tenha permitido que o Chefe de Estado envolvesse o governo na sua grotesca e submissa declaração de cumplicidade com uma agressão militar ilegal; e que, não contente com isso, tenha adoptado o mesmo tom subserviente na sua própria declaração. Como se estivesse a penitenciar-se aceitando humildemente, e como merecidos, os puxões de orelhas que, pelos vistos, recebeu por não ter expulsado diplomatas russos na sequência da história de venenos e espiões que cheira a aldrabice de uma ponta à outra.

É ultrajante e abusivo para os portugueses que o Presidente da República, também renomado professor de Direito, tenha associado Portugal ao mais descaradamente ilegal acto de guerra praticado por aqueles a quem qualificou como «amigos e aliados», corresponsabilizando-se, deste modo, por um acto criminoso contra um país e um povo soberanos que viola o direito internacional da forma mais grosseira possível.

Maioria de deputados, governo e Presidente da República assumiram-se assim como cúmplices de um acto fora-de-lei na cena internacional; acataram, sem reticências, pretextos e alegações que ou já se revelaram inquestionáveis mentiras ou carecem de investigação por organismos credíveis.

À hora a que o Chefe de Estado proferiu a profissão de fé validando as razões da agressão contra a Síria já tinha obrigação de saber que os agressores mentiram deliberadamente: os locais alvejados não guardavam armas químicas, ao contrário do invocado, porque não consta que deles tenha brotado sequer um átomo de veneno para as imediações.

A irresponsabilidade de Marcelo Rebelo de Sousa ao abusar da palavra em nome dos seus concidadãos foi mais longe: envolveu o país num acto de guerra que, se tivesse corrido de acordo com os fins e segundo as circunstâncias descritas pelos autores, provocaria, então sim, um autêntico ataque químico susceptível de arrasar todas as formas de vida em redor.

Um parênteses: a guerra humanitária de Theresa May

 

Tratou-se, portanto, de um atentado de terrorismo de Estado praticado contra a Síria, hipocritamente em nome dos direitos humanitários do povo sírio, através de uma cruzada para atenuar «o seu sofrimento», como beatificamente sentenciou Theresa May, a primeira-ministra britânica. Que tem como marido e conselheiro um gestor de topo do Capital Group, fundo de investimento que possui cerca de dez por cento da Lockheed Martin, gigante da indústria da morte e fabricante dos mísseis de cruzeiro JASSM, que se estrearam neste acto piedoso contra território sírio, assim gerando um merecido reforço de lucros a quem os fabrica e financia. Cada unidade desses mísseis custa a modesta quantia de milhão e meio de euros. E cada acção da Lockheed Martin valorizou-se 2,3% na primeira sessão de bolsa a seguir ao dia do bombardeamento.

Da Cimeira das Lajes à actualidade, vamos de mal a pior

 

Para a História, e para que se interpretem objectivamente eventuais acontecimentos vindouros que poderão não ocorrer por «azar» ou ser «obra do acaso», fica o facto de as autoridades portuguesas em funções terem conseguido ultrapassar, em cota de desprezo pelo direito internacional, o comportamento das que, há 15 anos, arrastaram o país para a conivência com a invasão terrorista do Iraque. Nesse caso, a guerra assentou em mentiras, mas foi suportada por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU; nos dias que correm, a guerra baseia-se em mentiras, trava-se sem mandato das Nações Unidas e mesmo contra a Carta das Nações Unidas. Dentro das atitudes condenáveis, o país foi levado de mal a pior.

A escassos dias das celebrações do 44º aniversário da Revolução de Abril, Portugal surge enrodilhado numa teia vergonhosa e perigosa de ilegalidade internacional, com expressões terroristas; uma teia tecida pela NATO e pela União Europeia, assente na habitual invocação cínica dos direitos humanos, da liberdade e da democracia. Valores reduzidos um pouco mais a pó, dia após dia, mercê de tão vigorosos como permanentes espezinhamentos.

Esqueçam tudo quanto eventualmente ouviram dizer de mal a Macron, May, Juncker, Merckel, Marcelo, Costa e muitos outros parceiros garbosamente «atlantistas» e «europeístas», a propósito de Donald Trump; e que possam soar como condenações, discordâncias, até reparos irónicos, manifestações de dissidência, acusações contundentes sobre a pessoa e a conduta do presidente norte-americano em exercício. Não passam de exercícios políticos inconsequentes, palavras ditadas pelo oportunismo do politicamente correcto, afinal sem conteúdo nem verdadeira acrimónia.

A partir de agora, porém, quaisquer reparos críticos ao presidente norte-americano dirigidos pelos seus «amigos e aliados» terão, logo que proferidos, tanta consistência como as verdades oficiais em torno do ataque químico em Duma, das tentativas de liquidação dos Skripal, ou dos arsenais químicos aniquilados pelos mísseis que consumaram a agressão de 14 de Abril contra a Síria, provavelmente o prólogo de algo mais substancial e catastrófico que paira agora um pouco mais ameaçador sobre o planeta. O grupo naval do porta-aviões norte-americano «Harry S. Truman» saiu há poucos dias de Norfolk, provavelmente em direcção às imediações da Síria, pelo que ainda são necessárias algumas semanas antes de estar operacional para a nova missão. Qual será?

Coisa pacífica e pacificadora não será, por certo. Porém, digníssimos dirigentes como Macron, May, Merckel, Rajoy, Tusk, Orban, Costa e Marcelo não precisam de se preocupar nem de se desviar das ocupações diárias, por exemplo cortar décimas do défice, salários de quem trabalha, direitos de cidadania.

Todos sabem, de cor e salteado, o que fazer quando a altura chegar: tal como agora, basta-lhes seguir o chefe, ainda que o chefe de turno se chame Donald Trump.

aqui:https://www.abrilabril.pt/internacional/seguir-o-chefe-mesmo-que-se-chame-donald-trump

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