terça-feira, 28 de abril de 2015

A cegueira da União Europeia face à estratégia militar dos Estados Unidos

Os responsáveis da União Europeia enganam-se completamente acerca dos atentados islamistas na Europa e as migrações para a União de gente fugindo das guerras. Thierry Meyssan mostra aqui que tudo isto não é a consequência acidental dos conflitos no Médio-Oriente alargado e em África, mas sim um objectivo estratégico dos Estados Unidos.

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Os dirigentes da União Europeia encontram-se súbitamente confrontados com situações inesperadas. Por um lado, atentados ou tentativas de atentados perpetrados, ou preparados, por indivíduos que não pertencem a grupos políticos identificados; por outro lado um afluxo de migrantes, via mar Mediterrâneo, dos quais vários milhares morrem às suas portas.
Na ausência de análise estratégica, estes dois acontecimentos são considerados a priori como não tendo relação entre si e são tratados por administrações diferentes. Os primeiros recaem sobre os serviços de Inteligência e da polícia, os segundos sobre os serviços de alfandega e da Defesa. Ora, eles têm no entanto uma origem comum: a instabilidade política no Levante e em África.

 

A União Europeia privou-se dos meios para compreender


Se as academias militares da União Europeia tivessem feito o seu trabalho de casa, elas teriam estudado nos últimos quinze anos, a doutrina do «big brother» norte-americano. Com efeito, desde há longuíssimos anos, o Pentágono publica todo o tipo de documentos sobre a «teoria do caos» copiada do filósofo Leo Strauss. Há ainda alguns meses, um funcionário que já deveria ter sido aposentado há mais de 25 anos, Andrew Marshall, dispunha de um orçamento de 10 milhões de dólares anuais para realizar pesquisas sobre este assunto [1]. Mas nenhuma academia militar da União estudou seriamente esta doutrina e as suas consequências. Tanto porque é uma forma de guerra bárbara e também porque ela foi concebida por um mestre pensador das elites judias norte-americanas. Ora, está-se a ver, os Estados Unidos-que-nos-salvaram-do-nazismo não podem preconizar tal tipo de atrocidades [2].

Se os políticos da União Europeia tivessem viajado um pouquinho, não apenas no Iraque, na Síria, na Líbia, no Corno de África, na Nigéria e no Mali, mas também na Ucrânia, eles teriam visto com os seus próprios olhos a aplicação desta doutrina estratégica. Mas, eles contentaram-se em vir falar num prédio da Zona Verde em Bagdade, num palanque em Tripoli ou na praça Maidan de Kiev. Eles ignoram aquilo que as populações vivem e, a requisição do seu «Grande Irmão-big brother» fecharam muitas vezes as suas embaixadas de tal modo que se privaram de ter olhos e ouvidos no local. Melhor, eles subscreveram, sempre a requisição do seu «Grande Irmão», embargos, de modo que nenhum homem de negócios pudesse ir, nunca mais, até aos locais testemunhar o que acontecia por lá.

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Um número indeterminado de migrantes morreu no Mediterrâneo. Por vezes, as vagas depositam corpos nas praias italianas ou os controlos das alfandegas apreendem uma embarcação cheia de cadáveres.

 

O caos não é um acaso, é o objectivo


Contrariamente ao que disse o presidente François Hollande, a migração de Líbios não é a consequência de uma «falta de acompanhamento» da operação «Protector unificado», mas o resultado pretendido por esta operação na qual o seu país desempenhou um papel de líder. O caos não se instalou porque os «revolucionários líbios» não se puseram de acordo entre si após a «queda» de Muammar el-Kadafi, ele era o objectivo estratégico dos Estados Unidos. E estes conseguiram atingi-lo. Não houve uma «revolução democrática» na Líbia, jamais, mas sim uma secessão da Cirenaica. Jamais houve uma aplicação do mandato da Onu visando «proteger a população», mas o massacre de 160.000 Líbios, três quartos dos quais civis, sob os bombardeamentos da Aliança (dados da Cruz-Vermelha Internacional).

Eu lembro-me, antes de me juntar ao governo da Jamahiriya árabe Líbia, ter sido solicitado para servir de testemunha aquando de uma reunião em Tripoli entre uma delegação dos EUA e representantes líbios. Durante esta longa reunião, o chefe da delegação dos EU explicou aos seus interlocutores que o Pentágono estava pronto a salvá-los de uma morte certa, mas exigia que o Guia lhe fosse entregue. Ele acrescentou que, quando el-Kaddafi estivesse morto, a sociedade tribal não conseguiria aceitar uma nova liderança antes de, pelo menos, uma geração, o país seria então mergulhado num caos que jamais havia experimentado. Eu relatei esta conversação em numerosas ocasiões e não parei, desde o linchamento do Guia, em outubro de 2011, de predizer aquilo que acontece hoje em dia.

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Leo Strauss (1899-1973) era um especialista da filosofia política. Ele formou à sua volta um pequeno círculo de alunos, dos quais a maior parte trabalharam posteriormente para a secretaria da Defesa. Eles formaram uma espécie de seita e inspiraram a estratégia do Pentágono.

 

A «teoria do caos»


Quando, em 2003, a imprensa norte-americana começou a referir a «teoria do caos», a Casa Branca ripostou evocando um «caos construtivo», insinuando que se iriam destruir estruturas de opressão para que a vida pudesse fluir em liberdade. Mas jamais Leo Strauss, nem o Pentágono até então, haviam usado esta imagem. Pelo contrário, segundo eles, o caos seria tal ordem que nada aí se pudesse estruturar, para além da vontade do Criador da Ordem nova, os Estados Unidos [3].

O princípio desta doutrina estratégica pode ser resumido assim : o modo mais simples para pilhar os recursos naturais de um país, durante um longo período, não é de o ocupar, mas o de destruir o Estado. Sem Estado, nada de exército. Sem exército inimigo, não há nenhum risco de derrota. Portanto, o objectivo estratégico dos militares dos E.U. e da aliança que ele dirige, a Otan, é exclusivamente o de destruir os Estados. O que acontece às populações atingidas não diz nada a Washington.

Este projeto é inconcebível para os europeus que, desde a Guerra Civil Inglesa, ficaram convencidos pelo Leviathan (Leviatã-ndT) de Thomas Hobbes, que é talvez preferível renunciar a algumas liberdades, ou até mesmo aceitar um Estado de tirania, do que ficar mergulhado no caos.

 

A União Europeia nega a sua cumplicidade nos crimes E.U.


As guerras no Afeganistão e no Iraque custaram já a vida a 4 milhões de pessoas [4]. Elas foram apresentadas perante o Conselho de Segurança como respostas necessárias «em legítima defesa», mas sabe-se agora que haviam sido planificadas bem antes do 11-de-Setembro num contexto muito mais amplo de «remodelagem do Médio-Oriente Alargado», e que as razões evocadas para as desencadear não foram senão fabricações propagandísticas.
É costume reconhecer os genocídios cometidos pelo colonialismo europeu, mas poucos são aqueles que actualmente admitem estes 4 milhões de mortos, apesar dos estudos científicos que o atestam. É que os nossos pais eram «maus», mas nós somos «bons» e não podemos ser cúmplices destes horrores.
É comum fazer troça deste pobre povo alemão que manteve até ao fim a sua confiança nos seus dirigentes nazistas e não tomou consciência, senão após a sua derrota, dos crimes cometidos em seu nome. Mas nós agimos exactamente da mesma forma. Conservamos a nossa confiança no nosso «Grande Irmão» e não queremos ver os crimes em que ele nos envolve. Seguramente, os nossos filhos se rirão de nós...

 

Os erros de interpretação da União Europeia



- Nenhum dirigente europeu-ocidental, absolutamente nenhum, ousou publicamente considerar que os refugiados do Iraque, da Síria, da Líbia, do Corno de África, da Nigéria e do Mali estejam fugindo de ditaduras, ao invés do Caos em que nós voluntariamente, mas inconscientemente, mergulhamos os seus países.
- Nenhum líder da europeu-ocidental, absolutamente nenhum, ousou publicamente considerar que os atentados «islamitas» que atingem a Europa são a extensão das guerras do «Médio-Oriente Alargado», mas que são comanditados por aqueles que, igualmente, comanditaram o caos nesta região. Nós preferimos continuar a pensar que os «islamitas» querem atacar os judeus e os cristãos, quando a imensa maioria das suas vítimas não são nem judias nem cristãs, mas muçulmanas. Com sobranceria, nós os acusamos de promover a «guerra de civilizações», quando o conceito foi forjado no seio do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos e é estranho à sua cultura [5].

- Nenhum dirigente europeu-ocidental, absolutamente nenhum, ousou publicamente considerar que a próxima etapa será a «islamização» das redes de distribuição de drogas como no modelo dos Contras da Nicarágua vendendo as drogas na comunidade negra da Califórnia com a ajuda e sob as ordens da CIA [6]. Nós decidimos ignorar que a família Karzai retirou a distribuição da heroína afegã à máfia Kosovar e a encaminhou para o Daesh(Exército Islâmico- ndT) [7].

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A Secretária de Estado-adjunta, Victoria Nuland, e o embaixador norte-americano em Kiev,Geoffrey R. Pyatt. Numa intercepção telefónica revelada pelos partidários da legalidade, ela indica-lhe querer que « se f...a União Europeia» (sic).

 

Os Estados-Unidos jamais quiseram que a Ucrânia se junte à União


As academias militares da União Europeia não estudaram a «teoria do caos», porque elas a isso foram interditas. Os poucos professores e pesquisadores que se aventuraram neste campo foram severamente sancionados, enquanto a imprensa qualificava de «conspiracionistas» os autores civis que a tal se interessavam.

Os políticos da União Europeia pensavam que os acontecimentos da praça Maidan eram espontâneos e que os manifestantes queriam deixar a órbita autoritária da Rússia e entrar no paraíso da União. Ficaram estupefactos aquando da publicação da conversa da sub-secretária de Estado, Victoria Nuland, evocando o seu controlo secreto dos acontecimentos e afirmando que seu objectivo era o de «f...a União» (sic) [8]. A partir daquele momento, eles não compreenderam mais nada do que se estava a passar.

Se eles tivessem permitido a livre pesquisa em seus países, eles teriam percebido que, ao intervir na Ucrânia e aí ter organizado a «mudança de regime», os Estados Unidos asseguravam-se que a União Europeia permaneceria ao seu serviço. A grande angústia de Washington, após o discurso de Vladimir Putin na Conferência sobre a Segurança em Munique de 2007, é que a Alemanha perceba onde está o seu interesse : não com Washington, mas sim com Moscovo [9]. Ao destruir progressivamente o Estado ucraniano, os Estados Unidos cortam a principal via de comunicação entre a União Europeia e a Rússia. Vós podeis virar e revirar, em todas as direções, a sucessão dos eventos, e não conseguireis achar-lhe um sentido diferente. Washington não deseja que a Ucrânia se junte à União, como o atestam as declarações da Srª. Nuland. O seu único objectivo é transformar este território numa zona de circulação perigosa.

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A 8 de maio de 2007 (data do aniversário da queda do regime nazi alemão), em Ternopol (oeste da Ucrânia), grupúsculos nazis e islamistas criaram uma pretensa Frente anti-imperialista afim de lutar contra a Rússia. Organizações da Lituânia, da Polónia, da Ucrânia e da Rússia participaram nela, entre os quais separatistas islamistas da Crimeia, da Adigueia, do Daguestão, da Inguchétia, da Cabardino-Balcária, da Carachai-Cherquéssia, da Ossétia, de Chechénia. Não podendo lá estar presente devido às sanções internacionais, Dokka Umarov, fez com que aí lessem a sua mensagem. A Frente é dirigida por Dmytro Yarosh, que se tornou actualmente conselheiro no ministério da Defesa ucraniano.

 

A planificação militar do E.U.


Eis-nos pois face a dois problemas que se desenvolvem muito rapidamente : os atentados «islamistas» apenas começaram. Os migrantes triplicaram no Mediterrâneo em apenas um único ano.
Se a minha análise fôr exacta, nós vamos assistir ao longo da próxima década aos atentados «islamitas» ligados ao Médio-Oriente Alargado e à África copiados como atentados «nazis» relacionadas com a Ucrânia. Descobriremos, então, que a Al-Qaida e os nazis ucranianos estão conectados desde o seu congresso conjunto, em 2007 em Ternopol (Ucrânia). Na realidade, os avós de uns e de outros conheciam-se desde a Segunda Guerra Mundial. Os nazis haviam, então, recrutado muçulmanos soviéticos recrutados para lutar contra Moscovo (foi o programa de Gerhard von Mende no Ostministerium). No fim da guerra, uns e outros foram recuperados pela CIA (o programa de Frank Wisner com a Amcomlib) para realizar operações de sabotagem na URSS.

As migrações no Mediterrâneo, que de momento são apenas uma questão humanitária (200 000 pessoas em 2014), vão continuar a crescer até se tornarem um sério problema económico. As recentes decisões da União de ir afundar os navios dos traficantes na Líbia não servirão para erradicar as migrações, mas para justificar novas operações militares para manter o caos na Líbia (e não para o resolver).

Tudo isso causará grandes problemas à União Europeia, que parece hoje em dia um refúgio de paz. Está fora de questão para Washington destruir este mercado que lhe continua a ser indispensável, mas interessa-lhe certificar-se que ele jamais se colocará em posição de poder competir face a si, e limitar assim o seu desenvolvimento.

Em 1991, o presidente Bush-pai encarregou um discípulo de Leo Strauss, Paul Wolfowitz (então desconhecido do grande público), de elaborar uma estratégia para a era pós-soviética. A «Doutrina Wolfowitz» explicava que a supremacia dos Estados Unidos sobre o resto do mundo exige, para ter êxito, de controlar à rédea curta a União Europeia [10]. Em 2008, aquando da crise financeira nos Estados Unidos, a presidente do Conselho Económico da Casa Branca a historiadora Christina Rohmer, explicou que a única maneira de salvar os bancos era fechar os paraísos fiscais de países terceiros, depois causar perturbações na Europa de modo a que os capitais fugissem para os Estados Unidos. Em última análise, Washington propõe-se hoje em dia a fundir o NAFTA e a União Europeia, o dólar e o euro, e a rebaixar os Estados-Membros da União ao nível do México [11].
Infelizmente para si próprios, nem os Povos da União Europeia, nem os seus dirigentes têm a consciência do que o presidente Barack Obama lhes prepara.
Tradução
Alva


[1] «Depois de 42 anos, Andy Marshall deixa o Pentágono», Rede Voltaire, 26 de janeiro de 2015.
[2] “Selective Intelligence” (“Inteligência Direcionada”-ndT), Seymour Hersch, The New Yorker, May 12, 2003.
[3] “Stumbling World Order and Its Impacts” (Ing-«Ordem Mundial Vacilante e as suas Repercussões» - ndT), by Imad Fawzi Shueibi, Voltaire Network, 5 April 2015.
[4] « 4 millions de morts en Afghanistan, au Pakistan et en Irak depuis 1990 » (Fr- «4 Milhões de mortos no Afeganistão, Paquistão e no Iraque desde 1990»- ndT), par Nafeez Mosaddeq Ahmed, Traduction Maxime Chaix, Middle East Eye (Royaume-Uni), Réseau Voltaire, 11 avril 2015.
[5] “O "choque de civilizações"”, Thierry Meyssan, Tradução Resistir.info, Rede Voltaire, 4 de Junho de 2004.
[6] Dark Alliance, The CIA, the Contras and the crack cocaine explosion ( Ing- «Aliança Maléfica, A Cia, os Contras e a explosão do tráfico de cocaina»- ndT), Gary Webb, foreword by Maxime Waters, Seven Stories Press, 1999.
[7] « La famille Karzaï confie le trafic d’héroïne à l’Émirat islamique » (Fr- A Família Karzai e o tráfico de heroína para o Emirado islâmico»-ndT), Réseau Voltaire, 29 novembre 2014.
[8] « Conversation entre l’assistante du secrétaire d’État et l’ambassadeur US en Ukraine » (Fr- «Conversa entre a assistente do secretário de Estado e o embaixador dos E.U. na Ucrânia»- ndT), par Andrey Fomin, Oriental Review (Russie), Réseau Voltaire, 7 février 2014.
[9] “O carácter indivisível e universal da segurança global”, Vladimir Putin, Tradução Resistir.info, Rede Voltaire, 11 de Fevereiro de 2007.
[10] O documento mantêm-se classificado, mas o seu conteúdo foi revelado em « US Strategy Plan Calls For Insuring No Rivals Develop» (Ing-«Plano Estratégico E.U. Exige a Certeza que Nenhum Rival se Desenvolva»-ndT), por Patrick E. Tyler, New York Times de 8 de março de 1992. O quotidiano publica igualmente extensos extractos na página 14 : «Excerpts from Pentagon’s Plan : "Prevent the Re-Emergence of a New Rival"» (Ing-«Excertos do Plano do Pentágono: “Previna-se a Reemergência de um Novo Rival”»- ndT). Informações suplementares são publicadas em «Keeping the US First, Pentagon Would preclude a Rival Superpower» (Ing- «Mantendo os E.U. na Dianteira, o Pentágono Impediria um Rival como Superpoder»- ndT) por Barton Gellman, The Washington Post de 11 de março de 1992.
[11] « Attaque contre l’euro et démantèlement de l’Union européenne » (Fr- « Ataque ao Euro e desmantelamento da União Europeia»- ndT), par Jean-Claude Paye, Réseau Voltaire, 6 juillet 2010.

aqui:http://www.voltairenet.org/article187425.html

domingo, 26 de abril de 2015

O sistema bancário ocidental é um castelo de cartas – A estupidez das sanções contra a Rússia


por Valentim Katasonov

No final de 2014 Paul Craig Roberts, conhecido economista americano e cofundador da reaganeconomics, disse ao King World News que a Rússia podia reagir às sanções lançando aquilo a que chamou um "ultimato imprevisto" contra o Ocidente a fim de repelir o ataque e exercer retaliação. Uma das cartas de trunfo da Rússia é a sua pequena dívida externa.

Alguns dados sobre a dívida externa da Rússia (em milhares de milhões de dólares):

01-01-2013 636,42
01-01-2014 728,86
01-07-2014 732,78
01-01-2015 598,68
Segundo os padrões mundiais, um nível aceitável de dívida é da ordem dos 35% do PIB. Para comparação:   a dívida média externa excede os 100% nos países da União Europeia. É igual a 100% do PIB nos Estados Unidos. A dívida é muito mais alta nos países dos "milhares de milhões dourados". Ultrapassa os 400% na Suíça e na Grã-Bretanha.

A parte de leão da dívida russa cai no Ocidente (dívida pública, bancos, e setor não financeiro da economia). Os bancos norte-americanos e europeus são os maiores detentores de títulos russos. As sanções contra a Rússia foram impostas em março de 2014. Desde então, o estado russo, os bancos e as empresas russas têm pago regularmente os juros das suas dívidas. Segundo Paul Craig Roberts, a Rússia tem base legal e política para tomar a decisão de suspender os pagamentos numa situação continuada de força maior. A Rússia foi atingida por uma "força superior". Isso liberta-a da sua obrigação perante um acontecimento ou circunstância fora do seu controlo. De notar que não se trata de recusar o cumprimento das obrigações, mas de adiar os pagamentos. A base política é o facto de que foi desencadeada uma guerra económica contra a Rússia. Paul Craig Roberts diz que a prova recente dessa guerra em curso está na queda do rublo. Ele acha que a queda brusca do rublo não é uma coincidência fatal mas antes uma ação planeada enquanto se trava a guerra. A queda da divisa põe em causa o cumprimento das obrigações para com os prestamistas ocidentais. Roberts tem a certeza de que a queda do rublo pode e deve ser considerada como "força superior" para justificar a suspensão dos pagamentos, até que o rublo recupere a sua posição.

Segundo ele, "os russos nem sequer têm de entrar em incumprimento. Podem dizer apenas, "Este ano não pagamos. Pagamos depois. Pagamos quando o rublo estabilizar". "Podemos perceber qual o impacto no Ocidente dessa decisão dos russos", diz o cofundador da reaganeconomics. Ele acredita que o impacto será significativo, em especial no caso dos bancos europeus. Na sua opinião, "o sistema bancário europeu irá abaixo porque esses bancos estão terrivelmente descapitalizados. Alguns deles têm empréstimos à Rússia que quase absorvem toda a sua base de capital". E acrescenta, "Podemos entender o impacto no Ocidente dessa decisão dos russos, dadas todas as ligações e interligações – quando o Lehman Brothers foi abaixo teve o mesmo efeito adverso tanto na Europa como nos Estados Unidos". Os economistas americanos dizem, "Estive a ouvir as notícias hoje e havia toda aquela gente farisaica muito feliz por finalmente terem encostado a Rússia à parede, "a Rússia está feita" e a Rússia estava acabada e "em breve será um estado vassalo da América como lhe compete". E eu estava a ouvir estas parvoíces e comecei a pensar, "Como é que as pessoas podem ser tão absolutamente estúpidas?" Mas são, e são igualmente estúpidas em Washington. E enquanto isso, dentro deste processo, Eric, podemos ver a Rússia a lançar ações inesperadas que deitam abaixo o castelo de cartas ocidental…".

Acredito que o sistema bancário ocidental parece realmente um castelo de cartas. No final de 2014, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) em Basileia publicou os dados mais recentes apresentando a posição de bancos estrangeiros na Rússia e dos bancos russos no estrangeiro e lançando alguma luz sobre os possíveis prejuízos para as partes envolvidas (os sistemas bancários) caso a Rússia introduza uma moratória nos pagamentos da dívida externa.

Quadro 1
Indicadores do custo do risco para os bancos estrangeiros na Rússia
(a 1 de julho de 2014, em milhares de milhões de dólares)
País
Total de todos os riscos
Riscos principais
(crédito e outros empréstimos)
Outros riscos
EUA 109,6 26,1 85,3
França 59,1 47,8 11,3
Grã-Bretanha 45,2 14,3 30,9
Itália 34,0 18,4 6,3
Alemanha 20,8 17,7 3,1
Japão 20,3 18,4 1,9
Holanda 15,7 15,7 -
Suécia 9,1 9,1 -
Espanha 1,4 1,2 0,2
Outros países 48,0 31.4 16,6
  363,2 207,6 155,6
Como se vê no Quadro 1, os bancos norte-americanos detêm a quota principal de todos os riscos para bancos estrangeiros na Rússia, em 30 por cento. As percentagens para os bancos de outros países principais são: França – 16,2%; Grã-Bretanha – 12,4%; Itália – 9,4%; e Alemanha – 5,7%. No conjunto, os nove países listados no quadro acima detêm 86,6 por cento de todos os riscos. A grande maioria de todos os riscos para os bancos estrangeiros na Rússia é responsável pelo risco de prejuízos associados ao não pagamento dos créditos emitidos a bancos russos. A quota geral desses riscos eleva-se a 57,2 por cento. Os restantes 42,8 por cento caem na categoria de "outros riscos" (também chamados de "riscos potenciais" ou "passivos contingentes"). Estes incluem possíveis prejuízos para bancos estrangeiros que decorrem das suas obrigações ao abrigo de garantias bancárias e instrumentos financeiros derivados. Tomando apenas em consideração os prejuízos resultantes da suspensão dos pagamentos da dívida pela Rússia, os principais perdedores irão ser (do maior para o mais pequeno): a França, os Estados Unidos, a Itália, o Japão, a Alemanha, a Holanda, a Grã-Bretanha e a Suécia. Paul Craig Roberts tem razão quando diz que os bancos europeus são os que mais sofrerão. Os meios de comunicação mencionam os bancos europeus mais vulneráveis, incluindo o UniCredit italiano e o Société Générale francesa. Também são mencionados alguns bancos austríacos como, por exemplo, o Raiffeisen Bank International com o seu portfólio russo de 10,8 mil milhões de euros (no início de 2015).

Os bancos europeus não estão ameaçados apenas pela Rússia, mas também pela Grécia, pela Itália, pela Espanha, por Portugal e pela Irlanda. Os tesouros destes países emitiram títulos no valor de muitos milhares de milhões de euros. Estão a perder o seu valor de dia para dia. Isso está a corroer a estabilidade de bancos gigantescos. Segundo o Banco de Compensações Internacionais, os riscos potenciais dos bancos alemães no conjunto da Grécia, da Irlanda e de Portugal ultrapassam os 220 mil milhões de euros. Os bancos franceses correm riscos de 150 mil milhões de euros.

No Outono de 2014, o Banco Central Europeu publicou os resultados de um cuidadoso exame ao longo do ano sobre a resiliência e as posições dos 130 maiores bancos da área do euro. A análise abrangente – que consistiu na avaliação da qualidade de ativos (AQR) e um teste de stress dos bancos com vista ao futuro – encontrou uma escassez de capital de 25 mil milhões de euros em 25 bancos. Doze dos 25 bancos já tinham coberto a sua falta de capital, aumentando o capital em 15 mil milhões de euros em 2014. Os bancos com falta de capital têm de preparar planos de capitalização no prazo de duas semanas depois da publicação dos resultados. Os bancos terão até nove meses para cobrir a falta de capital. A verdade é que este relatório atraiu poucas atenções na Europa e no resto do mundo. O Banco Central Europeu e outras instituições da UE fazem o melhor possível para esconder o verdadeiro estado de coisas.

O problema é que os novos testes são muito suaves. O Centro para Gestão de Risco da Suíça, em Lausana, sugeriu estimativas mais rigorosas. Por exemplo, os seus especialistas colocam a falta de capital, apenas em 37 bancos, em quase 500 mil milhões de euros, em oposição aos 6 mil milhões de euros do relatório do BCE, na sua amostra de 130. Este teste mais rigoroso mostra como o valor do mercado de ativos se comporta sob tensão. Há outras estimativas mais próximas da que é dada pelos especialistas do Centro de Lausana. A falta de capital que os prestamistas enfrentam, desde o JPMorgan Chase & Co. ao HSBC Holdings Plc pode chegar aos 870 mil milhões de dólares, segundo as estimativas da Alliance Bernstein Ltd.

Resumindo tudo isto, podemos chegar à conclusão de que o sistema bancário da União Europeia é muito menos estável do que o sistema bancário dos Estados Unidos. Segundo a investigação do ano passado, feita pelo Fundo Monetário Internacional, só 30% de 300 bancos europeus têm uma estrutura e reservas que garantam lucros a longo prazo, em comparação com 80% nos Estados Unidos. O sistema bancário europeu está preso por cordelinhos. Como diz Paul Craig Roberts – pode ir abaixo como um castelo de cartas. Basta que os russos introduzam uma moratória sobre os pagamentos da dívida. Se a Grécia se juntar a isso – o colapso é inevitável. É preciso ter em atenção que no mundo da finança internacional essas situações normalmente dão origem a um efeito de dominó. Se o sistema europeu entrar em colapso, os bancos dos Estados Unidos vão a seguir.

Lembremos a Grande Depressão dos anos 30. O pânico na bolsa de valores de Nova Iorque em 1929 atingiu rapidamente outros bancos americanos. Houve alguma estabilização em 1931 até que se seguiu outro golpe, ainda mais poderoso. Veio da Europa. Nessa altura, o processo foi provocado pelo colapso de um só banco – o Creditanstalt austríaco. Hoje poderá ser o Raiffeisen Bank International. Não posso deixar de concordar com Paul Craig Roberts que disse na sua entrevista que as pessoas em Washington que desencadearam a guerra económica contra a Rússia são absolutamente estúpidas.
11/Abril/2015
Do mesmo autor:


  • US External Debt and its Largest Foreign Holders

    O original encontra-se em www.strategic-culture.org/... . Tradução de Margarida Ferreira.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
  •  
  • aqui:http://resistir.info/financas/castelo_de_cartas_p.html 
  • quinta-feira, 23 de abril de 2015

    Verdades e mentiras sobre a Cimeira das Américas **

    por 
    Claudio Katz*

    Claudio Katz
    O ponto crítico da América Latina, actualmente, não se situa na resistência aos Estados Unidos. O maior problema radica na estabilização de modelos capitalistas adversos às aspirações das maiorias populares. A significativa soberania política alcançada pela América Latina nos últimos anos não é sustentável com orientações económicas regressivas. Só um caminho de ruptura total com o neoliberalismo, o protagonismo popular, a radicalização política e o confronto com a classe capitalista pode pavimentar o caminho até à Segunda Independência

    Os grandes meios de comunicação apresentaram a Cimeira do Panamá como o início de uma nova era. Ponderaram o fim da guerra fria e atribuíram a Obama uma postura de distensão oposta à belicosidade de Maduro. Também puseram em contraste a reintegração de Cuba na região com o isolamento da Venezuela e classificaram o encontro como um êxito da diplomacia estadunidense. Este diagnóstico foi explanado antes e depois do conclave, como se a reunião não tivesse trazido nada de relevante.

    Mas este relato omitiu que 33 dos 35 mandatários presentes rejeitaram a imputação à Venezuela de uma «ameaça à segurança estadunidense». Todos reclamaram a derrogação da decisão de Obama, que dispõe o bloqueio de bens e restrições de determinados cidadãos daquele país. Esta exigência foi feita em enfáticos discursos que nenhum parceiro do império contradisse. O próprio Obama preferiu retirar-se do plenário para evitar estas questões. Num quadro adverso os Estados Unidos teve que adiar a sua agenda.

    O LIBRETO E A REALIDADE

    Obama precisava de ganhar a polémica desencadeada pelo seu decreto contra a Venezuela, para retomar as iniciativas de hegemonia mundial. Garantir esse domínio foi o objectivo inicial da primeira Cimeira (Miami-1994) e do posterior lançamento da ALCA (Quebec-2001). A derrocada deste projecto em Mar de La Plata (2005) determinou o isolamento do gigante nortenho no último conclave (Cartagena-2012). A criação de novas organizações sem a presença estadunidense ((UNASUR-2008 e CELAC-2011) acentuou este retrocesso e incentivou o reconhecimento de Cuba.

    Depois de 53 anos, David derrotou Golias. O império não conseguiu vergar a revolução cubana, e Obama teve de libertar os cinco lutadores que mantinha presos. Raúl Castro inaugurou o regresso aos encontros presidenciais com uma categórica reclamação de imediata derrogação da ordem contra a Venezuela.

    Todas as teorias que contrapuseram o «novo realismo diplomático» de Castro ao «vetusto radicalismo discursivo» de Maduro ignoraram a liderança concertada que ambos os governos assumiram na batalha contra o decreto ianque. Esta unanimidade foi acompanhada de fortes discursos de outros mandatários.

    Nenhum dos Presidentes de direita (Colômbia, Peru e Paraguai) defendeu o ataque à Venezuela. Inclusive, os pequenos países do Caribe que Obama visitou antes da reunião rejeitaram o atropelo do Departamento de Estado dos EUA. O mesmo aconteceu com o Chile, a Costa Rica e o Uruguai que mantêm grandes distâncias em relação ao processo bolivariano.

    A decepção dos funcionários norte-americanos foi enorme, e os porta-vozes de 26 ex-presidentes de direita só atinaram uma «compra de vontades» por parte de Maduro. Como é natural não apresentaram nenhuma prova desse tráfico de influência.

    Ao Panamá chegaram todas as figuras do golpismo anti-chavista. Fizeram muito barulho mas tiveram pouco impacto sobre a Cimeira. Ficaram muito debilitados com o fracasso da sua última balbúrdia e não puderam responder com distúrbios à detenção dos conspiradores Leopoldo López e Antonio Ledezma.

    Também os líderes da contra-revolução cubana chegaram em massa de Miami, agora mascarados de «representantes da sociedade civil». Com essa maquillage retomaram o seu projecto de restaurar o velho status da ilha como casino, prostíbulo e entreposto de narcotráfico.

    A delegação dos gusanos [N. do T.: verme, nome que Fidel deu há muito aos contras de Miami] incluiu o próprio assassino de Che e ensaiou todo o tipo de provocações. Promoveram caçaroladas, gritarias frente às embaixadas, interrupções das conferências de imprensa e conflitos com os seguranças. Não conseguiram alterar o clima político da Cimeira.

    Obama recorreu aos sorrisos para lidar com a oposição generalizada ao seu decreto. Optou pela discrição e não conseguiu impedir a ausência de uma declaração final do encontro. Um borrão pejado de critérios neoliberais – com matérias de saúde, alterações climáticas e transferências de tecnologia – acabou no arquivo.

    Os grandes meios de comunicação omitiram estes dados. Viram apenas o que previamente tinham imaginado. Inverteram a realidade e apresentaram a derrota de Obama na Cimeira como se de um sucesso estadunidense se tratasse. Mantiveram a distorção informativa que caracteriza o seu trabalho e uma vez mais abandonaram qualquer resquício de profissionalismo jornalístico.

    ATITUDES E ARGUMENTOS

    O contraste dos projectos foi antecipado por um contraponto de atitudes. Obama desembarcou com um grande número de aviões e helicópteros no ar e automóveis blindados em terra. Esta demonstração não tinha qualquer proporção com as necessidades de segurança do mandatário. Serviu apenas para lembrar que o potencial destrutivo do império não é uma ficção de Hollywood.

    Em contrapartida, Maduro dirigiu-se de imediato ao bairro popular de Chorrillos, em homenagem às vítimas da última invasão dos marines dos EUA (1989). Recordou o derrube de um ditador designado pelos próprios estadunidenses e ondeou a bandeira panamiana num bairro esquecido.

    A mesma conduta adoptou Evo Morales durante a sua estadia. Proclamou que «estamos melhor sem a embaixada norte-americana» e refutou o mito de uma próxima «ajuda» norte-americana a Cuba. Destacou que o império devia indemnizar a ilha pelo acosso que lhe impôs durante meio século.

    O questionamento da ordem executiva contra a Venezuela dominou a Cimeira. O próprio Obama desqualificou a apresentação desse país como uma «ameaça» e justificou o decreto como uma formalidade burocrática. Mas não conseguiu explicar por que razão mantém essa disposição.

    A perigosidade da Venezuela é uma fantasia insustentável. O país não invadiu territórios alheios, não mantém guerras com os seus vizinhos e foi um activo promotor das negociações de paz da Colômbia. Contrariamente, os Estados Unidos fizeram bases militares no Peru, Paraguai, Colômbia e Antilhas, monitorizam os mares a partir do Comando Sul, em Miami, controlam os céus com radares de última geração, e apoiam o arsenal que os britânicos instalaram nas Malvinas.

    Além disso, o Pentágono espia descaradamente os diplomatas, funcionários e presidentes da região, intercepta correios electrónicos de todas as pessoas, e supervisiona os servidores da internet no estrangeiro. A Venezuela não desestabilizou qualquer governo, mas o imperialismo é o principal artífice dos golpes parlamentares, judiciais e policiais dos últimos anos.

    Os Estados Unidos não renunciaram às invasões. Também não se encontram «mais preocupados» com o Médio Oriente, a China e a Ucrânia do que com a América Latina. A ordem executiva contra a Venezuela é a primeira tentativa de escaladas de maior alcance.

    Os funcionários estadunidenses justificam a sua agressão com denúncias de violações dos direitos humanos. Mas não apresentam provas de qualquer índole. Ditam lições de democracia ocultando os recentes relatórios de torturas feitas pela CIA, a continuação de Guantánamo e a vigência da pena de morte no seu próprio território.

    Além disso, o Departamento de Estado evita qualquer comparação da Venezuela com as administrações de direita da região. Nenhuma acusação feita ao governo da Venezuela se compara aos assassínios nas Honduras, aos crimes no México ou às perseguições na Colômbia ou no Peru.

    A delegação económica estadunidense tentou recriar no Panamá um pequeno Davos tropical. Propiciou a presença de multimilionários estrelas de Wall Street nos foros empresariais e apresentou o lema da Cimeira («Prosperidade com equidade») como se fosse uma realidade em curso. Também não faltaram os elogios às empresas transnacionais que esmifram a população.

    Os peritos ianques exaltaram o capitalismo silenciando os sofrimentos que aquele sistema impõe a todos os despojados. Contrapuseram as desventuras dos governos «populistas» com os sucessos das administrações guiadas pelo mercado, sem falar da precarização laboral no Peru, do desastre das pensões no Chile ou da tragédia dos emigrantes da América Central.

    Os neoliberais exibiram o Panamá como um modelo de sucesso. Salientaram as torres que brotam por toda a cidade, omitindo o seu financiamento com dinheiro do narcotráfico. Alardearam o crescimento do istmo, sem mencionar a segmentação social, o trabalho informal de uma população condenada a duros trabalhos na construção e nos serviços de hotelaria.

    Todo o establishment exaltou o apelo de Obama a esquecer o passado e a falar do futuro. Os meios de comunicação puseram em contraste esse pragmatismo com as «lições de história» que ensaiaram os seus opositores. Desqualificaram a reivindicação de um Panamá na gesta de Bolivar que fez Maduro, e o legado de intervenções recordado por Raúl Castro.

    Mas esse desprezo mediático pelo passado, naturalmente, só ficou colado à América Latina. Os escribas do Norte nunca estendem essa perspectiva à trajectória dos Estados Unidos. Jamais gozam com os Pais Fundadores ou com a guerra travada contra o hitlerismo. A sua hostilidade para com a história só aparece quando essa revisão ilustra a continuidade da opressão imperial.

    OS LIMITES DE UMA CONTRA-OFENSIVA

    Os Estados Unidos arremetem contra a Venezuela para controlar a maior reserva petrolífera do planeta. Aquela potência utiliza, actualmente, a sua provisão de crude obtido de xisto betuminoso para desestabilizar o processo bolivariano, acentuando a depreciação internacional do combustível.

    Os Estados Unidos não toleram as alianças extra-regionais feitas por Chávez e Maduro. Também lhes custa tragar a vontade de resistir a uma confiscação petrolífera semelhante à que perpetraram no Iraque ou na Líbia.

    O confronto em curso é apresentado frivolamente como um conflito entre Obama e Maduro devido a um «choque de vaidades». Acusam o presidente venezuelano de exagerar a disputa para distrair a população das suas necessidades imediatas.

    Com esse tipo de balelas tentam mascarar o projecto estadunidense de dirigir os recursos naturais da América Latina. A apropriação da renda petrolífera venezuelana é o primeiro passo para uma recaptura generalizada de terras, águas e minerais do continente.

    Obama desenvolve este plano com uma nova colecção de cenouras e cacetes. Por isso negoceia com Cuba sem abandonar a beligerância. Reabrirá a embaixada na ilha, mas coloca grandes exigências para levantar o bloqueio.

    O presidente estadunidense fotografou-se com Raúl Castro, mas também reuniu com os gusanos de Miami. Complementou a sua retórica amigável com a protecção dos golpistas que adestra em Washington.

    Esta política repete a estratégia de negociar com o Irão sem fechar as portas ao bombardeamento. A mesma linha de intimidação que Obama mantém com os lobbies de Israel e da Arábia Saudita estende-se aos ultra-direitistas cubano-americanos. A sua estratégia é avalizada por Hillary Clinton e questionada pelos candidatos republicanos à presidência.

    Ambas as formações jogam no mesmo partido da plutocracia estadunidense, adaptando as suas políticas às necessidades daquele sistema. Mas, qualquer que seja o presidente que suceda a Obama, ele terá de lidar com as mesmas dificuldades para recuperar o terreno perdido no pátio traseiro.

    A primeira potência não conseguiu reverter no Panamá o golpe sofrido em Mar del Plata e Cartagena. Desta vez não caiu a ALCA, mas a garantia da Aliança do Pacífico será inviável sem uma recomposição do poder geopolítico. A Organização dos Estados Americanos (OEA) perdeu a funcionalidade e a Cimeira não deu origem a nenhuma estrutura necessária para o império restaurar a sua supremacia.

    Também a direita latino-americana não saiu airosamente da reunião presidencial. Actualmente, muitos conservadores ensaiam uma reivindicação com discursos sociais, compromissos de assistencialismo e perfis juvenis. Proclamam a dissolução das ideologias, despolitizam as campanhas eleitorais, e enfatizam a centralidade da gestão.

    Esta estratégia convive com acções mais directas. Na Argentina levaram recentemente à promoção de um golpe judicial sob a bandeira de um procurador que esteve a trabalhar para Israel. No Brasil incentivam manifestações de rua para colocar a política externa do país em sintonia com a dos Estados Unidos. No México procuram perpetuar um estado de guerra social.

    Mas nenhuma destas acções alterou a realidade legada pelas rebeliões sociais que alteraram as relações de força, que forçaram as concessões dos capitalistas e reavivaram as questões nacionais e democráticas. Este processo continua aberto e inclui um passo em frente na consciência popular, o que limita a contra-ofensiva da direita.

    AS OBSTRUÇÕES INTERNAS

    A Cimeira corroborou o significativo nível de autonomia política alcançado pela América Latina. Mas essa maior independência coexiste com a estagnação de todos os projectos de integração económica.

    Enquanto se inauguram novas sedes de organismos regionais e se desencadeia uma grande retórica a favor da acção comum, as principais iniciativas de complementaridade económica adormecem. O anel energético, a infra-estrutura partilhada, a gestão conjunta das reservas, os sistemas cambiais coordenados e os fundos de estabilização monetária permanecem como simples propostas.

    A perpetuação da inserção internacional da América Latina como fornecedora de matérias-primas não é da exclusiva responsabilidade dos governos de direita. Este mesmo esquema de especialização exportadora, a agricultura intensiva, a mineração a céu aberto e maquias industriais também se verificam em administrações de sinal oposto.

    A assinatura de tratados de livre comércio também não é património exclusivo dos presidentes neoliberais. O governo do Equador negoceia um convénio do mesmo tipo com a Europa, e o Uruguai discute a implementação de tratados semelhantes.

    Além disso, todos fazem individualmente acordos com a China que agravam a primarização. Aceitam compromissos de exportações básicas e importações de manufacturas que não incluem obrigações de investimento produtivo ou transferência de tecnologia. Esta postura preserva as velhas fracturas entre países que privilegiam os interesses das suas burguesias locais nas negociações externas.

    Esta adaptação à ordem neoliberal global pode desembocar em traumáticas consequências se se confirmar uma alteração económica adversa ao panorama internacional. As matérias-primas já não aumentam, o crescimento travou e a valorização do dólar estimula a saída de capitais. Certos governos começam a implementar desvalorizações que antecipam agressões ao nível de vida popular.

    Mais perigosa, no entanto, é a guinada económica feita por vários governos de centro-esquerda. No Brasil, já aceitaram a agenda imposta pela Bolsa, designaram ministros seleccionados por grandes empresas e preparam programas de ajuste fiscal desenhados pela banca.

    Este curso de adaptação ao establishment desmoraliza a população e facilita a canalização do descontentamento para a direita. Em alguns países já se insinuam estas tendências, como resposta às frustrações geradas pelas vacilações do progressismo. Também se vislumbra uma tentação coerciva de presidentes que confundem as reivindicações populares com a desestabilização da direita.

    O ponto crítico da América Latina, actualmente, não se situa na resistência aos Estados Unidos. O maior problema radica na estabilização de modelos capitalistas adversos às aspirações das maiorias populares.

    A significativa soberania política alcançada pela América Latina nos últimos anos não é sustentável com orientações económicas regressivas. A experiência demonstra que as aspirações de autonomia decaem com a consolidação do poder burguês. Só um caminho de ruptura total com o neoliberalismo, o protagonismo popular, a radicalização política e o confronto com a classe capitalista pode pavimentar o caminho até à Segunda Independência.

    ALEGRIA NA OUTRA CIMEIRA

    Os grandes meios de comunicação registaram no Panamá a realização de uma importante Cimeira dos Povos. Nessa realidade confluíram movimentos sociais que, durante três dias, partilharam um intenso programa de debate anti-imperialista.

    Na inauguração desse acontecimento foi muito evidente por que razão o Panamá não é Miami. Houve múltiplas exigências ao império para que peça desculpas pela invasão de 1989 e indemnize as vítimas. Nas mesas de trabalho analisaram-se pedidos de longa data, como o levantamento do bloqueio a Cuba, a devolução de Guantánamo, a independência de Porto Rico e o fim da ocupação inglesa das Malvinas.

    O encontro reforçou a campanha mundial que reuniu milhões de assinaturas para exigir a derrogação do decreto contra a Venezuela. Em numerosas cidades do continente essa reclamação foi acompanhada de mobilizações e sublinhada a adesão de reconhecidos intelectuais.

    A Cimeira dos Povos consolidou uma tradição de reuniões paralelas aos conclaves presidenciais. Diferentemente do encontro oficial, o evento popular foi coroado com uma importante declaração final. Nesse encerramento rebentou uma onda de entusiasmo quando se percebeu o triunfo alcançado contra o decreto de Obama.

    Esse clima tornou-se o melhor barómetro para avaliar o que aconteceu no Panamá. Alcançou-se um êxito diplomático que avaliza as esperanças populares na América Latina.


    * Professor de Economia na Universidade de Buenos Aires, membro de Economistas de Esquerda

    ** Título da responsabilidade de odiário.info

    Este texto foi publicado em http://www.elciudadano.cl/2015/04/16/158748/retrato-de-las-americas-en-la-cumbre/

    Tradução de José Paulo Gascão.

    segunda-feira, 20 de abril de 2015

    A alternância e seus consensos

    por Daniel Vaz de Carvalho

     
    Matamo-nos a cantar os hinos do progresso ao compasso do batuque da agiotagem, 
    Oliveira Martins, "Portugal Contemporâneo". 

    O conservadorismo moderno está comprometido num dos exercícios intelectuais mais antigos que se conhecem:   a procura de uma justificação moral para o egoísmo. 
    John Kenneth Galbraith

    1 – AS POLITICAS RESPONSÁVEIS

    '.
    O capitalismo é a legalização da avareza e do egoísmo de que falava Galbraith. PS, PSD, CDS, os partidos do "arco da governação", a troika interna, proclamaram estas práticas como "políticas responsáveis".

    Mas responsáveis em quê e de quê?! Responsáveis pelo aumento da pobreza, do desemprego, da estagnação económica que já vai em década e meia, pelo crescimento das desigualdades, pela desindustrialização, pela assinatura de um "memorando" assumido como "ajuda", certamente à finança, mas consistindo num claro pacto de agressão à nossa soberania e ao nosso povo. As "políticas responsáveis" tornaram Portugal num dos países mais endividados da OCDE, a dívida pública e privada (famílias e empresas) ao estrangeiro ascendia no final de 2014 a 300 % do PIB.

    As grandes empresas apoderam-se dos serviços públicos, as suas taxas de lucro aumentaram em termos monopolistas e pela "flexibilidade laboral". As MPME vivem em permanente risco de falência devido à perda do poder de compra da população; o investimento em termos líquidos (descontando as amortizações) é negativo. O país tornou-se um fornecedor líquido de capitais: desde a criação da Zona Euro foram transferidos do país em 15 anos (2000 a 2014) 62 536 M€. Note-se que no mesmo período a Alemanha absorveu um total de 608 456 M€. [1] Os partidos da alternância fingem ignorar este facto e assentam a sua estratégia nas verbas que hão de vir da UE… fazem por ignorar o que sai.

    Com as "políticas responsáveis" de privatizações e "flexibilidade laboral" os défices, o endividamento, a pobreza nunca deixaram de crescer. Os serviços pioraram, os preços aumentaram, a redução de custos é feita não de investimento, mas à custa dos trabalhadores, para aumentar os lucros e a saída de capitais.

    Quando o PSD e CDS se afundam no descrédito, PS os substitui mantendo políticas idênticas. Quando o PS se afunda, o PSD-CDS substituem-no aprofundando as mesmas políticas "responsáveis" de obediência "às regras da UE". É a alternância. Nenhum destes partidos defende políticas de intervenção do Estado no campo económico: defendem a "economia de mercado", o neoliberalismo. A prática do PS com variantes de estilo é também uma política de direita.

     2 – CONSENSO SOBRE OS "MERCADOS" 

    '.A ideologia do mercado é uma dominante do consenso do "arco da governação". Quando no governo, o PS argumentava contra partidos à sua esquerda acusando com indisfarçável arrogância o PCP de ser contra o mercado. O jogo de palavras mostra uma tática de deflexão para fugir ao essencial: uma coisa são "os mercados" na assumida versão neoliberal – monopólios e finança especuladora – e outra o mercado, que existe sempre que haja produção mercantil e portanto também em socialismo dada a existência de cooperativas e mesmo MPME privadas. O PS critica o governo PSD-CDS por ser fundamentalista e por ir mais longe que a troika, mas não critica "os mercados" nem a troika.

    A ideologia da economia de mercado à qual tudo se tem se subordinar levou os países a uma crise que se prolonga há sete anos, sem fim à vista, com crises a serem pagas pelos trabalhadores, pois, segundo o seu consenso o que as provoca são salários altos e prestações sociais. O PS diz agora que é necessário aumentar a procura para reduzir o desemprego, o PSD e CDS diziam o mesmo na oposição.

    A teologia neoliberal impõe o dogma dos mercados. Mas os mercados não são as abstrações da "mão invisível", são instituições politicamente determinadas no sentido de favorecer a finança e o grande capital. Os "mercados" são o eufemismo para a especulação financeira e sobre bens essenciais, para a extração juros e de rendas monopolistas, além de uma arma do imperialismo para dominar os povos.

    A tese da "eficiência do mercado" permitiu às oligarquias apoderarem-se de partes crescentes da riqueza produzida, levando os países a intermináveis crises em prejuízo dos trabalhadores e da sociedade em geral. Esta traficância foi alcançada com a cumplicidade de partidos ditos "socialistas".

    A dívida pública veiculada pelos critérios neoliberais tornou-se a mais descarada forma de espoliação dos povos. A ineficiência do Estado não chega a merecer o nome de dogma, mas de reles mentira atendendo aos atos de má gestão e fraude, que com impressionante frequência vêm a público, com as instituições de regulação e fiscalização a nada verem.

    De 2011 a 2014 Portugal pagou de juros 28.528,8 M€, face a 34.646,2 M€ de défice orçamental acumulado, porém a dívida aumentou 58 700 M€ desde final de 2010! Os excedentes orçamentais ficam hipotecados aos juros, envolvendo o país num círculo vicioso.

    PSD e CDS não querem falar em renegociação da dívida, pois isso pode "traumatizar os mercados" (espantosos estes eufemismos!) o PS também não. Esta convergência manifestou-se claramente no voto dos três partidos contra uma proposta do PCP para a renegociação da dívida , debate sobre as consequências da permanência no euro e sobre a saída da moeda única e controlo público da banca.

    O Banco de Portugal não passa na realidade de uma delegação do BCE, a "regulação" é semelhante quer o governador seja do PS, como Vítor Constâncio ou Carlos Costa, um banqueiro escolhido em consenso, que se mostrou mais preocupado na flexibilização laboral do que em fazer o que lhe competia no caso BES. E como é possível colocar à frente de um órgão de regulação (o que quer que isto queira dizer) gente que convictamente é pela desregulação dos "mercados"?!

    3 - CONSENSOS SOBRE A UE 

    '.
    Quando o PS diz que os problemas do país se têm que resolver na UE, a conclusão está inserida nas próprias premissas da questão: os nossos problemas radicam na UE e nos absurdos tratados que pressurosamente assinaram, escudando-se em promessas totalmente infundadas e falsas. Como na história do Pinóquio, a festa dos meninos foi só para os levar a transformarem-se em animais de trabalho.

    Tudo o que poderia beneficiar Portugal, mesmo tímidas medidas como a intervenção pública na economia, o controlo da banca, fiscalização financeira, choca com as imposições dos tratados europeus. O consenso da troika interna está patente nas profissões de fé europeístas e de "continuarmos a honrar os nossos compromissos".

    Se o primeiro-ministro "passa por ser na UE o campeão da união bancária", o PS pede meças com os seus impulsos federalistas, de reforço do Parlamento Europeu e de dotar a Zona Euro de capacidade de governação própria ao nível legislativo e executivo.

    Defesa justificada com argumentos que as políticas em curso totalmente negam: promover os Direitos Humanos (ex. Líbia, Síria, Ucrânia…), uma mundialização sustentável e com regras (as da finança predadora!), o fim dos paraísos fiscais, (livre transferência de capitais e "competitividade fiscal").

    PSD e CDS entregam o país aos interesses monopolistas e aos predadores financeiros com o argumento de "deixar a economia funcionar" (TAP, PT, Estaleiros de Viana, etc.). O PS afirma querer na UE o primado da política sobre os interesses financeiros. Pelos vistos o PS tem muitas ideias sobre a política europeia, mas concretamente quase nenhumas sobre medidas para Portugal.

    A posição relativamente à Grécia mostra outro consenso apenas mascarado com palavras diferentes. O primeiro-ministro, como caixa-de-ressonância da oligarquia alemã, vai mais longe que o suserano alemão e disse que a posição do governo grego era "uma criancice" (o PR não lhe ficou a trás). Esta linguagem da direita troglodita foi depois objeto de ajustes, mas mostra bem o nível de decadência da UE. António Costa, mais comedido disse que apoiava as negociações da Grécia "dentro das regras europeias". Puro oximoro! Um absurdo, pois foram estas "regras" que levaram Portugal, a Grécia, a Itália, a Irlanda, ao descalabro e – estão a levar a França e a Bélgica.

    Quando o BCE tem 60 000 M€ por mês (!) para a finança predadora prosseguir a especulação, mas chantageia miseravelmente o povo grego, está tudo dito acerca das ilusões do PS sobre a UE e suas instituições, mas também do alcance da social-democracia (mesmo a do Syriza) acerca da sua capacidade e determinação quanto a "transformações" a favor dos povos na UE.

    As suas propostas do PS radicam, na ilusão de que "ter uma voz" na "Europa" (a sua) irá mudar alguma coisa. Não quer entender que a UE, que não existe como tal, o que existe é um espaço neocolonial de repressão social, submetido ao imperialismo alemão. Basta escutar o ministro das Finanças alemão, Schauble, para compreendermos o que há a esperar da dita UE.

    Tudo indica que depois de uma série de quiméricas promessas como no passado, o PS vai fazer como na rábula da "Ida à guerra" do ator Raul Solnado. Pergunta-lhe o comandante:
    — Então onde está o prisioneiro?
    — Ele não quis vir, meu capitão…

    4 – OUTROS CONSENSOS

    As divergências entre PS e PSD-CDS não são as políticas da troika, mas de se ir "para além da troika". Os comentários sobre "ir mais longe que a troika" tendo em vista os resultados e as sucessivas revisões não passam de "diálogos do absurdo". Ficariam bem em Ionesco, mas que o povo português dispensaria.

    Espalha-se a ilusão de que na UE, no dizer do eurodeputado Carlos Zorrinho (Z-News, 07/janeiro/2015), "finalmente o mito da austeridade regeneradora caiu. Abriu-se um novo ciclo. É preciso que os recursos sejam colocados ao serviço da economia real e não da especulação financeira." Tudo isto sem pôr em causa "as regras da UE".

    As políticas conjuntas da "troika interna" de que faz parte no campo laboral a direção da UGT, levaram a uma queda brutal da contratação coletiva. Há 15 anos realizavam-se entre 350 a 400 convenções por ano abrangendo 2 milhões de trabalhadores, em 2013, apenas 97 convenções abrangendo 186 mil trabalhadores (CGTP). A cartilha das regras da UE torna-nos um país de baixos salários, precariedade, sem crescimento económico, vergado à escravidão do endividamento.

    PS e PSD-CDS competiram em "flexibilizar" as leis laborais, revisões atrás de revisões para satisfazer os "mercados" e ser atrativo para o capital, mas que para o FMI e UE – nunca são suficientes – mostram uma completa distorção quanto aos interesses nacionais: não é o capital que tem de se tornar vantajoso para o país é o país que tem de se tornar vantajoso para o capital.

    Não adiantam vagas intenções que nada de essencial mudam, mascarando a realidade com promessas de diminuir o ritmo da austeridade e interpretações "inteligentes" e "flexíveis" de tratados iníquos e estúpidos (por impraticáveis democraticamente) confiando na boa vontade dos oligarcas.

    Os três partidos estão também unidos na defesa de um inconcebível tratado em termos de soberania e desenvolvimento, a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento [2] , que contraria tudo o que o PS diz defender, colocando os países na situação de colónia das transnacionais. A perda de soberania de que estes três partidos são responsáveis, leva à inviabilidade da democracia, anulando a vontade e os interesses populares pela intimidação e pela chantagem.

    Na interpelação ao ministro Pires de Lima, um deputado do PS diz: "é necessário que o PSD e CDS deixem de falar em 2011, temos é de pensar para além de 2015". O ministro Poiares Maduro deixa claro aquilo com o que o PS pode contar: "os portugueses já não aceitam facilmente políticos que mudam o comportamento devido à proximidade das eleições. O Portugal 2020 nunca pode ser planeado em função das eleições" [3]

    É este discurso fascizante – e dentro das regras europeias… – que o PR de forma melíflua também faz para garantir a alternância neoliberal com o PS.

    Dirigentes e deputados do PS não se afastam deste "paradigma" e defendem um consenso com PSD após as eleições.

    Para o PSD-CDS a doutrina não difere da defendida por Mussolini "a verdadeira história do capitalismo começa agora (...) há que abolir o Estado coletivista, tal como a guerra nos transmitiu pela necessidade das circunstâncias e voltar ao estado manchesteriano", ou seja disciplinamento da força de trabalho e liberdade total para os capitalistas. Isto explica a tendência do liberalismo a derivar rumo ao fascismo. [4] O que não impede largos sectores responsáveis no PS de abertamente defenderem um governo ligado ao PSD, o "bloco central".

    O objetivo do PS é instituir "um capitalismo bom", "de rosto humano". Os erros, as crises, a corrupção (os crimes ignoram-se), são devidos a comportamentos inadequados e incompetência. Querer mudar comportamentos sem alterar as causas que os motivam não passa de alquimia política. E a alquimia – como se sabe – era um misto de superstição e escroqueria.

    A alternância comprometeu o futuro do país. Romper com estas políticas implica que seja posta em prática uma política de esquerda e a patriótica defesa da nossa soberania, em suma, que o socialismo tenha lugar.

    Notas
    [1] A União Europeia e o Euro serviram para enriquecer a Alemanha , Eugénio Rosa,
    [2] TTIP, O tratado de comércio livre EUA-UE: a grande golpada , Vaz de Carvalho,
    [3] Poiares Maduro, Diário Económico, 18/02/2015
    [4] Origem e declínio do capitalismo , Jorge Beinstein,

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

    aqui:http://resistir.info/v_carvalho/alternancia_abr15.html

    Chomsky: mídia norte-americana encobre a culpa dos EUA no conflito ucraniano

    Todas as grandes empresas norte-americanas de mídia replicam e divulgam de forma diligente tudo aquilo que as autoridades dos EUA querem que o público saiba sobre os assuntos globais, contou o filósofo e ativista norte-americano Noam Chomsky em entrevista ao canal de televisão RT.

    A ideia de que o Ocidente, e em particular os EUA, pode estar implicado na deterioração da situação na arena internacional, como, por exemplo o conflito ucraniano ou as tensas relações com o Irã, é simplesmente inaceitável nas principais publicações norte-americanas, diz.

    “Aquilo, que nos EUA é chamado de “comunidade internacional”, é representado pelos próprios EUA e todos os países que seguem a sua política. Tomemos, como exemplo, a questão do direito do Irã de desenvolver uma política nuclear própria. A reação natural da comunidade internacional é a de protestar contra isso. Mas quem faz parte dessa comunidade internacional? Aqueles que os EUA reconhecem como tais” — diz Noam Chomsky.

    Acusando os outros, em particular a Rússia, de promover guerras de informação, os políticos norte-americanos não conseguem assumir o fato de eles mesmos utilizarem a informação como uma arma, acredita o filósofo.

    O chamado “sonho americano” e a democracia americana estão em um “declínio muito sério”, os indicadores de mobilidade social nos EUA são os piores entre os países mais ricos do mundo.

    As autoridades dos EUA procurar seguir os princípios democráticos apenas nas aparências, enquanto, na realidade, os preceitos democráticos não são realizados e grande parte da população tem seus direitos violados, alega Chomsky.


    aqui:http://br.sputniknews.com/opiniao/20150418/802563.html

    sábado, 18 de abril de 2015

    Sobre a natureza humana – uma crítica marxista



    A Verdade - [Glauber Ataide]
     Marx e Engels afirmam no Manifesto do Partido Comunista que a burguesia apresenta seus próprios interesses de classe como se fossem interesses gerais, de toda a sociedade.

    Para justificar o capitalismo como o melhor dos mundos possíveis, ela recorre, no campo teórico, a todas as formas de artifícios ideológicos, a fim de legitimar sua exploração sobre a classe trabalhadora. Entre estes, um dos mais importantes é o seu conceito de "natureza humana", com o qual ela pretende demostrar como este sistema é o mais "natural" e o mais "adequado" à essência do homem.

    Para explicar a competição e a falta de ética nas relações sociais e humanas, ela aponta para o reino animal e nos diz que somos o que vemos ali: caças e predadores. Apenas os mais aptos sobrevivem. Na linha do darwinismo social, ela nos lembra pelo Discovery Channel e pelo Globo Repórter que aquilo que acontece nas savanas – leões caçando zebras e tantos outros animais engolindo outros – é o que acontece no mercado e dentro das corporações.

    Mas o que está por trás desse conceito de "natureza humana" é apenas uma determinada concepção metafísica do real, a qual universaliza as relações sociais dos homens como são agora e explica seu ser no mundo como efetivação de uma suposta "natureza humana" estática, eterna, imutável, criada por um ente superior ou resultado evolutivo de um determinismo biológico mecanicista. Seja como for, o resultado é sempre o mesmo: uma "natureza humana" herdada espiritual ou geneticamente, a respeito da qual nada se pode fazer a não ser aceita-la.

    Como o humano se forma

    Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels afirmam que "o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que todos os homens devem estar em condições de viver para poder 'fazer história'. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter moradia, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam que haja a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material".

    Ora, mas para produzir esta vida material o homem precisa se relacionar com outras pessoas, pois ele não caça, planta ou constrói sozinho. Dessa forma, ele não cria primeiro, em isolamento, uma imagem de si mesmo, dos outros e do mundo para só depois sair a este mundo e se relacionar com as pessoas. Ele já está em relação com as pessoas quando começa a fazer essas representações.

    Assim, continuam os autores, "a produção de ideias, de representações e da consciência está, no princípio, diretamente vinculada à atividade material e ao intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio espiritual entre os homens, aparecem aqui como emanação direta do seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc., de um povo".

    O homem não tem uma "essência" pré-determinada que lhe condiciona a agir em todas as épocas e em todas as formas de organização social sempre do mesmo modo. A consciência do homem reflete a organização de sua vida material, das relações de produção em que ele já se encontra envolvido quando começa a pensar sobre si, sobre o mundo e os outros (embora ela não se limite a ser apenas um "reflexo"). Daí Marx e Engels afirmarem que "não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que determina a consciência".

    Primeiro o homem existe, depois se define

    Um século mais tarde, inspirado nesta descoberta fundamental do marxismo, o filósofo francês Jean-Paul Sartre também contesta que o homem seja pré-determinado, possuindo uma "natureza humana" que lhe condicione de forma determinística a ser apenas aquilo que se já é, tolhendo-lhe da liberdade de ser de outro modo. O homem não tem uma essência que precede sua existência, mas, pelo contrário, sua existência precede sua essência. Ele assim se expressa:

    "O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la." (Jean-Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo, itálico nosso).

    Para Sartre, a ideia de uma "essência" humana pressupõe que exista um Deus que a tenha concebido e que, em seus moldes, tenha criado o homem. Mas se não existe nenhum Deus, o homem primeiro existe, está no mundo, vive, e só a partir disso é que se define.

    A natureza humana "científica" ou "darwinista"

    Se uma determinada concepção da natureza humana pressupõe a existência de um ser supremo para criá-la, como afirma Sartre, a crítica filosófica à existência de Deus – como feita em Kant e Feuerbach, por exemplo – é suficiente para desconstruir todo o edifício a partir de seus alicerces. Mas e quando tais concepções parecem se apoiar em teorias "científicas objetivas", como o darwinismo, que descartam a ideia de Deus?

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    Nestes casos é preciso lembrar que não existe conhecimento "científico objetivo" da realidade, ou seja, conhecimento imediato do mundo. Todo conhecimento é mediado (o oposto de imediato), passando também por um processo de construção social. A categoria de mediação, que Marx trouxe do sistema hegeliano, teve importante papel em sua crítica a alguns aspectos do darwinismo.

    Em uma carta endereçada a Engels, datada de 18 de junho de 1862, Marx faz uma aguda observação sobre as descobertas de Charles Darwin, seu contemporâneo. Marx e Darwin chegaram a trocar cartas, nas quais expressavam mútuo respeito e admiração, sendo que Marx até mesmo enviou uma cópia de O Capital para Darwin. Na primeira vez que leu Sobre a origem das espécies, o filósofo alemão ficou positivamente impressionado. Mas cerca de um ano depois, ao reler a obra, ele percebeu algo que lhe escapara num primeiro momento:

    "É notável como Darwin reconhece nas plantas e nos animais a sua sociedade inglesa com sua divisão do trabalho, concorrência, desenvolvimento de novos mercados, 'invenções' e a 'luta pela vida' Malthusiana. É o bellum omnium contra omnes de Hobbes, e lembra Hegel na 'Fenomenologia', onde a sociedade civil é vista como 'reino animal espiritual', enquanto que em Darwin o reino animal figura como sociedade civil." (1) (tradução nossa)

    Como se pode ver, Marx identificou diversas determinações sociais que atuaram como mediações no pensamento darwiniano. A suposta "natureza humana" que alguns ideólogos burgueses tentam derivar do darwinismo não passaria, portanto, de um anacronismo: seria apenas a projeção do capitalismo e do burguês mesquinho do século XIX para o processo de evolução dos seres vivos e do gênero humano. Mas chamamos a atenção aqui para o fato de que Marx não rejeitou o darwinismo. Muito pelo contrário. Em outra carta a Engels ele se referiu ao darwinismo como a "base natural de nosso pensamento". (2) No entanto, sua apropriação das descobertas de Darwin não foi incondicional ou acrítica.

    A essência humana

    O homem do capitalismo é apenas o homem do capitalismo – ele não é expressão de uma "natureza humana" eterna, imutável. Em uma outra forma de organização social, em que as coisas sejam produzidas não para dar lucro, mas sim para satisfazer necessidades humanas, em que as relações sejam pautadas pela cooperação e não pela competição, a consciência do homem também refletirá esta nova forma de organização. Em suas Teses sobre Feuerbach, na tese VI, Marx afirma: "Mas a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais".

    O homem possui, contudo, certas características que têm perpassado todas as formas de organização social, e que provavelmente ainda existirão no novo homem do comunismo. (3) Mas este homem perene, das civilizações tanto passadas quanto futuras, se define não por aquilo que lhe aproxima dos animais, mas sim por aquilo que lhe é específico, distintivo (pois uma definição é uma delimitação). Por isso, Sócrates dizia que a essência do homem é a razão, Aristóteles lhe chamava de animal político (zoon politikon) e Freud dizia que o homem é o único ser capaz de sublimar suas pulsões, isso é, de dizer "não" aos seus impulsos biológicos. Neste último sentido, o que é especificamente humano não é exatamente o impulso para matar ou destruir, por exemplo, mas a capacidade de dizer "não" a estes impulsos e reelaborá-los no uso das mais altas construções sociais.

    A história do homem é a história da superação de suas determinações biológicas, de sua elevação acima da natureza bruta, da vitória da civilização sobre a barbárie. E é nesta direção que acena, no horizonte, o próximo passo desse processo civilizatório: a instauração da sociedade comunista. Se a opressão do homem pelo homem tem sido uma constante em grande parte da história do mundo, também nunca estiveram ausentes o desejo de liberdade e a luta por sua emancipação. O homem é um ser aberto ao mundo, e sempre será o que ele fizer de si mesmo.

    Glauber Ataide, graduando em Filosofia pela UFMG

    Notas

    1.A íntegra desta carta se encontra em Marx-Engels Werke, Band 30, Dietz Verlag Berlin, 1974, p. 249. "Es ist merkwürdig, wie Darwin unter Bestien und Pflanzen seine englische Gesellschaft mit ihrer Teilung der Arbeit, Konkurrenz, Aufschluß neuer Märkte, „Erfindungen" und Malthusschem „Kampf ums Dasein" wiedererkennt. Es ist Hobbes' bellum omnium contra omnes, und es erinnert an Hegel in der „Phänomenologie", wo die bürgerliche Gesellschaft als „geistiges Tierreich", während bei Darwin das Tierreich als bürgerliche Gesellschaft figuriert."

    2.No discurso diante do túmulo de Karl Marx, Engels ainda comparou seu amigo com Darwin, dizendo que "assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana".

    3.É possível entrever um exemplo dessa continuidade do homem das civilizações tanto passadas quanto futuras quando Marx analisa a arte grega e sua capacidade de ainda hoje nos proporcionar prazer estético.

    aqui:http://www.diarioliberdade.org/mundo/batalha-de-ideias/55396-sobre-a-natureza-humana-%E2%80%93-uma-cr%C3%ADtica-marxista.html

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