sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Quem está a ganhar

por JOSÉ MANUEL PUREZA


Os ricos vivem da existência de pobres. Os poucos muito ricos vivem da existência de muitos muito pobres. Em 1654, o Padre António Vieira disse-o de forma frontal e imorredoura: "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."

Esta semana, 360 anos depois do sermão de António Vieira aos peixes, o mesmo país que o expulsou por ser uma voz incómoda para os poderes instalados tomou conhecimento de que, em pleno coração da crise que está a condenar vidas em série ao desespero, as 25 maiores fortunas portuguesas foram valorizadas em 16% ao longo do último ano. Elas somam atualmente 16,7 mil milhões de euros, 3,3 mil milhões mais que o ano passado. 25 fortunas valem hoje 10% do produto nacional, 1,6% mais que há um ano. Estes números ensinam-nos três coisas sobre este momento da vida do país.

A primeira é a de que, entre nós, a riqueza tem uma base ca-da vez mais especulativa e improdutiva.
Américo Amorim, o homem mais rico de Portugal, tinha perdido a liderança das fortunas no ano transato. Pois bem, foi a subida vertiginosa do valor das ações que detém no Banco Popular, na Galp Energia e na corticeira com o seu nome de família que fez que a sua riqueza duplicasse num só ano. Soares dos Santos, Guimarães de Mello e Belmiro de Azevedo, que se seguem no ranking a Américo Amorim, têm fortunas alicerçadas também na distribuição, na banca e nos movimentos em mercados financeiros, não na produção ou transformação de bens.

O segundo ensinamento é o de que no Portugal da crise há milhões que estão a ser condenados a perder o pouco que têm e há uns poucos que estão a aumentar o muito que já tinham. Os 3,3 mil milhões acrescentados à riqueza de 25 pessoas em Portugal num ano mostram à evidência que a pergunta insistente a quem exige um caminho alternativo à austeridade - "sim, mas onde é que vai buscar o dinheiro?" - deve ser feita, e cada vez mais, a quem acha que a austeridade é o caminho, sob a forma de "pois, mas para on-de é que vai o dinheiro?".

 O terceiro ensinamento é o de que a riqueza em Portugal está cada vez mais concentrada, ao mesmo tempo que a pobreza está cada vez mais disseminada. Em Portugal a pobreza democratiza-se, ao passo que a riqueza se aristocratiza a cada momento que passa. A história dos 25 que hoje dominam a riqueza do país é feita de combate à concorrência (e não do seu reforço), de luta por posições monopolistas (tantas vezes com a cumplicidade do Estado), de fusões e tomadas de capital - frequentemente acompanhadas de cruzamentos familiares efetivos - tanto intra como intersetoriais. Não há em Portugal, nunca houve, capitalismo popular, ele é um embuste.

Na semana em que o Governo aprovou o Orçamento mais agressivo das pessoas de que há memória no tempo da nossa democracia, ficámos a conhecer o rosto e o nome de quem está a ganhar mais com esta política. Essa coincidência no tempo traz-nos de volta a reflexão incómoda do Padre António Vieira: "A diferença que há entre o pão e os outros comeres é que para a carne há dias de carne, e para o peixe dias de peixe, e para as frutas diferentes meses do ano; porém, o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos."

aqui:http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3559646&seccao=Jos%E9%20Manuel%20Pureza&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco&page=1

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

a jornalista Ana Leal e o caso da censura pela TVI da denúncia de corrupção no Processo Siresp

"Viva la muerte" remix

por JOSÉ MANUEL PUREZA

 O défice de produção de conhecimento, o défice de centralidade da ciência na atividade económica e na elaboração de políticas públicas, o défice de formação de espírito crítico amadurecido têm hoje em Portugal uma gravidade dramática e crescente. E perante estes défices, como perante os défices das contas públicas, o Governo adota políticas que os agravam em vez de os diminuírem.

Segundo a insuspeita OCDE, em 2010 os gastos médios per capita em ensino superior e ciência eram, em Portugal, de 10 500 dólares face aos 13 500 de média nos países membros da organização. O mesmo estudo da OCDE indica que a despesa com o ensino superior em Portugal estava já então abaixo da média da organização e era suportada em mais de 30% pelas famílias, através de propinas que têm um claro efeito de eliminação de acesso à universidade de uma parte sensível da sociedade portuguesa.

Se estes números dão conta de um défice e de um atraso nacionais que exigem reformas estruturais de reforço do Estado social na sua dimensão de serviço público de ensino superior e ciência, o Orçamento para 2014 mostra, ao invés, um Governo a diminuir ainda mais e drasticamente a sua responsabilidade nesta área. Somando os cortes no financiamento de universidades e politécnicos com as cativações de 15% e com o aumento dos descontos sobre os salários, as instituições do ensino superior público contarão no próximo ano com 850 milhões de euros - menos 250 milhões do que há apenas três anos - dos quais 330 serão propinas pagas pelas famílias. Portugal torna-se assim o país europeu em que o copagamento do ensino superior pelas famílias é mais alto e um dos países deste espaço em que o financiamento público passa a ser mais baixo. Nas universidades, a liberdade de escolha, na modalidade "ou pagas ou sais", está em alta.

Acrescente-se a este corte drástico no financiamento do ensino superior as limitações nas contratações de novos professores para as universidades e o congelamento da contratação de doutorados para o Sistema Científico e Tecnológico Nacional. Acrescente-se ainda a diminuição assinalável no volume de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento e o incumprimento sistemático dos vínculos contratuais do Governo com as instituições mais sólidas do tecido científico nacional, designadamente os laboratórios associados.

Pobre país este em que quem produz ciência é visto, mais do que tudo, como centro de custos e em que quem forma para competências avançadas é estigmatizado como luxo descartável. Uma política pautada pelo desinvestimento no ensino superior e na ciência é muito mais do que míope, é estúpida e irresponsável. Porque desiste de formar espíritos adultos, pune quem é capaz de captar fundos competitivos internacionais e forma parcerias e redes ao melhor nível mundial e, com isso, empobrece estrutural e duradouramente o País.


Uma política assim, que mata conscientemente a produção científica e que faz ajoelhar a universidade como polo de saber livre, parece-se muito a um remake para o nosso tempo do "Viva la muerte" gritado contra Unamuno em Salamanca, em outubro de 1936, pelos franquistas para expressar o seu ódio à intelectualidade crítica. Não é certamente tão bruta no gesto, mas é seguramente mais letal nos efeitos. São sempre assim as versões remix dos velhos hits de má memória.

aqui:http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3546832&seccao=Jos%E9%20Manuel%20Pureza&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco&page=2

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Economia e democracia na UE – 2

por Daniel Vaz de Carvalho [*]

 
Quando considero e avalio no meu pensamento todas as comunidades que florescem hoje em dia por toda a parte, assim Deus me ajude, não vislumbro senão uma certa conspiração de ricos procurando as suas próprias vantagens em nome e sob a tutela da comunidade. Inventam todos os meios e possibilidades para usar e abusar do trabalho e labor dos pobres pelo mínimo possível de dinheiro. Esses planos que o rico decretou são tornados leis.
Thomas More, Utopia 

 
3 - ECONOMIA


"Salvar a economia" é salvar a oligarquia financeira, destruindo a democracia, a própria economia e tudo o que seja social. Portanto, a questão que se coloca é entre salvar a economia e a democracia ou salvar a oligarquia.


Os "europeístas" regozijam-se com a "disciplina financeira". "A disciplina veio agora", exultam. Mas, que disciplina e para quem? "Disciplina" tem o significado de um conjunto de regras para controlar comportamentos. Estão a controlar a especulação? Estão a controlar a existência de rendas monopolistas na economia? A fuga de capitais e rendimentos? A lavagem de dinheiro e o crime organizado? Não, esta "disciplina" é omissa em todos estes aspetos e acaba por promove-los. Trata-se de "disciplina" como austeridade, castigo, repressão por meio de penitência, neste caso sobre os que não têm dinheiro para colocar em paraísos fiscais.


É esta a disciplina que a CE e o BCE impõem e que a direita aplaude. A que permite que os povos fiquem sob o garrote dos "mercados" manipulados por agências de rating e conluios bancários como, entre outros, o escândalo da taxa Libor, que logo saiu dos noticiários e comentários.


Os tratados da UE com base na concorrência livre e não falseada (!) e na teoria das vantagens comparativas impedem a recuperação e o desenvolvimento dos países menos desenvolvidos. Resta a estes a especialização em nichos de baixa tecnologia ou como subcontratados de multinacionais, que se aproveitam de baixos salários, "incentivos" e a livre transferência dos lucros.


Os Estados que nos processos da UE e em particular do euro, à partida dispunham de maiores "vantagens comparativas", usaram-na e usam-na para conservar a sua supremacia, condenando os mais vulneráveis à estagnação, a manter e aprofundar as distorções estruturais. Os governantes fazem o papel de capatazes, cujo objetivo é colocar os trabalhadores sob a canga neoliberal e o azorrague dos mercados. Quem não cumpre vai para o cepo dos "programas de ajustamento" e da austeridade.


Não deixa de ser surpreendente que gente que contribuiu para o desmantelamento do sector produtivo, deixou acumular os défices da BC, ignorou os desmandos, fraudes e má gestão do sector financeiro; gente que foi incapaz de impedir o crescimento descontrolado do desemprego, colocou o país sob a suserania dos "mercados" e o conduziu para uma situação de profunda crise, diga agora que recusar as causas seria uma catástrofe.


As estratégias das cúpulas europeias têm como objectivo deixar os Estados sem capacidade de intervir na economia no interesse dos seus países e dos seus povos. Uma zona euro estável exigiria o controlo de capitais e a harmonização fiscal, impediria paraísos fiscais, a concorrência fiscal e a especulação financeira. Pelo contrário, com o euro, a especulação sobre os défices públicos é exercida com a garantia do BCE.


"Um banco central funcionando de maneira adequada não ficaria de braços cruzados durante meses face aos ataques especulativos (…) sobretudo não deixaria agências de notação desacreditadas fazer o seu papel de encher a bolha financeira entre 2001 e 2007." [1]


Apesar dos aumentos de produtividade, há largos anos que altos níveis de desemprego, pobreza, marginalidade cresceram e se mantêm na EU, mergulhada na estagnação ou na recessão, com taxas de crescimento inferiores às da economia mundial e mesmo dos EUA.


Jacques Sapir num estudo recente afirma que "Uma dissolução da zona Euro não seria uma "catástrofe" como muitas vezes se pretende, mas pelo contrário uma solução salvadora para a Europa do Sul e a França. Na pior, será preciso esperar um crescimento acumulado de 8% no terceiro ano após o fim do Euro e na melhor um crescimento de 20%. Para a Europa do Sul, o crescimento acumulado seria em média de 6% para a Espanha, de 11% para Portugal e de 15% para a Grécia, na hipótese mais desfavorável para estes países. Tendo em conta os impostos, o impacto de uma desvalorização de 25% em relação ao dólar sobre o preço dos combustíveis não provocaria senão uma alta de 6% a 8% do produto ao consumidor." [2]


A própria Comissão Europeia estima que a fuga ao fisco pela fraude ou evasão ilegal atinja 150 mil milhões de euros ano, correspondentes a 1 milhão de milhões de euros de rendimentos. O total registado em sociedades financeiras na Holanda por Portugal, Grécia, Itália e Espanha aumentou entre 2006 e 2011 de 178 para 304 mil milhões (mais 74%). No mesmo período, a dívida destes países para sociedades financeiras na Holanda aumentou 125% (de 72 para 163 mil de milhões de euros). [3]


As sociedades financeiras na Holanda tiveram em 2011um lucro de 96 mil milhões de euros, o que fazendo uma estimativa para as de origem portuguesa, corresponde a 865 milhões de euros na Holanda, ou seja algo como 2,5 mil milhões de euros nos últimos três anos. [3]


Desde 2008, graças ao apoio dos contribuintes os bancos europeus aumentaram a sua cotação bolsista em 30%, muitos deles mais do dobro, porém os "riscos sistémicos" não são menores do que antes. A Standard & Poor's estima que os bancos da eurozona têm um défice de capital da ordem dos 95.000 milhões de euros.


Não admira, pois, que enquanto as condições económicas e sociais na UE se agravaram os 25 cidadãos mais ricos da UE, aumentaram os seus rendimentos entre 2010 e 2013, em 40%! (dados da revista Forbes )


Segundo noticiado [4] o número de multimilionários em Portugal aumentou 10,8% para 870 pessoas no último ano, revela o banco suíço UBS. O "Relatório de Ultra Riqueza no Mundo 2013" confirma que em Portugal não só cresceu o número de multimilionários como aumentou o valor global das suas fortunas, de 90 para 100 mil milhões de dólares (mais 11,1%), o que corresponde a cerca de 45% do PIB nacional. Note-se que na Grécia, o número de multimilionários cresceu 11% (para 505) e o valor das suas fortunas aumentou 20% (para 60 mil milhões de euros).


4 - OS ESCRAVOS DO EURO


Os escravos do euro vivem sob o chicote da austeridade. A história do euro faz lembrar a dos náufragos recebidos numa ilha por acolhedores nativos que trataram deles, os alimentaram e depois comeram. Eram antropófagos.


É difícil conceber algo mais desestabilizador para uma economia nacional que a livre circulação de capitais. Se a isto juntarmos a concorrência fiscal e a especulação temos os ingredientes para uma impossível estabilidade económica, social, política.


"A "Europa" não é um espaço solidário. Em vez de solidariedade, a concorrência desleal. (…) Apesar da federalização de políticas tão importantes os construtores da Europa do capital nem querem ouvir falar em harmonização das políticas tributária, laboral e social. [5]


Ouvimos agora criticar o "mau desenho" do pacto da troika e que "nada foi feito para monitorizar as consequências do euro". É espantoso que isto seja afirmado pelos mesmos que assumiram o verdadeiro pacto de agressão e ocupação do país pela troika como "ajuda a Portugal", que propagandearam o euro que nos iria proteger das crises, da especulação e ter crédito barato e abundante. Aplaudiram o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) como a "regra de ouro", quando não passa de uma iniquidade para não lhe chamar uma imbecilidade, pois funciona em contra-ciclo económico.


Os países têm de se munirem de disposições legais e permanentes (!) de preferência constitucionais, que limitem o défice estrutural a 0,5% do PIB e o endividamento a 60% do PIB. Além disto, o Tribunal Europeu de Justiça pode no seguimento de uma queixa de outro país signatário aplicar uma multa a um país que não respeite o tratado.


O tratado rejeita explicitamente "grandes reformas de política económica" sem antes ter recebido o consentimento dos outros países europeus. Simplesmente inaudito. Trata-se duma agenda ideológica que atinge o nível de ocupação colonial, muito para além do que existe em Estados federais ou regionalizados.


Na UE pretende-se que as regras que regulam o trabalho devem ser "modernizadas e reatualizadas" e o "Estado Social" "reestruturado" ou "reformado", com vista à competitividade, ao "crescimento e ao emprego". Quando esta gente diz isto já sabemos que haverá mais recessão, mais desemprego, mais chantagem sobre os trabalhadores, mais precariedade, com o argumento que "mais vale isso que nada".


D. Merkel afirma que não é o Estado que tem de promover o emprego, ou seja, os governos não têm que ver com os seus cidadãos trabalhadores, apenas com os detentores do capital. (DN 13/11/2013)


Que importa que em Setembro de 2013 o desemprego tenha atingido na UE 11% (10,6 um ano antes) afetando 26,9 milhões de pessoas e na zona euro 12,2 % (11,6% um ano antes), 19,4 milhões de pessoas, se na Alemanha a taxa é de 5,2%, na Áustria 4,9, embora na Grécia seja 27,6%, Espanha 26,6%, Irlanda 13,6%, Portugal 16,3% (valores ajustados do efeito sazonal). [6]


Que importa o crescimento da pobreza e exclusão social na UE, que já atingia em 2011 24% da população. Eram então 120 milhões de pessoas! Em Portugal 24,4% da população, na Grécia 31%, Irlanda (2010) 29,9%, Espanha 27%, com países do Leste e Báltico com taxas superiores a 30 e mesmo 40%, mesmo na Alemanha atingia 19,9%? [7]


Que importa a austeridade à Alemanha, se isso interessar à manutenção do "seu" euro. Isso apenas importa na medida em que for favorável ou contrário aos seus interesses - leia-se da oligarquia alemã, - agora como no passado. [8]


Do PS, vem a ideia que a solução tem de vir da Europa. Mas qual Europa? Pretende-se com isto que o povo fique de joelhos a rezar à UE, à espera de um milagre e a carpir nos "muros das lamentações" que a rádio e TV promovem?


Na realidade, são raciocínios de natureza teológica, feitos de invocações. Um messianismo sem consistência que volta costas e ignora a energia popular (veja se a atitude do PS perante manifestações e greves mesmo gerais). O PS teria de escolher entre os valores de Abril e os da oligarquia, e isto não é nenhum dilema: é uma solução, pois é a própria democracia que está em causa, o governo do povo, pelo povo e para o povo, não o governo da burocracia de Bruxelas.


Para garantir que prossegue o desmantelamento das funções sociais do Estado e que este esteja inteiramente colocado ao serviço dos interesses financeiros e monopolistas os tecnoburocratas da UE ordenam que antes de 15 de outubro os países da zona euro apresentem os seus orçamentos para serem controlados.


"O euro que nos é apresentado como um projeto coletivo é na realidade o projeto de um país que tenta impô-lo aos outros." [9] Nas economias do leste o sistema financeiro está inteiramente dominado pelos bancos alemães, franceses e austríacos. A quase totalidade da atividade industrial dos países do leste europeu está dominada por multinacionais em particular alemãs [10]


De facto, como também salienta J. Sapir, o euro contribuiu decisivamente para a competitividade da economia alemã, porém economias como a portuguesa viram a sua competitividade diminuir, os défices agravarem-se, sendo conduzidos para "programas de ajustamento" com base na deflação salarial, perda de direitos, desemprego, redução do salário direto e indireto sob a forma de prestações sociais, que os comentadores de serviço mascaram como "gorduras" e "despesismo do Estado".


Qualificar como "nossos compromissos" a chantagem de credores agiotas, é optar pela troika e pelo euro contra os interesses do povo. As alternativas existem e sempre existiram. Na nossa época, são encontradas no materialismo dialético, o marxismo, guia para nos orientarmos no labirinto de contradições para onde um capitalismo parasitário e senil que desde há décadas arrasta os povos para sucessivas crises, bloqueando o sentido do progresso e da ascensão civilizacional.


Um sistema, uma sociedade, que não é capaz de desenvolver-se económica e socialmente, chegou a um impasse. Um sistema, uma sociedade, cujas soluções consistem em aumentar a taxa de exploração e a desigualdade é um sistema sem soluções sociais, que chegou ao limite e tem de ser substituído.


"Acabar com a finança privada, é por um lado desembaraçar-se de atitudes parasitárias e desestabilizadoras, mas também dotar-se de um instrumento essencial para construir um modo de desenvolvimento guiado pela satisfação das necessidades sociais e preservar a biosfera. As instituições bancárias socializadas podem guiar-se por outros critérios que não o lucro". [11]


A alternativa coloca-se, pois, desde logo pela necessidade dos povos adquirirem soberania financeira. A socialização da banca seria o primeiro passo para a saída da crise. A opção é entre os interesses de credores usurários e os interesses nacionais.


Quod erat demonstrandum
1- En finir avec l'Europe , Ed. La fabrique, 2013, Cédric Durant (coord.), p. 80

2- Dissolver o Euro: uma ideia que se imporá , Jacques Sapir .
3- Avoiding Tax in Times of Austerity - Energias de Portugal (EDP) and the Role of the Netherlands in Tax Avoidance in Europe , September 2013, Centre for Research on Multinational Corporations - Private Gain, Public Loss, www.somo.nl
4- Lusa em 07/nov/2013, economico.sapo.pt/...
5- O Estado Capitalista e as suas Máscaras, António Avelãs Nunes, Ed. Avante, 2013, p. 367
6- Eurostat news release, 159/2013, 31/outubro/2013
7- Eurostat news release, 171/2012, 3/dezembro/2012
8- Em outubro de 1940, Hitler dava instruções sobre a Polónia: "Não é preciso pensar em melhorias para eles. Cumpre manter um padrão de vida baixo (…) devemos utilizar o governo-geral da Polónia simplesmente como fonte de mão-de-obra não especializada."
Em outubro de 1943, Himmler, perante uma assembleia de SS, declarava: "se 10 000 mulheres russas caem de exaustão a cavar um fosso contra tanques interessa-me apenas que esse fosso seja concluído para a Alemanha", Ascensão e Queda do 3º Reich, vol. IV, W. Shirer, Ed. Civilização Brasileira, 1962, p. 12
9- Faut'il sortir de l'euro , Jacques Sapir, Ed. Seuil, 2012, p.68
10- Idem, p.45 e 44.
11- Idem, p. 146

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  • A primeira parte deste artigo encontra-se aqui .

    [*] Engenheiro.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
  •  
  • aqui: http://resistir.info/europa/economia_democracia_ue_2.html
  •  

    terça-feira, 19 de novembro de 2013

    Economia e democracia na UE – I

    por Daniel Vaz de Carvalho [*]

     
    "Como é normal acontecer nas vésperas de um cataclismo a comunidade política estava paralisada por uma inércia mascarada de azáfama estéril"
    Cícero – Uma vida, Antony Everitt, Ed. Quetzal

    Aquele que conta com o apoio estrangeiro, encontrará no seu defensor um amo.
    O Príncipe, Maquiavel 

     
    1 – O DILEMA DE BURIDAN E A TEORIA DAS CATÁSTROFES

    O dilema de Buridan (1292 - 1363) tipifica a inação perante duas opções assumidas como dilemáticas, mas que na realidade só o são pela forma passiva e indecisa do sujeito. É esta precisamente a situação em que os defensores "da plena integração" na Europa se colocaram e colocam o país: sair do euro e renegociar as condições de relacionamento com a UE seria uma catástrofe anunciada, porém ficar no euro é, como todos os indicadores mostram, uma catástrofe bem real.

    Ora, uma pessoa, um país, colocar-se em situações dilemáticas é desde logo perder a sua autonomia, diríamos a liberdade de escolha se esta expressão não tivesse sido colocada ao serviço de mentiras e iniquidades.

    A nossa autonomia, a nossa liberdade consiste precisamente em poder ter opções e é justamente isto que os epígonos da "Europa connosco" não entendem ou não querem que os outros entendam. Por isso, refugiam-se na dilemática teoria das catástrofes. É esta a frágil base de sustentação ideológica dos partidos da troika.

    Afirma-se, por exemplo, que com a saída do euro o nível de vida da população cairia 30, 40 ou 50%, sem qualquer base consistente que o justifique, quando análises que demostram o contrário são escamoteadas. Que importa que J. Ferreira do Amaral, Octávio Teixeira, Avelãs Nunes, Jaques Sapir, entre outros, demonstrem o contrário e apontem fundamentadas soluções viáveis, que a comunicação social ignora ou desvaloriza, pois não têm capacidade para consistentemente as contrariar.

    Tudo isto é escondido da população. As faculdades de economia alinham pelas "business schools" na "ciência" de obter o máximo lucro empresarial, a censura evidente na comunicação social e mesmo na literatura divulgada, promove o totalitarismo neoliberal e o obscurantismo – arma da ideologia fascista – para que a população tenha diante de si apenas dilemas, vislumbre catástrofes e deixe de ter um papel interventivo na defesa dos seus interesses individuais e coletivos.

    O gongórico sr. Zorrinho como líder da bancada parlamentar do PS, colocado perante a renegociação da dívida que à sua esquerda se defendia, afirmava querer Portugal em "plena integração europeia numa Europa viável". Os partidos social-democratas / socialistas, promovem assim um "êxtase induzido": o "sonho europeu", a "Europa viável", rendidos ao neoliberalismo instituído na UE, iludindo-se e iludindo, com uma pretensa defesa do Estado Social que se encarregaram à vez de ir destruindo.

    O Estado Social foi a marca identitária da social-democracia europeia, para desmobilizar os trabalhadores da luta pela superação das contradições do capitalismo, tendo como objetivo o socialismo. Porém, agora, comentadores e professores afirmam sem contraditório que tal "despesismo" não é possível manter, por causa da globalização, das regras do euro, da crise.

    É típico das sociedades em decadência, a intelectualidade refugiar-se em dúvidas existenciais, em abstratas elucubrações, socialmente inócuas, que estes "filósofos da corte" assumem para serem admitidos no festim oligárquico e para que o mundo não seja transformado, como diz à conhecida formulação do marxismo.

    Ficar no euro é, pois, catastrófico, mas sair do euro é uma catástrofe. Que fazer? Nada. Dizem que a solução tem de vir da "Europa". Esperam um milagre, enganam as pessoas com falsas ideias sobre eventuais mudanças na governação alemã, ao serviço da sua oligarquia que, tal como no passado, só se interessa pela "Europa" na medida em que contribua para os seus interesses. Escusam, pois, de rezar aos deuses europeus ao serviço dos "mercados" que, como Baal/Moloch, só se satisfazem com sacrifícios humanos.

    O verniz democrático de que o neoliberalismo necessita, é dado por uma camada de "bem pensantes" que se prestam a dissertar sobre dilemas e negar a existência de alternativas. Afirma-se que nenhum partido ou organização as apresenta, o que é falta de honestidade intelectual, pois existem e são reiteradamente apresentadas pelo PCP, o BE, a CGTP. O objetivo dos protagonistas da política de direita já não é demonstrar que têm razão: as polémicas entre o PS e o PSD consistem em demonstrar quem na mesma via fez ou faz pior.

    Depois de 20 mil milhões de euros perdidos em "austeridade" no cumprimento dos memorandos da troika, para uma redução do défice em 6 mil milhões com um aumento da dívida pública de 52 mil milhões, uma redução do PIB superior a 6%, com nove "avaliações" propaladas como "positivas", o FMI no seu recente relatório de "avaliação" tem o cinismo de afirmar que as medidas de "austeridade" são permanentes e que as "reformas" estão por fazer. Este relatório deita por terra a vacuidade, as contradições as mentiras do governo e dos seus propagandistas, mesmo os aparentemente "críticos".

    Foi a isto que nos conduziram os "europeístas" de uma "Europa viável". Mas não seria lógico preocuparem-se antes de mais com um Portugal viável. E se nos disserem que só é possível um Portugal viável numa "europa viável", então estão a colocar os interesses da "Europa" acima dos interesses nacionais.

    E não nos falem em "sonho europeu", pois se dirá que só podem estar sob a influência de algum psicotrópico.

    2 - DEMOCRACIA

    O sr. António Barreto diz que "a Europa era um sonho político e cultural". [1] Engana-se, era uma quimera, um sonho transformado em monstro. Poderia ser um sonho, mas não uma Europa capitalista. A Europa do capitalismo senil, financeirizado e neoliberal é uma monstruosidade.

    Os europeístas dizem que a UE foi um "atalho para a democracia". O capitalismo é assim considerado sinónimo de democracia, mesmo que se tente ignorar que o nazi-fascismo foi capitalismo, que os Pinochet, Vilela, Banzer, etc, da América Latina, ou os Suharto da Indonésia se dedicaram a aplicar "custasse o que custasse" o capitalismo oligárquico neoliberal, impulsionado pelo sr. Milton Friedman (o da "liberdade para escolher", imagine-se) e do sr. Kissinger (do plano Condor e Escola das Américas em Fort Benning, para polícias políticas e torcionários).

    A democracia da UE é a ditadura dos mercados – a tal mão que os propagandistas do sistema procuram tornar invisível. A Europa em que o "risco sistémico" é transformado em "crime sistémico" da finança, da especulação e do conluio com a fraude e o crime organizado. [2]

    A livre transferência de capitais e a concorrência fiscal são a forma de impedir a tributação sobre o grande capital, transferida para os trabalhadores e MPME. É a "disciplina" orçamental que a UE impõe, festejada pelos comentadores de serviço, anulando a capacidade dos Estados terem recursos para desenvolver políticas económicas e sociais.

    São estes os factos. O PS defendeu esforçadamente a "economia de mercado", impediu a discussão pública e o referendo sobre tratados europeus, no que mentiu ao eleitorado. Foi como empurrar pessoas para uma piscina sem água: a de um pseudo federalismo, sem garantir que algo estivesse previsto para merecer este nome, mesmo admitindo que o federalismo fosse uma boa coisa para o país, e não seria, pois para os "federalistas" os interesses da "Europa", isto é da potência hegemónica e da finança, são colocados acima dos interesses nacionais. Neste sentido a "piscina" (o abismo) para onde o país foi empurrado tem um nome: neocolonialismo.

    O Mecanismo Europeu de Estabilidade , MEE, entrou em vigor sub-repticiamente, sem o mínimo de análise ou discussão pública, muito menos referendado, para se saber, mesmo com o grau de desinformação vigente, qual seria a aceitação deste compromisso fundamental para o destino dos povos. É um exemplo da ditadura oligárquica.

    O "tratado orçamental", é um verdadeiro golpe de Estado europeu, que vem minar ainda mais a já débil estrutura democrática da UE, confiando as suas instituições a instâncias tecnocráticas. É a ilegalização da democracia. [3]

    A UE pretende assim eliminar as contradições do capitalismo por decreto! Nem as ditaduras da AL ou os fascismos europeus o conseguiram: foram derrotados. A social-democracia europeia é cega a tudo isto. A UE tornou-se uma "Santa Aliança" das oligarquias europeias, à semelhança da de 1815 feita para conter a propagação das ideias de liberdade da Revolução Francesa.

    Neste processo, "a UE é um regime político autoritário disposto a suspender os procedimentos democráticos invocando a urgência económica ou financeira" [4] que, no entanto, ela própria originou, controlada por uma burocracia submetida à finança.

    Apesar da visão minimalista que o Tribunal Constitucional (TC) tem da Constituição, nos limites do Estado de direito, é atacado.

    A sra. Teresa de Sousa ( Público, 20/10/2013) acusa-o de ser "uma espécie de governo sombra a que toda a gente se agarra para determinar as opções políticas do verdadeiro governo", defendendo que "a lei europeia se sobrepõe à lei nacional. "A nossa Constituição, apesar de várias revisões, é um documento datado, que corresponde a um país e a uma Europa que já não existem". Aqui tem razão: está tudo pior, mas pelos vistos é o que a direita pretende.

    Note-se que nas questões que o TC não aprovou, estiveram em causa princípios como a equidade, a progressividade, a confiança, a não retroatividade das leis. Princípios básicos de qualquer Estado de direito democrático.

    Que espécie de Constituição pretende a direita e seus propagandistas? Muito do que era progressista, resultante do impulso democrático e popular do 25 de Abril, o bloco central, PS e PSD com ou sem CDS, se encarregaram de ir destruindo. Trata-se agora de atacar os próprios fundamentos da democracia, com os sofismas do "europeísmo" e do pacto da troika, que afinal tanto desejaram, reclamaram e negociaram.

    Na UE o nível de solidariedade e respeito pelas instituições democráticas nacionais atinge, em termos diplomáticos, o nível da boçalidade. Durão Barroso e Olli Rehn, da CE, arrogam-se tecer considerações que configuram ameaças veladas sobre a atuação do TC. Durão Barroso afirma que se o TC não der parecer favorável às atuais medidas de austeridade do OE a alternativa será muito pior. Mas que autoridade tem para tal dizer sobre medidas que compete à AR decidir e votar? [5]

    O sr. Luís Pessoa, representante da CE em Portugal, conforme noticiado, afirma «não ser esta a altura certa para o TC se envolver em ativismos políticos». Perante isto, o governo e a maioria mostram a sua concordância, tentam justificar o inqualificável – esse tem sido o seu papel na alienação da soberania nacional – comportando-se como meros delegados da troika. Quanto ao PR pode dizer-se que como garante das instituições democráticas e da sua dignidade, baixa as orelhas.

    No "sonho europeu" já não cabem, pelos vistos, os mais elementares princípios democráticos, nem sequer direitos que os até os reis medievais respeitavam.

    Dizia o sr. Medina Carreira que a Constituição deveria ter sido alterada aquando da nossa entrada para o euro. Eis a escolha que se coloca aos portugueses, como aos outros povos: o euro, tal como é gerido pelo BCE, representa a destruição dos princípios básicos da democracia, a instauração de um sistema oligárquico, a democracia "musculada" desejada pela direita, versão "pós-moderna" da "democracia orgânica" salazarista, com que foi tentado mascarar o regime após a derrota do nazi-fascismo.

    Oscilando entre a dúvida sistemática e a teoria das catástrofes o sr. António Barreto esclarece sobre a sua conceção da Constituição: "tem uma dimensão programática e ideológica excessiva". "Cada parlamento devia poder fazer as políticas financeiras, económicas e sociais que entendesse, assumindo os custos dessas decisões que o parlamento seguinte poderia anular. Assim, alguns pontos da polémica atual ficariam fora da Constituição". [2]

    Curiosamente, a dimensão ideológica dos tratados da UE não o choca! Tal ingenuidade é estranha num considerado investigador, porém não nos surpreende no governante que queria fazer uma reforma agrária "mas sem ódios". [6]

    Parece não importar que princípios básicos democráticos e sociais possam ser anulados por maiorias espúrias, obtidas com base na mentira, na manipulação da comunicação social controlada e na chantagem sobre uma população desinformada e fragilizada pela pobreza. Trata-se afinal de constituir um Estado governado à maneira salazarista, em que tudo o que na Constituição podia defender o cidadão estava anulado por leis e decretos.

    Esquece-se que um governo, com o seu "parlamento", leia-se: maioria, tem poderes para comprometer o Estado à revelia da vontade popular e de promessas eleitorais, como aconteceu com os tratados da UE e o memorando da troika, ou estabelecer contratos com empresas privadas contradizendo o que se dizia defender nas próprias leis regendo esses processos (como nas PPP, nas privatizações, banca fraudulenta, etc.).

    Na realidade, o sr. Barreto apresenta e defende a agenda política do governo da direita, roçando a extrema-direita, a que a mobilização popular, de que o PS se alheia, os partidos à sua esquerda e o TC têm apesar de todas as contingências feito frente de forma que não se limita à retórica.

    A confrontação com a Constituição a coberto de um hipotético ajustamento sob os ditames da troika está a conduzir o país a situações que só poderão ser revertidas repondo a letra e o espírito do 25 de Abril, não apenas a partir de uma maioria parlamentar, mas de um processo revolucionário de ampla participação popular para repor a soberania e a dignidade nacionais alienadas pelas estruturas económicas dos monopólios e da especulação financeira.
    1- Público, 01/setembro/2013
    2- O Estado capitalista e as suas máscaras, António Avelãs Nunes, Ed. Avante, 2013, p. 302
    3- Idem, p. 394 e 396
    4- En finir avec l'Europe , Cédric Durant (coord.), Ed. La fabrique, 2013, p. 89 e 90.
    5- As declarações de Durão Barroso foram objeto de uma carta de protesto dos deputados do PCP no Parlamento Europeu, João Ferreira e Inês Zuber.
    6- Viu-se pela posterior atuação ilegal e mesmo criminosa dos contingentes militarizados deslocados para a zona por sucessivos governos, de que as mortes de Caravela e Casquinha são trágicos exemplos.


    [*] Engenheiro

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

    domingo, 17 de novembro de 2013

    Quando a Europa salva os bancos, quem paga?

    Excelente documentário do canal Arte de Junho de 2013 sobre os beneficiários dos resgates bancários na Europa - não, não foram os países nem sequer os cidadãos que com os seus impostos pagam estes regates. Trata-se de um documentário extremamente sóbrio e objectivo. Inclui entrevistas a vários ministros das finanças europeus, a ex-administradores de bancos (os actuais não dão entrevistas), a activistas, etc. Mostra quem realmente beneficiou dos resgates e mostra também as profundas consequências destes resgates.

    aqui:http://www.youtube.com/watch?v=UwFolpgpksU

    sábado, 16 de novembro de 2013

    “The act of Killing”, um extraordinário documento

     Um realizador norte-americano empreendeu a tarefa de documentar a chacina anti-comunista levada a cabo na Indonésia em 1965. O monstruoso massacre de um milhão de homens e mulheres, encorajado e saudado pelo imperialismo, surge reencenado por um dos seus principais perpetradores, pessoalmente responsável por mais de mil mortes. O filme foi estreado em Espanha a 30 de Agosto. Esperemos que venha a ser visto em Portugal.

    Um realizador de cinema pede a um assassino que recrie, em filme, as torturas e crimes que cometeu na vida real. Este, encantado com a oferta, dispõe-se a isso com entusiamo e diligência. O resultado da experiência é uma alucinação cinematográfica que adquire proporções épicas quando se descobre que o criminoso é um dos líderes mais sanguinários dos esquadrões da morte na Indonésia, bandos de carniceiros que, em 1965, acabaram com a vida de um milhão de pessoas em menos de um ano. The Act of Killing, de Joshua Oppenheimer, é a consequência desse assustador delírio de fama dos genocidas indonésios que, no entanto, hoje vivem como heróis no seu país. O filme estreou em 30 de Agosto em Espanha.

    Werner Herzog, um dos realizadores mais talentosos do cinema documental, revelou publicamente o seu assombro perante The Act of Killing. “Não vi um filme tão poderoso, surreal e aterrador em pelo menos uma década”, disse, acertando em cheio nos cinco adjectivos e na ordem com que os empregou. Tão impressionante, tão demente é a história deste filme, que a primeira reacção perante o mesmo é de surpresa.

    Uma espécie de estupefacção que se transforma em perturbação e confusão, antes de se transformar em espanto e, finalmente, em algo muito parecido com a angústia física.

    Os Esquadrões da Morte

    Anwar Congo, um dos cabecilhas dos Esquadrões da Morte que actuaram na Indonésia depois do golpe militar contra o Presidente Sukarno, é a estrela deste filme. Este verdugo, responsável, de acordo com as suas palavras, pela tortura e assassinato, com as suas próprias mãos, de mais de mil pessoas, encena perante a câmara os crimes que cometeu, explica como perpetrava as suas agressões e vangloria-se de se ter para isso inspirado em filmes de gângsteres que estreavam no cinema.

    Assassino do grande ecrã, na sua juventude, ele e os seus amigos controlavam o mercado negro dos bilhetes. O exército recrutou-os depois do golpe para os esquadrões da morte porque sabia que odiavam os comunistas (que eram quem mais boicotava os filmes dos EUA, as mais rentáveis nos cinemas) e já haviam demonstrado que eram capazes de qualquer acto de violência. Hoje, quase cinquenta anos depois, Anwar Congo é uma figura venerada na Indonésia.

    Fundador de uma poderosíssima organização paramilitar (Juventud de Pancasila), que integra publicamente ministros do Governo, tratada com todas as honras. É a imagem, o símbolo, de um país demente, que aplaude a corrupção e a violência. Um país em que genocidas são convidados de luxo em programas de televisão, onde se alongam sobre os seus projectos cinematográficos e sobre os seus aterradores assassinatos reais. Um país onde boa parte da população continua a viver completamente aterrorizada e que é apoiado pelo resto do planeta.

    Palavra de genocida

    “Matar é proibido, por isso todos os assassinos são castigados, a menos que matem em grandes quantidades e ao som das trombetas”. As palavras, que são de Voltaire, abrem este filme, em que se conjugam cenas de tiroteio pavorosas e em que trabalham os criminosos, com imagens dos mesmos noutras situações e perante a câmara, respondendo às perguntas da equipa de Oppenheimer.
    “- Como é que exterminou os comunistas?”

    “- Matámo-los todos. Foi isso o que se passou.”

    “Não importa se acaba no ecrã gigante ou na televisão”, disse Anwar Congo, referindo-se ao filme que estão a filmar e antes de acrescentar: “Temos de demonstrar que é esta a história, que isto é o que somos, para que as pessoas no futuro se lembrem.” Um esforço tardio depois de falar perante as câmaras deste documentário, pois é absolutamente impossível esquecer o que contam, como contam e, pior, como o comemoram.

    Anwar Congo dança vestido como um gangster do cinema, depois de mostrar o sítio onde executava as torturas. “No princípio, espancávamo-los até à morte, mas havia mesmo muito sangue (…). Quando limpávamos, o cheiro era terrível. Para evitar o sangue, tínhamos um sistema”. Dito isto, uns passos de chá-chá-chá. Assustador.

    “Matar pessoas que não queriam morrer”

    Testemunhos como este ocorrem ao longo de todo o filme e não são apenas procedentes da memória de Anwar Congo. Um editor de imprensa (“o meu trabalho era fazer com que o público odiasse os comunistas”), um líder paramilitar local que faz perante as câmaras uma ronda de extorsão exigindo dinheiro, o próprio vice-presidente do país, outro verdugo da época, um membro do Parlamento de Sumatra do Norte ou o subsecretário da Juventude e do Desporto trazem os seus contributos pessoais ao documentário, observando uma das coisas mais surpreendentes, a absoluta banalidade com que todos concebem o genocídio e a perfeita impunidade que construíram em seu redor.

    Anwar Congo reconhece que torturou e matou cerca de mil pessoas com as suas próprias mãos.
    “Quantas pessoas matou?”, pergunta a Anwar Congo, com um sorriso deslumbrante, uma apresentadora da TVRI, televisão pública da Indonésia. “Umas mil”, responde ele, também sorridente. Assustador e, ao mesmo tempo, lógico. No fundo, Anwar Congo e os seus colegas torturadores estão aqui a fazer publicidade, promovendo o filme que rodaram descrevendo os seus assassinatos.

    A aberração chegou aqui ao seu ponto culminante. Passaram quase duas horas desde que começou o filme e o espectador assistiu ao grotesco espectáculo da fanfarronice de uns assassinos em massa. Durante todo esse tempo, ter-se-á interrogado, seguramente várias vezes, “como é possível viver com isto e nem sequer se arrepender?” A resposta é que provavelmente não é possível.

    “Sei que os meus pesadelos são causados pelo que fiz, matar gente que não queria morrer”, disse num momento do documentário Anwar Congo, cada vez mais afectado pelo processo de filmagem e a quem a câmara de Oppenheimer também grava enquanto interpreta o papel de vítima numa das suas recriações. É um momento chave para o genocida e para o filme, este em que o assassino se põe no lugar das suas vítimas. É uma sequência que leva ao final deste documento. E aqui as turbulências emocionais por que passou o espectador são tantas e tão profundas que é muito difícil dizer se esse homem (em que agora algo mudou) está arrependido ou se o que sente é asco perante o mar de sangue provocado, ou se realmente não queria entender e agora, por fim, entendeu o que significa o acto de matar.

    “Uma técnica de rodagem para tentar compreender”

    Vencedor de muitos prémios, este filme foi concebido depois de três anos em que o realizador Joshua Oppenheimer se dedicou a filmar os sobreviventes dos massacres de 1965 e 1966. Durante esse tempo, a equipa de filmagem foi ameaçada, perseguida e avisada para que deixasse o país. No entanto, “os assassinos estavam mais que dispostos a ajudar-nos e, quando os filmámos gabando-se dos seus crimes contra a humanidade, não encontrámos nenhuma oposição. Abriram-nos todas as portas”. E então, no que Oppenheimer chamava essa estranha situação”, teve início um novo começo do filme.

    Propuseram aos gângsteres filmarem o seu próprio filme, fazendo de si mesmos e de vítimas. “Os protagonistas sentiam-se seguros explorando as suas memórias e sentimentos mais profundos, e o seu humor mais negro. Eu sentia-me seguro interrogando-os continuamente sobre o que fizeram, sem temer que me prendessem ou batessem”.

    “Desenvolvi uma técnica de filmagem através da qual tentei compreender por que razão a extrema violência, que muitos consideramos impensável, é não apenas possível, como se exerce como uma rotina. Tentei compreender o vazio ético que torna possível que os responsáveis pelo genocídio sejam homenageados na televisão pública com aplausos e sorrisos”, diz o realizador. “É assim que tentamos trazer luz sobre um dos capítulos mais escuros da história da humanidade, tanto local como global, e mostrar os custos reais da cegueira, do oportunismo e da incapacidade de controlar a ganância e a ânsia de poder numa sociedade mundial cada vez mais unificada. Em última análise, esta não é uma história sobre a Indonésia, é uma história sobre todos nós.”

    O Golpe Militar de 1965

    Em 1965, o Governo Indonésio foi derrubado pelos militares. Sukarno, o primeiro presidente da Indonésia, fundador do movimento não alinhado e líder da revolução nacional contra o colonialismo holandês, foi destituído e substituído pelo General Suharto. O Partido Comunista Indonésio (PKI), que havia apoiado firmemente o Presidente o Presidente Sukarno, que não era comunista, foi proibido de imediato. Na véspera do golpe, o PKI era o maior partido comunista do mundo fora de um país comunista.

    Depois do golpe militar de 1965, qualquer pessoa poderia ser acusada de ser comunista: sindicalistas, agricultores sem terras, intelectuais, chineses… “Em menos de um ano e com a ajuda directa de certos governos ocidentais, mais de um milhão destes comunistas foram assassinados”, assegura a equipa de The Act of Killing.

    Os EUA aplaudiram o massacre, que consideraram “uma grandiosa vitória sobre o comunismo”. A revista Time informava que era uma das melhores notícias para o Ocidente em anos, na Ásia”, enquanto o The New York Times escrevia: “Um raio de luz na Ásia”.

    Tradução de André Rodrigues

    aqui:http://www.odiario.info/?p=3089

    quinta-feira, 14 de novembro de 2013

    O "May be man"

    por Mia Couto [*]


    Existe o "Yes man". Todos sabem quem é e o mal que causa. Mas existe o May be man. E poucos sabem quem é. Menos ainda sabem o impacto desta espécie na vida nacional. Apresento aqui essa criatura que todos, no final, reconhecerão como familiar.

    O May be man vive do "talvez". Em português, dever-se-ia chamar de "talvezeiro". Devia tomar decisões. Não toma. Simplesmente, toma indecisões. A decisão é um risco. E obriga a agir. Um "talvez" não tem implicação nenhuma, é um híbrido entre o nada e o vazio.

    A diferença entre o Yes man e o May be man não está apenas no "yes". É que o "may be" é, ao mesmo tempo, um "may be not". Enquanto o Yes man aposta na bajulação de um chefe, o May be man não aposta em nada nem em ninguém. Enquanto o primeiro suja a língua numa bota, o outro engraxa tudo que seja bota superior.

    Sem chegar a ser chave para nada, o May be man ocupa lugares chave no Estado. Foi-lhe dito para ser do partido. Ele aceitou por conveniência. Mas o May be man não é exactamente do partido no Poder. O seu partido é o Poder. Assim, ele veste e despe cores políticas conforme as marés. Porque o que ele é não vem da alma. Vem da aparência. A mesma mão que hoje levanta uma bandeira, levantará outra amanhã. E venderá as duas bandeiras, depois de amanhã. Afinal, a sua ideologia tem um só nome: o negócio. Como não tem muito para negociar, como já se vendeu terra e ar, ele vende-se a si mesmo. E vende-se em parcelas. Cada parcela chama-se "comissão". Há quem lhe chame de "luvas". Os mais pequenos chamam-lhe de "gasosa". Vivemos uma nação muito gaseificada.

    Governar não é, como muitos pensam, tomar conta dos interesses de uma nação. Governar é, para o May be Man, uma oportunidade de negócios. De "business", como convém hoje dizer. Curiosamente, o "talvezeiro" é um veemente crítico da corrupção. Mas apenas, quando beneficia outros. A que lhe cai no colo é legítima, patriótica e enquadra-se no combate contra a pobreza.

    Afinal, o May be man é mais cauteloso que o andar do camaleão: aguarda pela opinião do chefe, mais ainda pela opinião do chefe do chefe. Sem luz verde vinda dos céus, não há luz nem verde para ninguém.

    O May be man entendeu mal a máxima cristã de "amar o próximo". Porque ele ama o seguinte. Isto é, ama o governo e o governante que vêm a seguir. Na senda de comércio de oportunidades, ele já vendeu a mesma oportunidade ao sul-africano. Depois, vendeu-a ao português, ao indiano. E está agora a vender ao chinês, que ele imagina ser o "próximo". É por isso que, para a lógica do "talvezeiro" é trágico que surjam decisões. Porque elas matam o terreno do eterno adiamento onde prospera o nosso indecidido personagem.

    O May be man descobriu uma área mais rentável que a especulação financeira: a área do não deixar fazer. Ou numa parábola mais recente: o não deixar. Há investimento à vista? Ele complica até deixar de haver. Há projecto no fundo do túnel? Ele escurece o final do túnel. Um pedido de uso de terra, ele argumenta que se perdeu a papelada. Numa palavra, o May be man actua como polícia de trânsito corrupto: em nome da lei, assalta o cidadão.

    Eis a sua filosofia: a melhor maneira de fazer política é estar fora da política. Melhor ainda: é ser político sem política nenhuma. Nessa fluidez se afirma a sua competência: ele sai dos princípios, esquece o que disse ontem, rasga o juramento do passado. E a lei e o plano servem, quando confirmam os seus interesses. E os do chefe. E, à cautela, os do chefe do chefe.

    O May be man aprendeu a prudência de não dizer nada, não pensar nada e, sobretudo, não contrariar os poderosos. Agradar ao dirigente: esse é o principal currículo. Afinal, o May be man não tem ideia sobre nada: ele pensa com a cabeça do chefe, fala por via do discurso do chefe. E assim o nosso amigo se acha apto para tudo. Podem nomeá-lo para qualquer área: agricultura, pescas, exército, saúde. Ele está à vontade em tudo, com esse conforto que apenas a ignorância absoluta pode conferir.

    Apresentei, sem necessidade o May be man. Porque todos já sabíamos quem era. O nosso Estado está cheio deles, do topo à base. Podíamos falar de uma elevada densidade humana. Na realidade, porém, essa densidade não existe. Porque dentro do May be man não há ninguém. O que significa que estamos pagando salários a fantasmas. Uma fortuna bem real paga mensalmente a fantasmas. Nenhum país, mesmo rico, deitaria assim tanto dinheiro para o vazio.

    O May be Man é utilíssimo no país do talvez e na economia do faz-de-conta. Para um país a sério não serve.
    [*] Escritor .

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/


    aqui:http://resistir.info/africa/may_be_nov13.html 

    Israel compra o Congresso dos EUA: Sabotagem das negociações de paz EUA-Irão

    segunda-feira, 11 de novembro de 2013

    Neoliberalismo: Um Estado refém

    por Sandra Monteiro

    Houve um tempo em que o neoliberalismo actuou como se acreditasse que a população era desperdiçada no Estado. Estávamos na década de 1980 e as primeiras experiências neoliberais, indissociáveis dos governos de Aníbal Cavaco Silva, sonhavam com a constituição de um mercado privado que canalizasse os recursos dos cidadãos. Estes haviam acedido à liberdade e à democracia constitucional há pouco tempo, mas criações como o Estado social já melhoravam as condições de vida. Uma arquitectura assente na fiscalidade progressiva e em serviços públicos universais e gratuitos, e na protecção social e laboral, era, no entanto, bastante perturbadora. Como levar os cidadãos a pagar no privado o que recebiam no público, com qualidade e «gratuitamente»?

    Era central para o neoliberalismo português ultrapassar este obstáculo, num país pobre e pouco integrado na globalização comercial e financeira. Como os sectores que prometiam lucros mais seguros, além dos ligados aos monopólios naturais, eram os da educação, saúde, segurança social, esse período foi marcado por fortes ataques ideológicos ao público, com campanhas intensas sobre os seus desempenhos e com os primeiros incentivos à dualização dos sistemas, traduzidos na eliminação progressiva da gratuitidade (propinas, taxas) e depois com as tentativas de plafonamentos.

    O projecto que levaria ao aprofundamento das desigualdades e ao empobrecimento do país começou aqui. Mas começaram também as resistências sociais de vários sectores, reprimidas como o foi a acção sindical, numa fantasia adiada de desregular totalmente os direitos laborais e acabar com a contratação colectiva. Foi também o tempo dos primeiros sinais do elogio da juventude, antecipando o incitamento à quebra das solidariedades inter-geracionais, outra pedra angular do sistema social que incomodava as seguradoras privadas. A Constituição da República sofria várias revisões e a Europa «aproximava-se», prometendo modernidade e coesão entre os povos mas realizando projectos de liberalização das trocas, desregulação financeira, destruição de aparelhos produtivos a troco de subsídios e construção mal escrutinada de infra-estruturas. Com a adesão à União Europeia, e depois à zona euro, acentuaram-se as desigualdades entre um centro excedentário e uma periferia deficitária. Mas, em todos os países aderentes, os povos viram os rendimentos do seu trabalho, os seus ganhos de produtividade, serem cada vez mais canalizados pelo poder político em benefício do poder económico e de interesses privados.

    Em países como Portugal, os neoliberais cedo aprenderam que as simples privatizações eram negócios muito arriscados. As novas universidades privadas faliam umas atrás das outras, os doentes continuavam a confiar mais nos hospitais públicos, a opção pelos seguros de pensões permanecia aquém do desejável para os negócios prosperarem. Enquanto isto, a social-democracia europeia enredava-se em adaptações ideológicas que, mesmo mantendo princípios e valores de justiça social, degradavam as condições materiais para os sustentar. Apanhada entre a desconfiança em relação a perspectivas sistémicas, proporcionada pelo fim do mundo bipolar, e os desafios que a globalização económica colocou à autonomia do poder político, deixou-se seduzir por «terceiras vias» que desprotegeram as políticas públicas orientadas para o combate às desigualdades. Em Portugal não foi diferente, e as elites económico-financeiras marcadamente neoliberais agradeceram – tal como agradeceram que as restantes forças políticas e sociais, à esquerda, não tivessem assumido um projecto de poder.

    Com a sua primeira experiência, o neoliberalismo português aprendeu que tinha de se adaptar: não é tanto a população que é desperdiçada no Estado, é o Estado que é desperdiçado na população. As duas perspectivas mantêm o essencial do «privadocentrismo»: o poder económico e financeiro ganha sempre, o capital explora cada vez mais trabalho. Quando não o pode fazer defendendo a pura iniciativa privada – porque o país é pobre e o mercado pequeno –, só tem de recorrer à extrema flexibilidade neoliberal quanto aos meios para atingir os fins. O Estado pode ser maior ou menor, pode até ser reduzido ao mínimo, mas não é para eliminar, porque pode ser muito útil para colocar as populações e os seus recursos ao serviço de finalidades privadas.

    O processo de captura do Estado assenta em vários tipos de engenharias neoliberais. Nas suas diferentes formas, que vão das parcerias público-privadas aos contratos de associação, passando pelas formas de empresarialização de sectores públicos, o que estas engenharias têm em comum é a capacidade para sustentar negócios privados com subsídios, rendas, contratos e todo o tipo de facilidades que lesam o interesse público e tornam o Orçamento do Estado incapaz de satisfazer as missões centradas no bem comum.

    A crise financeira iniciada em 2008 deu aos neoliberais o pretexto para um salto de gigante na reconfiguração do Estado. Depois de criar um problema de dívida pública com salvamentos bancários, e inserindo-se numa União Europeia que concede crédito aos países mas só robustece o negócio dos credores, o Estado português assinou um Memorando de Entendimento com a Troika para aceder a um empréstimo condicionado à aceitação de políticas económicas e sociais. Sobretudo com a actual maioria no governo, totalmente identificada com o projecto austeritário, o desmantelamento do Estado social, a desvalorização do trabalho, o aumento do desemprego e da emigração, e o empobrecimento e a recessão aprofundaram-se a níveis impossíveis de imaginar numa democracia que não tivesse caído na armadilha do «regime de emergência». O garrote de uma dívida que cresce perpetuamente e o dos tratados e compromissos internacionais (actuais e futuros) garantem décadas de miséria e subdesenvolvimento. Tudo para alimentar o sistema financeiro e os negócios privados que crescerão à sombra de um Estado «libertado» das suas arreliantes finalidades colectivas.

    O Orçamento do Estado para 2014 (como aliás o desesperado mas bem ideológico guião de reforma «Um Estado melhor») é justamente a sagração deste projecto que considera que o Estado é desperdiçado na população. Mantém todas as receitas da via austeritária, que não cumprem nenhum dos objectivos proclamados, e aprofunda-as (ver, nesta edição, o dossiê dedicado ao Orçamento). Ao criar esse «Estado paralelo» (na feliz expressão de Pedro Adão e Silva), que dependerá do dinheiro público para prosseguir fins privados, os neoliberais pensam conseguir, por fim, colocar uma sociedade cada vez mais desigual perante a experiência prática de serviços públicos sem qualidade (quando existem). Isto alimentará uma profunda desconfiança dos cidadãos na esfera pública, na democracia.

    O Estado que este Orçamento consagra é um Estado refém. Mas não o é apenas de uma dívida que tem de ser profundamente reestruturada nem de um desvio de recursos públicos que têm de ser reorientados para o Estado social, saibamos nós ocupar e defender, mais do que nunca, os serviços públicos. Desde a década de 1980 que o neoliberalismo está a ganhar força contra o bem-estar comum. Aqui chegados, não podem ser adiadas respostas corajosas que lhe abalem as estruturas e o façam soçobrar. Quem não tiver esta coragem limitar-se-á a tentar gerir uma tragédia ingerível.

    sábado 9 de Novembro de 2013

    aqui:http://pt.mondediplo.com/spip.php?article955

    sexta-feira, 8 de novembro de 2013

    Um manifesto pela verdade

    por Edward Snowden [*]

    Num espaço de tempo muito breve o mundo aprendeu muito acerca de agências secretas irresponsáveis e acerca de programas de vigilância muitas vezes ilegais. Algumas dessas agências tentam, deliberadamente, ocultar a sua vigilância até mesmo de altos responsáveis e do público. Apesar de a NSA e o GCHQ [1] parecerem ser os piores transgressores – é isto que sugerem os documentos actualmente disponíveis – não devemos esquecer que a vigilância em massa é um problema global que precisa de soluções globais.

    Tais programas não são uma ameaça apenas à privacidade, eles também ameaçam a liberdade de discurso e as sociedades abertas. A existência de tecnologia de espionagem não deveria determinar a política. Temos um dever moral de assegurar que nossas leis e valores limitem programas de monitoragem e protejam direitos humanos.

    A sociedade só pode entender e controlar estes problemas através de um debate aberto, respeitoso e informado. A princípio, alguns governos, sentindo-se embaraçados pelas revelações de vigilância em massa, iniciaram uma campanha de perseguição sem precedentes para suprimir este debate. Eles intimidaram jornalistas e criminalizaram a publicação da verdade. Nesta altura, o público ainda não era capaz de avaliar os benefícios das revelações. Eles confiavam nos seus governos para decidir correctamente.

    Hoje sabemos que isto foi um erro e que tal acção não serve o interesse público. O debate que quiseram impedir agora está a acontecer em países de todo o mundo. E ao invés de fazer dano, os benefícios societais deste novo conhecimento público agora são claros, uma vez que já são propostas reformas na forma de maior supervisão e nova legislação.

    Os cidadãos têm de combater a supressão de informação sobre assuntos de importância pública vital. Contar a verdade não é um crime.


    05/Novembro/2013
    [1] NSA: National Security Agency dos EUA; GCHQ: Government Communications Headquarters do Reino Unido.

    [*] O original foi escrito por Edward Snowden em 01/Novembro, em Moscovo. A única versão publicada encontra-se em alemão naedição de 03/Novembro da revista Der Spiegel, tendo-lhe sido enviada através de um canal encriptado. A versão em inglês, traduzida por Martin Eriksson, encontra-se em meriksson.net/snowden-a-manifesto-for-the-truth . O presente texto foi traduzido da versão em inglês.

    aqui:http://resistir.info/varios/snowden_manifesto_01nov13.html

    Os nossos parceiros internacionais

    por JOSÉ MANUEL PUREZA

    Rigor não tem de rimar com injustiça punitiva. Em Portugal tem sido assim: o rigor nas contas públicas é invariavelmente invocado como pretexto para sovar o mundo do trabalho e acrescentar proventos ao lado do capital. Quando nos falam de rigor já sabemos o que vem a seguir: mais cortes a atingirem os mesmos de sempre.
    No argumentário usado para perpetuar este casamento entre rigor e injustiça tem lugar de destaque a razão provinciana de que "lá fora" (nos "nossos parceiros internacionais", entre "os peritos", "na Europa") é assim que se pensa e nem se perde tempo com discussões sobre outras possibilidades. Pois bem, "lá fora", "os nossos parceiros internacionais" pensam de maneiras muito diferentes, há muitos caminhos, há contradição entre "os peritos". O pensamento da troika é apenas um entre vários e tem por isso a autoridade de uma escolha e não mais do que de uma escolha.
    O relatório da Organização Internacional do Trabalho sobre Portugal esta semana tornado público tem, no mínimo, o mérito de mostrar que é de escolhas que se trata. A OIT mostra que Portugal pode escolher sair da crise modernizando a sua economia, criando emprego e reforçando a sua afirmação nas trocas internacionais por via da qualidade. Para isso, este nosso parceiro internacional aponta como meta a adoção de políticas que animem a procura popular (aumento dos salários mais baixos, incluindo o salário mínimo, e redução das desigualdades salariais) e que criem emprego. De acordo com o relatório, uma combinação sábia entre políticas ativas de emprego e descidas das taxas de juro permitiria criar mais de 100 mil postos de trabalho nos próximos dois anos, aumentando o produto interno em dois pontos percentuais, reduzindo em quase seis pontos o rácio entre a dívida pública e o PIB e reduzindo a prazo as despesas da Segurança Social com subsídios de desemprego ou outras prestações sociais de socorro ao mesmo tempo que se alargaria a base de recolha de receita fiscal.
    A par da busca de eficácia no combate à crise - algo que logo o situa no avesso das escolhas de afundamento sucessivo vindas da troika - a OIT coloca o combate às desigualdades no âmago da política de saída da crise. É isso que a faz advogar o reforço do rendimento social de inserção, a subida imediata do salário mínimo nacional e a revalorização da contratação coletiva contra as estratégias de isolamento de cada trabalhador na negociação cada vez mais desigual das suas condições remuneratórias e dos seus demais direitos.
    Oiçamos pois os nossos parceiros internacionais. E façamos as escolhas que a diversidade das suas perspectivas nos incita a fazer.

    aqui:http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3521112&seccao=Jos%E9%20Manuel%20Pureza&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco

    sexta-feira, 1 de novembro de 2013

    O país "normal" de Cavaco Silva

    por Daniel Vaz de Carvalho [*]

    Aparentemente a lucidez do PR começa a levantar dúvidas. Será que sabe mesmo o que diz? Vejamos, diz que é necessário "prosseguir o programa de ajustamento, para ir aos mercados e permitir o crescimento e o emprego". Mas tudo isto é contraditório.

    Dois anos e meio de ajustamento e o país está pior do que estava sob todos os aspetos. Os "mercados" puseram o país no "lixo" e não têm intenções de o tirar de lá, os juros são uma proporção cada vez maior do PIB e do défice; recessão, desemprego, falências são o resultado obtido com o "ajustamento".

    Que diz o PR? Prosseguir…para regressar aos "mercados". Mas os "mercados" não são nenhuma solução, são o problema!

    Para o PR, o país tem de parecer normal aos "mercados". Um país normal?! Um milhão de desempregados nos dados oficiais (milhão e meio efetivos), mais metade sem receber subsídio, emigração em larga escala, dezenas de falências de MPME por dia, défice e dívida descontrolados, sucessivas revisões do OE, retroatividade de cortes em reformas atribuídas, constante redução de salários e aumento de impostos sobre a população, generalizada precariedade, aumento da pobreza e desigualdades, montante dos juros superior ao défice previsto para 2014.

    Normal é, pois, os sucessivos OE serem anticonstitucionais. Normal é o governo governar contra a Constituição, errar tudo o que prevê, mentir no que promete e não haver eleições que reponham uma real normalidade democrática.

    E tudo isto é um êxito, é "normal" e tem de prosseguir…com serenidade. Isto é, as pessoas deixem de pensar, de exercer a sua cidadania e direitos, paguem e calem-se. Senão…ai os "mercados", o que será de nós!

    A DIREITA POLITICAMENTE ATACADA DE DOENÇA BIPOLAR

    A direita está como aqueles seres mentalmente perturbados daquelas tragédias de Shakespeare em que aparecem fantasmas, neste caso são os "mercados".

    A direita tem sucessivos ataques de agorafobia, entra em pânico, vislumbrando ficar perdida em situações sem conseguir ajuda …dos "mercados".

    Mais grave, são os sintomas de doença bipolar: ora estamos sem soberania, somos um protetorado devido ao programa da troika, temos que nos libertar da troika, ora se trata da "ajuda" pelos mesmos reclamada, negociada, aplaudida como a salvação para a qual era necessário fazer mais ainda. Ora é para cumprir custe o que custar, ora estamos a fazer sacrifícios, a ter medidas muito duras e, como dizia a ministra das Finanças, "queríamos ter um défice menor, mas os mercados não deixaram". Porém, no momento seguinte regressar aos mercados é apresentado como a via para o paraíso!

    Os comentadores de serviço estão atacados da mesma doença, num momento há criticas ao governo, no outro dizem que está a fazer o que tem de ser feito.

    O governo vive alternâncias ciclotímicas de euforia ora como o "sucesso" da ida aos "mercados" e de um sazonal acréscimo no PIB, ora transmitindo depressão e pânico pela ação do Tribunal Constitucional ou se for criada "instabilidade", que ele próprio nos dois casos origina.

    As jornadas parlamentares do PSD-CDS, exaustivamente propagandeadas na TV, foram dos mais completos indícios de esquizofrenia vistos na cena política. O governo transmitiu durante um dia, como se não tivesse mais nada que fazer, perante uma plateia apática e seguidista, as suas alucinações, ilusões e crenças falseadas da realidade.

    Estas "jornadas parlamentares", mais a normalidade que o PR assume, recordam-nos aquela frase de Shakespeare, no Hamlet: "Life is a tale, plenty of sound and fury told by an idiot and meaning nothing"… [*] Engenheiro.

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .       

    aqui:http://resistir.info/portugal/o_pais_30out13.html

    A banditagem da EDP

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