quinta-feira, 28 de março de 2013

A Alemanha contra a Europa – o artigo censurado pelo “El País”

Artigo do economista Juan Torres López, do Conselho Científico de ATTAC Espanha, que o El País retirou do seu site, alegando que continha afirmações que o jornal considera inapropriadas. No final do artigo, pode ler também a resposta do autor.
Manifestação "A Merkel não mada aqui" em Lisboa. Foto de Jorge Cossta

É muito significativo que habitualmente se fale de “castigo” quando se referem as medidas que Merkel e os seus ministros impõem aos países mais afetados pela crise.

Dizem aos seus compatriotas que têm de castigar a nossa irresponsabilidade para que o nosso esbanjamento e as nossas dívidas não sejam agora pagas pelos alemães. Mas o raciocínio é falso, pois os irresponsáveis não foram os povos que Merkel se dedica a castigar, mas sim os bancos alemães que ela protege e os de outros países aos quais emprestaram dinheiro, eles sim com irresponsabilidade, para obter ganhos multimilionários.

Os grandes grupos económicos europeus conseguiram estabelecer um modelo de união monetária muito imperfeito e assimétrico que logo reproduziu e ampliou as desigualdades originais entre as economias que a integravam. Além disso, graças à sua enorme capacidade investidora e ao grande poder dos seus governos, as grandes empresas do Norte conseguiram apossar-se de grande quantidade de empresas e mesmo de setores inteiros dos países da periferia, como a Espanha. Isso provocou grandes défices comerciais nestes últimos e superávit sobretudo na Alemanha e em menor medida noutros países.

Paralelamente, as políticas dos sucessivos governos alemães concentraram ainda mais o rendimento no cume da pirâmide social, o que aumentou o seu já alto nível de poupança. De 1998 a 2008, a riqueza dos 10% mais ricos da Alemanha passou de 45% para 53% do total, a dos 40% seguintes de 46% para 40% e a dos 50% mais pobres de 4% para 1%.

Essas circunstâncias puseram à disposição dos bancos alemães enormes quantidades de dinheiro. Mas em lugar de empregá-lo a melhorar o mercado interno alemão e a situação dos níveis de rendimento mais baixos, usaram-no (uns 704.000 milhões de euros até 2009, segundo o Banco Internacional de Pagamentos) para financiar a dívida dos bancos irlandeses, a bolha imobiliária espanhola, o endividamento das empresas gregas ou para especular, o que fez com que a dívida privada na periferia europeia disparasse e que os bancos alemães se enchessem de ativos tóxicos (900.000 milhões de euros em 2009).

Ao explodir a crise, ressentiram-se gravemente mas conseguiram que a sua insolvência, em lugar de se manifestar como consequência da sua grande imprudência e irresponsabilidade (à qual Merkel nunca se refere), se apresentasse como o resultado do esbanjamento e da dívida pública dos países onde estavam os bancos a quem emprestaram. Os alemães retiraram rapidamente o seu dinheiro destes países, mas a dívida ficava nos balanços dos bancos devedores. Merkel erigiu-se na defensora dos banqueiros alemães e, para ajudá-los, pôs em marcha duas estratégias. Uma, os resgates, que venderam como se se destinassem a salvar os países, mas que na realidade consistem em dar aos governos dinheiro em empréstimos que serão pagos pelos povos, para transferir para os bancos nacionais de forma a que estes se recuperem quanto antes e paguem em seguida aos alemães. A outra estratégia foi impedir que o BCE cortasse de raiz os ataques especulativos contra a dívida da periferia para que, ao subirem os prémios de risco dos outros, baixasse o custo com que a Alemanha se financia.

Merkel, como Hitler, declarou guerra ao resto da Europa, agora para garantir o seu espaço vital económico. Castiga-nos para proteger as suas grandes empresas e bancos e também para ocultar ao seu eleitorado a vergonha de um modelo que fez com que o nível de pobreza no seu país seja o mais alto dos últimos 20 anos, que 25% dos seus trabalhadores ganhe menos de 9,15 euros/hora, ou que a metade da sua população receba, como disse, uns miseráveis 1% de toda a riqueza nacional.

A tragédia é a enorme conivência entre os interesses financeiros paneuropeus que dominam os nossos governos, e que estes, em vez de nos defenderem com patriotismo e dignidade, nos traiam para atuar como meros comparsas de Merkel.
 
Artigo publicado no site da Attac Espanha
 
Justificação do El País para retirar o artigo do site:

O El País retirou do seu site o artigo “A Alemanha contra a Europa”, assinado por Juan Torres López e publicado na sua edição da Andaluzia, porque continha afirmações que este jornal considera inapropriadas. O El País lamenta que um erro nas tarefas de supervisão tenha permitido a publicação do citado material. As opiniões expressadas por Torres López só representam ao autor.
 
O economista respondeu no seu blog:

Diante da retirada do meu artigo “a Alemanha contra a Europa” do site do El País, quero manifestar o seguinte:

– Sem querer avaliar a decisão do diário, lamento que se interprete que a tese desse artigo é comparar a senhora Merkel com Hitler, tal e como algumas pessoas estão a dar a entender na rede. Lamento-o porque acho que é evidente que de forma alguma são pessoas comparáveis ou que as suas políticas sejam igualmente daninhas. E, sobretudo, porque acho que de forma alguma se pode deduzir isto do meu texto. E mais, acho que interpretá-lo assim só serve para desviar a atenção sobre a questão de fundo do meu artigo que é claramente outro.

– É verdade que no artigo afirmo que, na minha opinião, a Alemanha declarou guerra económica contra o resto de Europa e que comparo isso com a busca do espaço vital que levou Hitler a desencadear a guerra, mas acho que isto deve ser entendido como a comparação de dois factos históricos lamentáveis ainda que de fatura desigual, e não como a equiparação de dois líderes políticos.

– Lamento também que tenha de fazer este tipo de comparações que envolvem um povo que admiro, mas acho que os europeus têm a obrigação de recordar o dano tão grande que já em outras ocasiões fizemos por dar prioridade aos interesses financeiros e das grandes corporações, como acho que está a acontecer agora. Eu mesmo lamentei nalguns outros artigos que a Alemanha não lembre o que sofreu devido às reparações de guerra que tão injusta e equivocadamente lhe impuseram outras potências europeias.

– Lamento finalmente os problemas que estas interpretações tenham ocasionado ao diário e a seus leitores e leitoras, e que estes não possam continuar a lê-lo no site.
 
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

terça-feira, 26 de março de 2013

A guerra do ocidente contra a África

 DanGlazebrook*

A imagem clássica da África, difundida pela imprensa-empresa ocidental – um saco gigante, cheio até a boca de guerras infindáveis, fome, crianças abandonadas – cria a ilusão de um continente que dependeria existencialmente do que lhe dê a caridade ocidental. A verdade é exaCtamente o contrário disso. O ocidente é que depende existencialmente do que extraia da África.
 


O que o ocidente obtém da África é obtido de várias, muitas maneiras. Dentre essas maneiras, os fluxos ilícitos de recursos; os lucros que, invariavelmente, acabam nos cofres dos bancos ocidentais pelas trilhas dos paraísos fiscais, como já está fartamente documentado no livro PoisonedWells [Poços envenenados], de Nicholas Shaxson. Ou pelo mecanismo de extorsão do sistema das dívidas nacionais, pelo qual bancos ocidentais emprestam dinheiro a governantes militares, quase sempre postos no poder com a ajuda de forças ocidentais, como Mobutu, ex-presidente do Congo; esses governantes apropriam-se do dinheiro emprestado, quase sempre em contas privadas no próprio banco que emprestou ao país, cabendo ao país a missão de pagar juros exorbitantes que crescem exponencialmente.

Pesquisa recente de LeonceNdikumana e James K. Boyce descobriu que mais de 80 centavos de cada dólar emprestado deixaram o país devedor em “voos do capital”, no período de um ano, sem jamais terem sido investidos no país devedor; e que US$ 20 bilhões são drenados da África, por ano, como pagamento “do serviço da dívida” desses “empréstimos” essencialmente fraudulentos.

Outra via pela qual a África serve ao Ocidente, muito mais que o contrário, é o saque de minérios. Países como a República Democrática do Congo são saqueados por milícias armadas que roubam recursos naturais do país e os revendem a preços inferiores aos dos mercados a empresas ocidentais; muitas dessas milícias são controladas de países vizinhos, como Uganda, Ruanda e Burundi, os quais, por sua vez, são patrocinados pelo ocidente - como relatam rotineiramente os relatórios da ONU.

E há também a via, talvez a mais importante, pela qual a África serve ao Ocidente, muito mais que o contrário: os preços escandalosamente baixos pagos na compra de matérias primas da África e, sempre, da força de trabalho africana que minera minérios, cultiva o que seja cultivável ou colhe o que tenha de ser colhido. Assim acontece que a África, de fato, subsidia os altos padrões de vida no ocidente e as empresas e corporações ocidentais.

Esse é o papel atribuído à África pelos donos da economia capitalista ocidental: fornecedora de recursos e de mão de obra de baixo preço. Para que o trabalho e os recursos continuem baratos, exige-se, basicamente, que a África continue subdesenvolvida e pobre; se prosperar, os salários crescem; se se desenvolver em termos tecnológicos, os preços dos recursos se somarão ao valor agregado antes da exportação; e valor agregado tem de ser pago.

Assim sendo, a extração de petróleo e de recursos minerais a baixo preço depende de manter os estados africanos frágeis e desunidos. A República Democrática do Congo, por exemplo - cujas minas produzem dezenas de bilhões de dólares de minérios todos os anos - só arrecadou, em recente ano fiscal, miseráveis US$32 milhões de impostos sobre material extraído das minas, por causa das guerras por procuração que o ocidente mantêm ativas na região, entre milícias patrocinadas pelo ocidente.

A União Africana (UA), criada em 2002, surgiu como ameaça nova contra tudo isso: um continente africano mais integrado e unificado, não seria tão facilmente saqueado. O que mais preocupou os estrategistas ocidentais foram os aspectos financeiros e militares da unificação africana. Num nível financeiro, os planos para a constituição de um Banco Central Africano (que criaria uma moeda africana única, o dinar, com lastro-ouro) ameaçariam gravemente a capacidade de EUA, Reino Unido e França para continuar a saquear o continente. Todo o comércio africano feito mediante o dinar-ouro implicaria, em última instância, que os países ocidentais teriam de pagar em ouro por recursos africanos que comprassem, não mais, como até agora, em libras, francos ou dólares que, bem feitas as contas, sempre podem ser impressos em papel podre.

As duas outras instituições financeiras previstas pela União Africana - o Banco Africano de Investimentos e o Fundo Monetário Africano - também comprometeriam fatalmente a capacidade de instituições como o Fundo Monetário Internacional para manipular as políticas econômicas dos países africanos mediante seu monopólio das finanças. Como o economista Jean-Paul Pougala mostrou, o Fundo Monetário Africano, com capital inicial previsto de $42 bilhões “rapidamente suplantará as atividades africanas do Fundo Monetário Internacional, o qual, com apenas $25 bilhões, conseguiu pôr de joelhos o continente inteiro e obrigou a África a engolir um processo muito questionável de privatizações, forçando os países africanos a converter-se em monopólios privados.”

Além desses desenvolvimentos fiscais potencialmente ameaçadores, houve também movimentos no front militar. A reunião de cúpula da União Africana em 2004 em Sirte, Líbia, decidiu elaborar uma Carta de Defesa e Segurança Comum Africana, que incluía um artigo que estipulava que “qualquer ataque contra um país africano é considerado ataque contra o continente como um todo” - copiada, de fato, da Carta da Otan. Em seguida, em 2010, foi criada uma Força Reserva Africana (FRA), com delegação para defender e fazer valer as definições da Carta de Defesa. Bem evidentemente, se a Otan tivesse de desmontar a unidade africana pela força das armas, quanto mais depressa agisse, melhor para a Otan.

Mas a constituição da Força de Reserva Africana representou, além de uma ameaça, também uma oportunidade. Embora houvesse, sem dúvida, a possibilidade de ela vir a ser força genuína para a independência, para resistir ao colonialismo e para defender a África contra a agressão imperialista, criava-se, simultaneamente, a possibilidade de, adequadamente manobrada e sob a liderança adequada, aquela mesma força converter-se em seu oposto - uma força para promover a subjugação colonial, ligada numa cadeia de comando ocidental. As apostas eram - e são - altíssimas.

Os preparativos militares dos ocidentais na África

O ocidente também já iniciara seus preparativos militares para a África. O declínio econômico do ocidente, além da ascensão da China, indicava que o ocidente já não poderia depender tão essencialmente da chantagem econômica e da manipulação financeira para manter o continente fraco e subjugado. Vendo claramente que isso implicava a necessidade crescente de ação militar para manter a dominação, documento publicado em 2002 pela Iniciativa Grupo de Política para o Petróleo Africano [orig. AfricanOilPolicyInitiativeGroup] recomendava que “um foco novo e vigoroso sobre a cooperação militar dos EUA na África subsaariana inclua o projeto de uma estrutura de comando militar subunificada que possa produzir dividendos significativos na proteção dos investimentos dos EUA.” Essa estrutura veio à luz em 2008, sob o nome de Comandos dos EUA na África, AFRICOM.

Contudo, os custos - econômicos, militares e políticos – da intervenção direta no Iraque e no Afeganistão (só o custo da guerra do Iraque já ultrapassa os US$ 3 trilhões) indicavam que o AFRICOM teria de depender basicamente de tropas locais, para o serviço de guerrear e morrer. O AFRICOM teria de ser o corpo que coordenaria (e coordenou) a subordinação de exércitos africanos presos a uma cadeia ocidental de comando. Isso, em outras palavras, converteu exércitos africanos em exércitos ocidentais ‘por procuração’.

O maior obstáculo a esse plano era a própria União Africana, que, em 2008, categoricamente rejeitou qualquer presença de militares dos EUA em solo africano, o que forçou o AFRICOM a instalar seu quartel-general em Stuttgart, Alemanha, humilhação para o presidente George W. Bush, que já anunciara, pessoalmente, sua intenção de implantar o AFRICOM em território africano. O pior viria em 2009, quando o então líder líbio MuammarKadafi – o mais empenhado inimigo das políticas imperialistas no continente – foi eleito para presidir a União Africana. Sob o comando de Kadafi, a Líbia já se convertera em principal mantenedora e financiadora da União Africana. Agora, o mesmo Kadafi propunha processo rápido de integração africana, que incluía a constituição de exército africano unificado, moeda única e passaporte único.

O destino de Kadafi já é de conhecimento público. Depois de montar a invasão da Líbia a partir de um pacote de mentiras ainda maior do que o que servira de pretexto para a invasão do Iraque, a Otan destruiu a Líbia, reduziu o país à condição de mais um estado africano falhado e facilitou a tortura e o assassinato de Kadafi. Assim se viu livre de seu principal opositor.

Naquele momento, tudo levava a crer que a União Africana teria sido domada. Três de seus membros – Nigéria, Gabão e África do Sul – votaram a favor da intervenção militar na Líbia, no Conselho de Segurança da ONU; e o novo presidente, Jean Ping, apressou-se a reconhecer o novo governo que a Otan impôs na Líbia e pôs-se a denegrir as realizações de Kadafi. Fez mais: proibiu a assembleia da União Africana de fazer um minuto de silêncio, depois do assassinato de Kadafi.

Mas esse quadro não durou. Os sul-africanos foram os primeiros a arrepender-se do apoio à intervenção; nos meses seguintes, o presidente Zuma e o ex-presidente ThaboMbeki fizeram sérias críticas à Otan. Zuma disse – com razão – que a Otan agira ilegalmente ao impedir o cessar fogo e as negociações que a Resolução da ONU exigia, já intermediados pela União Africana e com os quais Kadafi já concordara.

Mbeki foi além: disse que o Conselho de Segurança da ONU, ao ignorar as propostas da União Africana, estava tratando “os povos da África com absoluto desprezo”, o que fez aumentar “a sanha das potências ocidentais para intervir em nosso continente, inclusive com força armada, para proteger os próprios interesses, sem considerar a posição dos próprios africanos.”

Experiente diplomata sul-africano, do Departamento de Relações Internacionais do Ministério de Relações Exteriores da África do Sul, disse que “muitos estados da Comunidade Sul Africana de Desenvolvimento [orig. Southern AfricanDevelopmentCommunity, SADC], sobretudo África do Sul, Zimbábue, Angola, Tanzânia, Namíbia e Zâmbia, que tiveram papel chave nas lutas de libertação sul-africanas, não estavam satisfeitos com o modo como Ping conduziu a questão do bombardeio da Líbia pelos jatos da Otan.” Em julho de 2012, Ping foi forçado a deixar a presidência da União Africana e foi substituído – com apoio de 37 estados africanos – por NkosazanaDlamini-Zuma, ex-ministra de Relações Exteriores da África do Sul, braço direito de Mbeki e, bem claramente, militante do campo oposto ao dos capitulacionistas de Ping. Mais uma vez, a União Africana estava sob comando de forças comprometidas com genuína independência.

O assassinato de Kadafi, porém, não tirou de campo apenas um poderoso membro da União Africana; removeu também o eixo em torno do qual girava todo o sistema de segurança regional na região do Sahel-Sahara. Usando cuidadosa e complexa mistura de força, projeto e desafio ideológico e negociação, a Líbia de Kadafi sempre foi a cabeça de um sistema de segurança transnacional que conseguira impedir que milícias salafistas se implantassem na região - como reconheceu, em 2008, o embaixador Christopher Stevens, dos EUA: “O governo da Líbia empreendeu operações agressivas para interromper o fluxo de combatentes estrangeiros, inclusive com monitoramento cerrado dos portos e aeroportos de entrada, e rechaçou o apelo ideológico do Islã radical (…). A Líbia coopera com estados vizinhos no Saara e Sahel, para conter o fluxo de combatentes extremistas e terroristas transnacionais. MuammarKadafi negociou recentemente um muito divulgado acordo com líderes tribais tuaregues da Líbia, Chade, Niger, Mali e Argélia, conseguindo que desistissem de suas aspirações separatistas e das práticas de contrabando (de armas e de extremistas transnacionais) em troca de assistência para o desenvolvimento dos seus países e apoio financeiro (…) Nossa avaliação é que o fluxo de combatentes estrangeiros da Líbia para o Iraque e o fluxo reverso de veteranos do Iraque para a Líbia diminuiu por causa da cooperação entre a Líbia e outros estados” - disse Stevens.

Essa “cooperação entre a Líbia e outros estados” refere-se à CEN-SAD (Communityof Sahel-SaharanStates / Comunidade de Estados Sahel-Saharianos), organização lançada por Kadafi em 1998 visando ao livre comércio, livre movimentação de pessoas e desenvolvimento regional de seus 23 estados-membros, mas com foco principal na segurança mútua e na paz. Além de conter a influência das milícias salafistas, a CEN-SAD desempenhou papel chave mediando conflitos entre Etiópia e Eritreia e na região do rio Mano; e negociou solução duradoura e sustentável para a rebelião no Chade. A CEN-SAD tinha sede em Trípoli e a Líbia, sem dúvida, era a principal força do grupo. De fato, o apoio da CEN-SAD foi fator determinante para a eleição de Kadafi à presidência da União Africana em 2009.

A própria eficácia desse sistema de segurança local foi um duplo golpe contra a hegemonia do ocidente na África: não apenas aproximou a África de uma condição de paz, na qual a prosperidade local tornava-se possível, como, também, simultaneamente, esvaziava o pretexto chave para todas as intervenções militares do ocidente no continente. Os EUA haviam criado uma sua ‘Parceria de ContraterrorismoTrans-Sahara’ [orig. ‘Trans-SaharaCounter-TerrorismPartnership’ (TSCTP)], mas, como MutassimKadafi (conselheiro de Segurança Nacional da Líbia) explicou à ex-secretária de Estado Hillary Clinton em Washington em 2009, a “Comunidade de Estados Sahel-saharianos (CEN-SAD) e a Força de Reserva tornam dispensável qualquer TSCTP.”

Enquanto Kadafi esteve no poder e comandou um efetivo e poderoso sistema de segurança regional, as milícias salafistas no Norte da África não podiam ser usadas como “terrível ameaça” para justificar invasões e ocupação pelo ocidente, para salvar os nativos desamparados. Ao conseguir fazer o que o ocidente diz desejar (mas, em todos os pontos, fracassa sempre) - neutralizar o “terrorismo islamista” – a Líbia tirou dos imperialistas um pretexto chave para todas as guerras que fizeram contra a África. Ao mesmo tempo, impediram que as milícias continuassem a desempenhar outra função histórica que sempre tiveram, servindo ao ocidente como força ‘alugada’, que agia por procuração, para desestabilizar estados seculares independentes, como Mark Curtis documentou em seu excelente Secret Affairs. O ocidente apoiou esquadrões da morte salafistas em campanhas para desestabilizar a URSS e a Iugoslávia, com grande sucesso; e planejava fazer o mesmo contra a Líbia e a Síria.

A África depois de Kadafi

Com a Otan trabalhando para fazer da Líbia estado falhado, esse sistema local foi destroçado. As milícias salafistas não receberam só equipamento militar ultra moderno, cortesia da Otan; receberam também carta branca para saquear os arsenais do governo líbio e um paraíso seguro a partir do qual organizar ataques por toda a região. As fronteiras entraram em colapso, com a aparente conivência do novo governo líbio e de seus patrocinadores na Otan – como registra um trágico relatório da empresa de segurança global Jamestown Foundation.

Segundo esse relatório, “Al-Wigh era importante base estratégica do regime Kadafi, localizada em região próxima das fronteiras com Niger, Chade e Argélia. Depois da queda de Kadafi, a base passou a ser controlada por combatentes da tribo Tubu, sob comando nominal do Exército Líbio, mas sob comando local de um comandante tubu, SharafeddineBarkaAzaiy, que reclamou que “durante a revolução, controlar essa base era assunto de máxima importância estratégica. Conseguimos ocupar a base. Agora nos sentimos abandonados. Não temos equipamento suficiente, nem viaturas nem armas para proteger a fronteira. Embora sejamos parte do exército nacional, ninguém nos paga soldo.”

O relatório conclui que “o Conselho de Governo Nacional Líbio (GNC) e o que havia antes dele, Conselho Nacional de Transição (TNC), falharam na segurança de importantes instalações militares no sul e permitiram que a segurança de vastas porções de fronteira no sul fossem de fato ‘privatizadas’ nas mãos de grupos tribais, conhecidos há muito tempo pela prática, ali tradicional, de contrabando. Isso, por sua vez, põe em risco a segurança da infraestrutura do petróleo líbio e a segurança das regiões vizinhas. Com a venda e o transporte de armas líbias já convertidos em mini-indústria na era pós-Kadafi, as imensas quantidades de dinheiro com que conta a Al-Qaeda no Maghreb Islâmico conseguem abrir muitas portas, em região empobrecida e subdesenvolvida. Ainda que a invasão francesa no norte do Mali consiga desalojar os militantes islamistas, nem assim haverá o que impeça os mesmos grupos de estabelecer novas bases nas áreas mal controladas do deserto selvagem no sul da Líbia. Enquanto não houver estruturas de segurança controladas por autoridade central na Líbia, o interior desse país continuará a ser ameaça de segurança para todas as demais nações na região.”

A vítima mais óbvia dessa desestabilização foi o Mali. Não há analista sério que não saiba que a tomada do Mali pelos ossalafistas é consequência direta da ação da Otan na Líbia. Um dos resultados do avanço da desestabilização promovida pela Otan no Mali é que a Argélia – que perdeu 200 mil cidadãos numa guerra civil contra os islamistas nos anos 1990 – está hoje cercada por milícias salafistas pesadamente armadas em duas fronteiras: ao leste (fronteira com a Líbia) e ao sul (fronteira com o Mali). Depois da destruição da Líbia e da derrubada de Hosni Mubarak no Egito, a Argélia é hoje o único estado do norte da África ainda governado pelo partido anticolonialista que conquistou a independência contra a tirania das forças coloniais europeias.

Esse postura de independência ainda está bem evidente na atitude da Argélia em relação à África e à Europa. No front africano, a Argélia é forte apoiadora da União Africana, contribuindo com 15% do orçamento da organização; e tem 16 bilhões de dólares empenhados na constituição do Fundo Monetário Africano, o que faz dela o maior contribuinte do FMA. E nas relações com a Europa, a Argélia tem-se recusado repetidamente a fazer o papel de nação subordinada que a Europa espera dela. Argélia e Síria foram os dois únicos países da Liga Árabe que votaram contra o bombardeio da Otan contra a Líbia e a Síria. E, como se sabe, a Argélia deu abrigo a membros da família Kadafi que fugiam de ser massacrados pela Otan.

Mas, do ponto de vista dos estrategistas europeus, muito mais preocupante que tudo isso é, provavelmente, que a Argélia – com o Irã e a Venezuela – constituem o que eles chamam de uma “[Organização dos Países Produtores de Petróleo] OPEC linha dura”, empenhados em vender caro o acesso aos seus recursos nacionais. Como se lia recentemente em furibundo artigo publicado no London Financial Times, “o nacionalismo dos recursos” impera. Resultado disso, “as Grandes do Petróleo padecem muitas dificuldades na Argélia; as empresas reclamam da burocracia que as esmaga, dos controles fiscais duríssimos e do comportamento abusivo da Sonatrach, a empresa estatal de energia, que participa de quase todos os contratos de petróleo e gás.” Na sequência, o artigo observa que a Argélia implementou “um controverso imposto monstro” em 2006, e cita um executivo de petroleira ocidental em Argel, que disse que “as empresas [de petróleo] estão fartas da Argélia.”

É instrutivo observar que o mesmo jornal também acusou a Líbia de “nacionalismo dos recursos” - ao que parece, o crime mais hediondo, na avaliação daqueles leitores -, apenas um ano antes da invasão da Otan.
Evidentemente, “nacionalismo dos recursos” significa precisamente que os recursos de uma nação sejam usados, em primeiro lugar, para promover o desenvolvimento em benefício da própria nação, não em benefício de empresas estrangeiras e, nesse sentido, a Argélia bem merece a ‘acusação’. A Argélia exporta mais de cerca de $70 bilhões em petróleo por ano, e muito desse dinheiro tem sido usado em investimentos massivos em moradia e saúde pública, além de um financiamento recente de $23 bilhões, num programa de estímulo para pequenos comerciantes. De fato, esses altos níveis de investimentos sociais são considerados por muitos como a principal razão pela qual não se viram levantes da “Primavera Árabe” na Argélia, em anos recentes.

A mesma tendência de “nacionalismo dos recursos” também aparece anotada em recente material distribuído por STRATFOR, empresa de inteligência global, que escreveu que “a participação estrangeira na Argélia sofreu, em larga medida, por causa de políticas protecionistas aplicadas pelo governo militar fortemente nacionalista.” Seria evento particularmente preocupante, diz STRATFOR, em momento em que a Europa aproxima-se de situação em que se tornará muito mais dependente do gás argelino, com as reservas no Mar do Norte em processo de esgotamento. “Desenvolver a Argélia como grande exportador de gás natural é imperativo econômico e estratégico para os países da União Europeia, em momento em que a produção da commodity entra em declínio terminal na próxima década. A Argélia já é importante fornecedor de energia para o continente, mas a Europa precisará de acesso expandido àquele gás natural, para suprir o declínio de suas reservas indígenas” – diz STRATFOR.

Os planos das Grandes do Petróleo para a África

Prevê-se que as reservas britânicas e holandesas de gás no Mar do Norte estarão esgotadas no final dessa década; e que as da Noruega entrarão em acentuado declínio a partir de 2015. Com a Europa temerosa de tornar-se superdependente do gás da Rússia e da Ásia, o relatório anota que a Argélia - com reservas de gás natural estimadas em 4,5 trilhões de metros cúbicos, e reservas de gás de xisto de 17 trilhões de metros cúbicos – tornar-se-á fornecedora essencial. Mas o maior obstáculo para que a Europa controle esses recursos ainda é o governo da Argélia – com suas “políticas protecionistas” e seu “nacionalismo dos recursos”.

Sem dizê-lo abertamente, o relatório conclui sugerindo que uma Argélia desestabilizada e convertida em “estado falido” seria sempre preferível a uma Argélia sob governo “protecionista”. E sugere que “o envolvimento que se vê hoje das majors de energia da União Europeia em países de alto risco, como Nigéria, Líbia, Iêmen e Iraque, indica saudável tolerância à instabilidade e a problemas de segurança.”
Em outras palavras: em tempos de segurança privada, o BigOil já não carece de estabilidade ou da proteção do estado para seus investimentos. Zonas de desastre são toleráveis. Intoleráveis, só estados fortes e independentes.

Já aparece, portanto, no radar dos interesses estratégicos da segurança energética do ocidente, uma Argélia reduzida a estado falhado, exatamente como o Iraque, o Afeganistão e a Líbia um dia apareceram no mesmo radar.

Com isso em mente, é fácil ver como a política aparentemente contraditória de armar milícias salafistas num primeiro momento (na Líbia) e imediatamente depois passar a bombardeá-las (no Mali) faz, de fato, perfeito sentido. A missão francesa de bombardeio visa, nas próprias palavras dos franceses, à “total reconquista” do Mali. Na prática, implica empurrar os rebeldes gradualmente para o norte do país. Quer dizer: diretamente para a Argélia.

Vê-se afinal que a deliberada destruição do sistema de segurança que a Líbia coordenava em toda a região do Sahel-Sahara trouxe vastos benefícios para os que contam com que a África permaneça presa no papel de fornecedora subdesenvolvida de matéria prima barata. O processo já armou, treinou e assegurou território para milícias que, em seguida, serão usadas na destruição da Argélia - o único grande estado rico em recursos naturais do norte da África ainda empenhado numa genuína unidade africana, com independência. A operação também persuadiu alguns africanos de que - diferente da rejeição unânime contra o AFRICOM, há pouco tempo - eles realmente precisam, hoje, de que o ocidente os “proteja” daquelas milícias.

Como a clássica venda de proteção à moda das máfias, o ocidente cuida de tornar sua proteção “necessária”: arma e atiça ele mesmo as forças contra as quais, adiante, as pessoas terão de ser protegidas.
 Agora, a França está ocupando o Mali; os EUA estão montando uma nova base de drones no Niger; e o primeiro-ministro britânico David Cameron fala de seu compromisso com uma nova “guerra ao terror” que se alastrou sobre seis países e durará décadas.

Mas nem tudo caminha bem, no front imperialista. Longe disso, porque o ocidente, sem dúvida alguma, contava com não ter de mobilizar seus próprios soldados. O objetivo inicial era sugar a Argélia e colhê-la exatamente na mesma armadilha já usada com sucesso contra a União Soviética nos anos 1980 – exemplo anterior de Reino Unido e EUA, patrocinando violenta insurgência sectária nas fronteiras do território inimigo, para atrair o inimigo-alvo para guerra destrutiva de retaliação. A guerra da URSS no Afeganistão, no final, não apenas fracassou: ela também, no processo, destruiu a moral e a economia do país e foi fator chave por trás da autodestruição do estado soviético em 1991.

Mas a armadilha para pegar a Argélia não funcionou. A jogada de Clinton e François Hollande, fazendo a cena do ‘policial bonzinho’ e ‘policial durão’ – uma “pressionando para a ação” em Argel, em outubro; e as ameaças dos franceses, dois meses depois – deu em nada.

Simultaneamente, em vez de se manterem fiéis ao roteiro, os imprevisíveis salafistas, na função de simulacros locais do ocidente, optaram por expandir sua base no norte do Mali, não na direção da Argélia, como previsto, mas para o sul, rumo a Bamako, ameaçando desestabilizar um regime aliado do ocidente, ali instalado, por golpe, menos de um ano antes. Os franceses foram obrigados a intervir, para mandar os salafistas de volta para o norte, de volta contra o estado que, desde o início, deveria ter sido seu alvo real.

Até aqui, essa invasão parece contar com certo nível de apoio entre os africanos que temem os salafistas simulacros do Ocidente, ainda mais do que temem os próprios soldados ocidentais. Mas, à medida que a ocupação se aprofunde, desconstruindo a credibilidade dos salafistas e ultrapassando-os em número de soldados ocupantes, ao mesmo tempo em que se for conhecendo a brutalidade dos ocupantes e de seus aliados… então, veremos. Veremos quanto tempo durará tudo isso.

(*no Al-AhramWeekly, 26.02.2013)

http://www.odiario.info/?p=2813 

segunda-feira, 25 de março de 2013

A porta giratória*



25.Mar.13 ::
O “maravilhoso mundo dos comentadores”, como há anos um jornal o designava, está em fase de baralhar e dar de novo. São em regra sempre os mesmos e, sobretudo, têm todos a mesma origem e partilham o mesmo leque ideológico: aquele que o sistema consente, usando a expressão de Chomsky. Todos fazem mais do que “comentar”: estão a fazer pela vida, seja qual for a escala em que se considere a questão.



É mais do que sabido o conceito da “porta giratória” entre cargos governativos e cargos na administração de grandes empresas: governantes que, acabado o seu mandato público, de repente se vêm em lugares chorudamente pagos em empresas privadas. E não é raro que se trate de empresas com quem, enquanto governantes, tinham anteriormente estabelecido vultuosos contratos e negócios.

Há naturalmente excepções, como a da multinacional farmacêutica que descobriu em José Sócrates insuspeitos dotes para o seu ramo e o contratou, encarregando o “filósofo”/farmacêutico de uma qualquer tarefa de influência, bem paga como ele merece. E há outros casos, como o do trânsito de Jorge Coelho de responsável pelas Obras Públicas no governo de Guterres para a presidência da Mota-Engil, que fora – ela ou empresas e consórcios em que participa - não pouco beneficiada nos negócios durante a sua gestão ministerial. Ele foram as milionárias concessões rodoviárias, ele foram as SCUT’s, ele foi o 2º acordo com a Lusoponte, ele foi o prolongamento do prazo da concessão do maior terminal de contentores do Porto de Lisboa, entre outros.

E agora que informam os jornais? Que Jorge Coelho abandona a presidência da Mota-Engil e “regressa à política”. Dar-se-á o caso de estarmos perante uma nova rotação da “porta giratória”? É que, por curiosa coincidência, há bem pouco o governo anunciou o “plano de reestruturação” do Porto de Lisboa, envolvendo um investimento total de 1050 milhões €. Plano que envolve a monstruosa e irracional construção de um terminal de contentores na Trafaria e um novo golpe em Lisboa enquanto cidade portuária, mas que foi calorosamente aplaudido por António Costa, que desconhece o papel central que a actividade portuária representa na história e na identidade da cidade.

E mais: terminal que envolverá direitos anteriormente cedidos à Liscont, em que a Mota-Engil participa.
Pode tratar-se de uma simples coincidência. Mas também não custa imaginar nesta movimentação a Mota-Engil a chegar-se à frente. O país afunda-se na recessão e o povo na miséria. Mas enquanto houver algum osso para roer os abutres mantêm-se a postos, empoleirados sobre os partidos da “alternância”.

*Este artigo foi publicado no «Avante!» n.º 2051, 21.03.2013

quinta-feira, 21 de março de 2013

Liberdade de Imprensa/Liberdade de Empresa - Censura e manipulação


por César Príncipe [*]

 
Tudo o que o homem não conhece não existe para ele. Por isso, o mundo tem para cada um o tamanho que abrange o seu conhecimento.
Carlos Bernardo González Pecotche [1]

A consciência individual é anulada pela quantidade de informação empacotada.
Edward W. Said [2]
Antigamente era assim, hoje é diferente. Os actores e os actos da Censura no Regime Democrático adaptaram-se ao novo contexto. Quais as diferenças formais e funcionais entre a Censura do Estado Novo e a Censura do Novo Estado? Muitas há e não seria historicamente fundamentado nem intelectualmente correcto meter as duas no mesmo saco ou no mesmo Index. As vicissitudes e os desenganos deste ciclo democrático não justificam equiparação apressada nem cegueira relativamente às malhas e manhas da Nova Administração da Opinião Pública. Comecemos pelas alterações gerais do regime censório. No plano físico da Arquitectura do Poder, verificou-se uma mudança de domicílio ou uma deslocalização. Na verdade, no período do Estado Novo/Fascista, a Censura passou da fase castrense à fase paisana (não deixando, todavia, nos seus 48 anos, de incorporar militares na Guerra Civil da Informação-Contra-Informação), sedeando os Serviços Centrais no Palácio Foz (Lisboa) e em delegações distritais, com especial zelo no Porto, onde se editavam três centenários matutinos: O Comércio do Porto, Jornal de Notícias, O Primeiro de Janeiro. Conquistada a Liberdade de Imprensa, em 25 de Abril de 1974, naturalmente a Comunicação passou a espelhar a nova correlação de forças, elevando a rua a protagonista da revolução. O modelo mediático popular e revolucionário alterar-se-ia a partir do 25 de Novembro de 1975, paulatinamente emergindo outro modelo, elitista e contra-revolucionário, corporizado na Rede Nacional-Imperial da Informação. Apontaremos algumas singularidades do actual paradigma censório. A Censura desocupou os edifícios oficiais e camuflou-se nas empresas de Comunicação, investindo nas respectivas funções e missões, já não a patente de coronel, mas a de bacharel. Isto é, o regime censório de fachada democrática, compelido a esconder as vergonhas do fascismo, acabaria por resolver as suas necessidades com esperteza e poupança: passou a exercer o Exame Prévio dentro do espaço empresarial e redactorial, dando lugar a uma nova figura executiva. Essa nova figura reconhecer-se-á no director-censor ou no censor-editor, hierarquizadores de evidências, manipulações e omissões. Este golpe de mestre tem permitido disfarçar a existência de um corpo censório, colando as duas peles (jornalista e censor) numa só pele, numa só pena e num só salário. Os censores acobertam-se, agora, sob a capa da Carteira Profissional de Jornalista. O capitalismo procedeu a uma vingança a frio, com requintes sadomasoquistas: transferiu as atribuições e o odioso da Máquina Censória. Também evitou encargos com aposentos distintos. Assim se processou a ascensão e consagrou a promoção do Censor News: Leve dois e pague um . A chamada classe jornalística e os naipes de colaboradores movem-se neste território e neste contraditório. A selecção dos comunicadores assenta mais no mercado do que no mérito. A Liberdade de Empresa sobrepôs-se à Liberdade de Imprensa. Os grupos económicos assumiram o encargo político de triar os mensageiros e assessorar a gover(nação) e, amiúde, certa oposição, parceira da alternância, além de alienar a psicologia colectiva e desincentivar a democracia participativa, regendo-se pela máxima romana: o mínimo de pão e o máximo de circo. Lançados os dados, importa apurar em que medida os assalariados da República Mediática ou da coisa pública e publicada não serão cúmplices da lei da rolha do BCI/Bloco Central de Interesses. De facto, confrontados com os Códigos de Barras Deontológicas e os Artigos da Constituição, não poucos optam pela Caninização ou, no classificativo de Halimi, por reencarnarem em chiens de garde [3] ou cães de guarda de serviço, [4] variante filogenética de Frola. Claro que a relação cão-dono (intimidade pessoal, historial sanitário, cadastro de incidentes) diferencia os currículos e determina as sortes. Não é cão de estimação ou de colo apenas quem quer ou se põe a jeito ou rosna à passagem de um veículo da concorrência. O dono do cão distingue as raças e as rações. [5] Alguns tudo fazem para imitar a voz do dono, adoptando poses de elementos da família, outros manifestam a triste condição de cadelos. [6]

Sob intervenção externa

O regime censório de fachada democrática recruta, de preferência, jornalistas com vocação de serviço privado e intelectuais orgânicos. São os castrati ou meninos de coro mediático. Cantarolam na Casa do Senhor e manejam, com prontidão, o lápis azul do Profano Ofício, um lápis modernista: acoplado a um computador. A agenda doméstica conta ainda com a eficiência das patrulhas check-point, treinadas pela OMG/Ordem Mediática Global. Assim se organiza a cadeia de censura em sede económica, sem cuidar de normativos profissionais e referentes legais. Impera o Regulador Patronal em prejuízo do Regulador Constitucional, Regulador Social, Regulador Laboral. A Lei Fundamental inverteu-se: passou a ser a subscrita pela Assembleia Constituinte dos Onze, tantos são os grupos que mais ordenam no espectro mediático português: Cofina, Controlinveste, Estado, Igreja Católica, IURD, Impala, Impresa, Média Capital, Sojormédia, Sonaecom, Zon Multimédia. A nova ordem mediática implicou o varrimento do grosso dos jornalistas que tinha sobrado do 25 de Abril, esvaziando as redacções de memória e consistência. O capitalismo expulsou das fileiras ou colocou na reserva os Capitães de Abril da Informação, fazendo ingressar jovens escolarmente anglo-saxonizados e profissionalmente desprotegidos. Geração que há anos, com algum acento paternal, cognominei de infantário electrónico. De resto, para o sistema, um jornalista não passa de um computador com carteira profissional. Assim se desenha um perfil de redacção que não investe em activos intergeracionais (éticos e dialécticos). A vida interna foi sendo esvaziada de personalidade e património. Quanto à interferência externa, atente-se nas Agências de Publicidade, enquanto persuasoras do relevante: modelam a Agenda Diária e o Design Editorial. A Primeira Página, outrora tida por sagrada, a roçar o intocável, foi sendo invadida e capturada pela Publicidade, de tal modo que, com frequência (sempre que o cliente ordena), é oferecida como Espaço de Simulação Noticiosa, de grande mancha editorial. Concorrendo com esta valência mediática, também é visível a actuação das Empresas de Comunicação (vocacionadas para o catering ou a comida pronta e embalada). Somam-se a estes actores subcontratados os Gabinetes de Imprensa/Relações Públicas que empenhada e graciosamente vazam os seus recados, por vezes, ipsis verbis. Junta-se a este complexo intervencionista a arma selectiva dos colaboradores. Cumpre-lhes elaborar teses de enquadramento e remates de emissão. São quase sempre os mesmos ou defendem quase sempre o mesmo. Para isso foram recrutados.

Filhos da pauta

O papel desta Redacção Colateral raramente diversifica ou enriquece o produto, já pré-condicionado pelo poder patronal e pelo treino educativo. No campo dos actores extraterritoriais, os órgãos de Comunicação acham-se ainda reféns (por critérios de redução de custos e colagem ideológica) das orquestrações mediáticas mundiais. Bastará um relance pela Imprensa Internacional de grande tiragem ou saltitar de canal em canal para surpreender um jornalismo made in, propagador de infopandemias. Tal transbordo inclui matéria informacional corrente e não só: se atentarmos na vertente musical, cerca de 70% da música emitida nas estações nacionais é de filhos da pauta anglo-saxónica. Queiramos ou não, temos as antenas censuradas e colonizadas. A generalidade dos jornalistas coopera na retransmissão por contágio sistémico ou indolência funcional. Uma minoria é especialmente adestrada para manter a massa crítica longe das redacções e audiências. Neste mercado de revenda, bom jornalista é aquele que agita tudo que o patrão lhe meta na mão. E não faltam agitadores voluntários ou apanhados na onda. As Redacções estão, de resto, formatadas como microondas fast-food, reaquecendo enlatados das Empresas de Comunicação, Publicidade & Marketing, dos Gabinetes, das Agências, das CNN`s, das conferências dos Novos Doutores da Lei e dos briefings dos Generais da Ordem do Império.

Livro de Estilo do Império

A telemanipulação cobre o vasto campo de conflitos de interesses (imperiais, regionais, nacionais), construindo enciclopédias do quotidiano, sobrecarregadas de calão incriminador ou branqueador: exemplos – de um lado, são apresentados fundamentalistas, extremistas, radicais, a violência fanática, irracional; de outro lado, aparecem soldados, exércitos, forças da ordem, missões humanitárias. Os massacres, os desalojamentos e a punição colectiva passam à categoria de acções de retaliação, operações de limpeza, raids de advertência, fogo amigo. A ignomínia vai até à reprodução pura e dura do dialecto imperial: milhares de civis têm sido liquidados sob a etiqueta de insurgentes, rebeldes, terroristas. Ataques por engano ou terror programado? O Livro de Estilo do Império Mediático contém fórmulas intencionalmente confusas e difusas, de geometria variável. Um das mais vertidas tem a ver com o conceito de comunidade internacional. De facto, há 245 entidades nacionais e 193 compõem as bancadas das Nações Unidas, mas, a todo o momento, um porta-voz do cânone invoca, em coro ou a solo, a CI, usurpando a legitimidade da ONU. O confronto israelo-palestiniano é pródigo em chavões: enquanto se mantém uma semântica penalizadora ou anuladora da resistência, reproduz-se a cartilha do invasor. Há órgãos que recorrem a terminologia hebraica para esbater a palavra Exército: o tsaall entrou em Gaza. Assim, parece que algo de irreal se moveu na zona. A invasão é noticiada como uma passeata. A Euronews é viciada neste adoçante. Por seu turno, a CNN socorre-se de uma sigla: IDF. As Israel Defence Forces agradecem a discrição. O Estado Sionista também goza de cobertura e indulgência no que toca a Direitos Humanos. Raramente se interpela a existência de milhares prisioneiros palestinianos, incluindo centenas de adolescentes, enjaulados em Israel, na maioria, por haverem sido eleitos pelo seu povo ou por delito de manifestação ou por arremessaram uma pedra aos blindados do ocupante. [7] Igualmente não suscita o mínimo de apreensão que o Estado Confessional de Israel possua 200 cargas nucleares mas o Estado Teocrático do Irão, que não possui nenhuma, é tema residente da Agitprop. [8] É proibido bater, mesmo com uma flor, em certos países e determinados terroristas. Outros exemplos? Os holofotes são afastados da Índia e da Arábia Saudita, pesos a considerar na balança dos negócios estratégicos (civis e armamentistas). A agenda cumpre voto de silêncio ou de benevolência perante estados párias, em muitas facetas dignos da Idade das Cavernas e da Baixa Idade Média. A Índia é rotulada como a maior democracia do mundo; a Arábia Saudita, tirania corrupta e escola exportadora de terrorismo, sobrevive como estado cliente e parceiro estabilizador da região. E outras certificações de boas práticas poderíamos citar, desde Marrocos à Guiné Equatorial, da Colômbia ao México, onde se normalizou a fraude cívica e banalizaram os atentados à vida e à decência económico-social. Se quisermos apontar exemplos de aplicação da regra das duas medidas a organizações, poderemos, mais uma vez, sintonizar a independente Euronews, mais Voz da América do que Voz da Europa. Dignifica e indulgencia como comando checheno o grupo terrorista-infanticida da escola de Beslan/Rússia/2004 (331 mortos). [9] Por outro lado, organismos ocidentais e brigadistas mediáticos empolam casos de Human Rights em Cuba, na Venezuela, na Rússia, no Irão ou na China.

Dicionário Mediático Nacional

Para deteriorar sobremaneira este panorama de Liberdade de Imprensa também se está perante uma ofensiva contra a Língua Portuguesa e o seu lastro identificativo. Para lá do já exposto no que toca à radiodifusão musical, com os Camones a usurpar o verbo de Camões, assistimos a um Serviço Público & Privado em litígio com os repositórios do Idioma. A Censura da Competência manifesta-se através de pontapés nos Dicionários Correntes e na Gramática Elementar, socos na Sintaxe. Os dislates vão desde confundir mandado com mandato, detenção com prisão, lock-out com greve, discrição com descrição, modulação com modelação, baias com vaias, abstenção com abstinência, iminente com eminente, acidente com incidente, interino com interno, previdência com providência, tráfego com tráfico, evento com invento, encarregue com encarregado, aceite com aceitado, agnóstico com gnóstico, fundamentais com fundamentalistas, quotas com cotas, preparativos com preservativos, portista com portuense, reconstituir com reconstruir, embater com colidir, exultar com exortar, desmarcar-se com demarcar-se, retratar-se com retractar-se, despoletar com espoletar, conselho com concelho, soalheiro com solarengo, estofado com estufado ou surpreender contróis ao deparar com controlos, ver competividade na competitividade, inverosímel no inverosímil – e por aí adiante – até vender um arboredo em Mondim de Basto, construir pneus em Vila Nova de Famalicão ou abater um Boeing na Colômbia com um relâmpago ou localizar 700 toneladas de explosivos da ETA em Óbidos em vez de 700 quilogramas ou situar Katmandu na China ou reportar ferimentos de capacetes azuis na Líbia, facto ocorrido no Líbano. Outros chumaços vão desde a metalurgia uterina à ortopédica ( dama de ferro, braço-de-ferro ); passam pelas ciências de emergência médica ( à beira de um ataque de nervos, impróprio para cardíacos ); por indultos da autoridade ou jornalismo oficioso ( a polícia foi ou viu-se obrigada a usar a força ); pelo filosofismo voluntarista, animador das hostes ( proibido perder, obrigatório vencer ); pelo sensacionalismo, tremendismo social ( casamento do século, assalto do século, furacão do século, chuvas diluvianas, pavoroso incêndio, arrasar ); por expedientes de suspense militar-diplomático ( visita-surpresa, comunicação de última hora ). É evidente que todos nos socorremos de apoios frásicos ou próteses verbais, o que não tem a ver com erros crassos e pendor para o incorrigível e a vulgata saturante. Terminaremos a amostra com uma preocupação patriótica e um desejo pessoal: que a Língua Portuguesa não venha a ter o destino da língua de vaca, normalmente apreciada morta e com ervilhas. Haja esperança. Talvez o remédio chinês passe um dia a ser ministrado no nosso Hospital das Letras. [10] Na República Popular da China, os pivôs estão sujeitos a uma coima por cada calinada. [11]

Palha na sopa

Na divisão de tarefas há que conferir super-relevo a pequenas tragédias e a médias delinquências do quotidiano, emprestando às instituições democráticas e aos formatadores da consciência social um álibi de humanismo e biodiversidade, destacando meia dúzia de micro-sujeitos de rosto humano no planeamento editorial. O capitalismo neoliberal-mediático concede umas fracções de antena a algumas vítimas e a alguns empurrados para as filas da penúria ou caídos nas sarjetas da carne ou nos alçapões da Casa da Moeda. Esta política de conteúdos produziu uma vaga de Jornalismo Esmoler e Judiciário apenas suplantado pelo Jornalismo Eroline. Uma grande fatia desta programação prende-se com dramatizações de choradinho garantido e diversões de rendimento mental mínimo. Na agenda de 2007, por exemplo, a adopção de uma menina (caso Esmeralda/sargento Gomes) ou o desaparecimento de uma criança inglesa (Madeleine/Algarve), não poupou meios logísticos e talentos redactoriais para fazer render o historiograma. Televisões houve que focaram 30 minutos a porta da Polícia Judiciária em Portimão. [12] Para memória futura, aqui se deixa um balanço dos tempos de antena dedicados a Maddie nos primeiros seis meses: 104 horas, correspondentes a 2.191 notícias. Assim distribuídos: SIC (43h33m19s), TVI (28h08m48s), RTP1 (28h08m48s), RTP2 (04h09m27s). [13] É certo e sabido que morrem ou definham ou se pervertem diariamente milhões e milhões de crianças, vítimas da fome, de falta de água potável, carências sanitárias, trabalho escravo, mendicidade organizada, exploração sexual, tráfico de órgãos, militarização bandidesca, violência doméstica-sistémica. Isto é, nuns cases, é importante sobrevalorizar, noutros cases, importa desvalorizar. Tratando-se, então, de crianças brancas e louras, os cases ganham projecção transfronteiriça. Eis-nos diante um modelo de dupla censura: pela copiosidade do tratamento e pela discriminação negativa. Outro exemplo de circo mediático: a obsessão sexual, a cabaretização do espaço público. Este bloco programático e publicitário alcançou foros epidemiológicos e de indigência depressiva. Ainda um pouco neste registo e no que respeita às coisas do baixo-ventre: o caso Casa Pia preencheu, em Fevereiro de 2003, 716 pontos da agenda das três televisões de bandeira nacional, num total de 968 blocos temáticos; em Maio, o gráfico da febre de écran Sexo & Crime já ia nas 794 peças; em Outubro, o massacre dos inocentes somava 900 agendamentos. As coisas do sexo são inesgotáveis. Aos espectáculos da libido ou das suas perversões adicionam-se arroubos de estádio, milagres da fé, concursos milionários para quem quiser pertencer ao Clube dos Crentes ou ao Clube dos Ricos, embora ninguém seja obrigado a ser devoto ou milionário. A liberdade de não ser milionário é, de resto, uma das Liberdades Fundamentais do Capitalismo. Eis o Programa da Nova Junta de Salvação Nacional: lixeiras a céu aberto, transformadas em Sopa dos Pobres de Espírito.

Censor: alguém cuja função é separar a palha do grão, a fim de ser publicada a palha. [14]

A medida de todas as coisas

Também procuraremos dar um contributo para a focagem do futebolês como objecto de sedução e manipulação de massas: para a Comunicação Anti-Social, grandes clássicos não são os livros dos Grandes Escritores ou os autores de Grandes Obras mas os Jogos Benfica-Porto-Sporting ou os seus artistas, mágicos da relva ou da outra galáxia, alguns já feitos best-sellers, pois deram em escreventes ou confidentes de pena alheia, com direito a chefe de Estado em sessões de apresentação. De resto, o futebolês tornou-se a medida de todas as coisas, uma gazua semiótica para plebes acabrunhadas e classes emergentes. Exemplifiquemos: se ocorrer um incêndio, a zona afectada é correntemente avaliada em rectângulos da bola: ardeu o equivalente a 100 campos de futebol; se for projectado um empreendimento, logo se equipara aos custos de um ou vários dos colossos do EURO 2004: o montante rondará cinco estádios do Sporting de Braga. O futebolês tornou-se a língua mais falada em Portugal: não há assunto que gaste tanto papel e tanto potencial radioeléctrico. O português baixo-médio-alto encontra na cultura do esférico o seu PNA/Plano Nacional de Alfabetização. Importante é um jogador ter atitude. Uma boa percentagem do país jaz aos pés de Cristiano após jazer aos pés da Virgem. Portugal é convidado a ficar ao rubro ante qualquer partida de futebol, mesmo na Transcaucásia. Dir-se-á: o povo ama o circo. Certo: mas qual a razão para não se fixar outra medida-padrão e quem estará empenhado em fazer vingar e valer o futebolês e manter este nível de discurso rasteiro? O dito povo – que se saiba – não funda Jornais, Estações de Rádio ou de Televisão. Como não funda Escolas, Igrejas ou Estádios. Apenas sustenta as aparelhagens do Poder e as suas amarras com sufocantes contribuições, levianos votos e alegria sem trabalho. [15]

O fantasma georgiano

Então, se à overdose de vulgaridades e atropelos se adicionar a dose de anticomunismo (primário, secundário, universitário) – eis um recheado prato do dia do censor e propagandista de turno. A infâmia de estalinismo instalou-se. O palavrão visa neutralizar quanto cheire a socialismo, afastando desta tentação as vítimas do capitalismo. É claro que a maioria absoluta dos anti-estalinistas nunca procurou saber o que foi ou não foi o estalinismo e alguns até têm diplomas nas paredes. Acontece que atirar um cidadão ou uma organização para as fossas abissais do estalinismo tem retorno assegurado entre os néscios. Não há agremiação ou sujeito de direita desavergonhada ou de esquerda folk que não dispare amiúde as flechas de caçadores de tesouros tumulares. Independentemente das máculas do estalinismo (de resto, expostas e verberadas pelo PCUS/XX Congresso/1956 e pelo PCP), o que se propõe é estigmatizar constantemente o PCP, alvo histórico de imputações de estalinismo. De facto, os besteiros poderiam usar outro veneno nas pontas. Deveriam, inclusive, virar-se para ditadores caseiros. Mas não. Tentam apagar o perfil delinquente do regime fascista. Irrompe por todo o lado (mediático, académico, editorial) uma vaga de revisionismo. O regime fascista é cerimoniosamente tratado como Estado Novo. Estado Novo foi a qualificação que o próprio regime fascista melhor conseguiu para se justificar, copiando a emblemática dos congéneres italiano e brasileiro. Os novos estoriadores-opinoticiadores preferem a linguagem da Opressão. Excluem a linguagem da Resistência. Mas a recuperação do dialecto é mais vasta. Apreciemos outra recuperação lexical: a TVI tem o seu Diário da Manhã, um dos programas de aposta da independente estação. Diário da Manhã se intitulava o jornal oficial da ditadura. Poder-se-á admitir que um título não merece eterno anátema. Mote credor de reflexão. No entanto, um antifascista não escolheria este título: ainda não decorreu suficiente período de nojo histórico. Eis a Linha de Ruptura. Uns dirão: O fascismo existiu. Outros dirão: O fascismo nunca existiu. E José Estaline, então? Esse existiu mesmo. O georgiano é tema central da actualidade político-mediática. Parece que governou esta faixa atlântica durante decénios. Ainda se arrisca a ter um museu no Portugal Profundo. Maior concentração de miséria histórico-filosófica só é localizável na Reserva Madeirense, cujo líder ascendeu ao Governo pela finura de pensamento, ao ponto de considerar cubanos os habitantes, votantes e contribuintes do Continente. Entre estalinistas e cubanos, o discurso da classe política no Poder e da classe jornalística do Poder não passa de retórica caceteira e trapaceira.

Berlusconização em curso

Como dispor de veículos comunicacionais alternativos? Repare-se nas pirâmides multimédia, nas famiglias mediáticas, na berlusconização da Liberdade de Imprensa, isto é, de Empresa: a concentração, a censurização, a manipulação. O fenómeno transalpino é um modelo de jornalismo que leva ao extremo a tentação totalitária. Mas o modelo não se confina ao Império do Cavaliere Oscuro. [16] Tende a reproduzir-se na esfera ocidental e mundial como estratégia de negócio e instrumento de domínio político. Não admira a pergunta, seguida de imediata resposta de um escritor e académico italiano, que residiu largos anos em Portugal:

O que é a liberdade de palavra? Em Itália, é-se teoricamente livre de dizer o que se pensa. O problema é onde. [17]

No período capitalista-fascista, algumas publicações resistiram à Censura na clandestinidade e no exílio, no permanente sobressalto e salto; no regime censório do capitalismo de fachada democrática, a Imprensa não afecta ao sistema defronta-se com pré-condicionantes: desde logo, provida de parcos fundos, não alcança a penetração comunicacional dos Meios Estruturantes (TV, Rádio, Jornais, Revistas, Globonet). Também não obteria créditos da Banca nem poderia depositar expectativas no bolo publicitário. Para coroar este quadro de pré-carência, qualquer órgão que procure instituir uma autêntica vox populi acarretará com o cerco judiciário, já que os alvejados moveriam processos em carrossel a exigir indemnizações incomportáveis e a exigir, nos termos da lei, o apeamento das direcções, com jus à reposição da honra e do bom-nome do bordel do sistema. O caso de o diário ficou inscrito no Guiness do reyno cadaveroso. [18] Neste panorama, a Imprensa alternativa subsiste por militância dos redactores e dos leitores e raramente se afoita pelo Jornalismo de Investigação, a fim de não ser presa fácil da vendetta judiciária. A Imprensa livre e popular funciona como suplemento vitamínico e vital, alarme cívico e cultural, de momento, cercada pelo alarido dos Onze, os donos da bola mediática. Mas cerco não significa resig(nação) nem derrota. Cercos houve muitos e terminaram repelidos e levantados. O Jornal da História trará a notícia. Amanhã. Como já trouxe ontem. Em 1974. Por exemplo.
 

1. Pecotche, Carlos Bernardo González (1901-1963). Filósofo, pedagogo, escritor. Argentino.
2.Said, Edward W. (1935-2003). Académico, escritor, musicólogo. Palestino de origem.
3. Halimi, Serge, Nouveaux Chiens de garde, Liber-Raison d`agir, 1997.
4. Frola, Leann, Poynter Online, 05/01/2007.
5. O autor deste artigo também publicou um tratado da especialidade: Curso de Chiens de Garde, AJHLP, 2012.
6. Teixeira Neves, Nuno (1922-2007). Licenciado em Histórico-Filosóficas, impedido de leccionar, enveredou pelo jornalismo no JN (1957-1987). Em 1969, o Suplemento Literário, dirigido por NTN, foi extinto como reprimenda por haver integrado as listas da Oposição Democrática. Sofreu seis prisões por motivos políticos. Em 30/11/2007, o mesmo JN inseriu uma notícia, A história da PIDE numa série documental da RTP, ilustrada com uma fotografia, que fixava para a posteridade Nuno Teixeira Neves, jornalista-cidadão, entre outros cidadãos, nas instalações da PIDE, Porto, 25 de Abril. NTN não aparece identificado. Alude-se vagamente a um jornalista. A falta de memória e o banimento de certos nomes tornou-se doutrina na generalidade das redacções. Já existe um Monumento ao Soldado Desconhecido. Começa a ser tempo de erigir um busto ao Jornalista Desconhecido/Jornalista Banido.
7. Exemplo de apagão noticioso: Un occidental está atrapado en Gaza y los médios de comunicación lo convierten en una gran historia. Millón e médio de personas (la población de la franja está atrapada en Gaza y no es una historia. (Laurent Booth, jornalista, cunhada de Tony Blair, o mudo e quedo representante da ONU para o Médio-Oriente).
8. El Mundo, 11/09/2008. O El País, como outros beligerantes mediáticos, também exara douta sentença em defesa de excursionistas: Irán condena a ocho años por espionaje a dos excursionistas ( El País, Ángeles Espinosa, Dubai, 21/08/2011). Da absolvição excursionista passa-se à inventona. O Jornal de Notícias tem provas do fabrico de armas nucleares. Eis uma passagem do relatório da Agência Atómica de Gonçalo Cristóvão: …entraram na embaixada do Reino Unido, em Teerão…em protesto contra sanções impostas ao Governo pelo fabrico de armas nucleares. (JN, 29/11/2011)
9. Beslan, Euronews, 29/08/2007.
10. Hospital das Letras, Melo, Francisco Manuel de (1608-1666). Escritor, militar, diplomata, conspirador, preso, degredado, liberto.
11. DN, 04/05/2008; JN, 05/05/2008, clubedejornalistas.pt.
12. Denúncia de convidado da RPTN (09/09/2007).
13. Telenews / MediaMonitor (09/11/2007). Decorrido um ano sobre o desaparecimento, as televisões & a generalidade da Imprensa injectaram nova overdose /estrondose Maddie no espaço público. Mediamonitor/Marktest, JN, 24/11/2003.
14. Vilhena, José, Proibido Pensar, FNAC/Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, 2003.
15. Francisco Franco, serial killer ibérico, na década de 60, achava-se ligado a cerca de 40 aparelhos de televisão, posicionados como tropas nos aposentos do Palácio do Pardo. O generalíssimo enterrava os dias a mirar e a remirar o écran, absorvido pelo futebol e pelo Real Madrid, clube patrocinado pelo regime para apagar o Barcelona, clube-estandarte da causa republicana, e para exportar o circo como política de imagem. No entanto, o sedentarismo televisivo acelerou o processo de degradação física do enviado de Deus . Em Portugal, foi necessária a intervenção de uma cadeira para liquidar o ditador; em Espanha, a televisão substituiu a ETA. Para mais pormenores sobre as obsessões do caudillo: Canal de História. Fonte: emissão de 03/12/2007. Atente-se, porém: a instrumentalização da pelota não é um exclusivo das ditaduras ibéricas. Já em pleno período de normalização democrática, a filosofia de Estado da então ministra da Defesa de Espanha/Governo PSOE, Cármen Chacón, poderá avaliar-se por um relato do seu éxtasis: cuando toda España aclamaba en éxtasis colectivo a los jugadores de la selección … se desplazó al oeste de Afganistán, donde está desplegado el grueso del contingente español. Jornada de trabajo larga, en la que habrá hueco para brindar com las tropas por la victoria de la selección. Como todos, los soldados vieron el partido y lo celebraron como pudireon en un Afganistán en el que, en verano, se pasan los momentos más duros. Hoy recibirán de manos de la ministra de Defensa camisetas de la selección firmadas por los jugadores y un vídeo grabado por ele equipo para ellos. (El Mundo, 13/07/2010).
16. Cavaliere Oscuro, http://twitter. com/#!/Postideologico , Sini/Giovanni Maria, 12/09/2012.
17. Tabucchi, Antonio, Visão, 23/10/2003.
18. Rodrigues, Miguel Urbano, o diário acusa / 1000 horas em Tribunal, história de uma perseguição, Caminho, 1984.


[*] Escritor.

O original encontra-se em O Militante, n.º 323, Março/Abril 2013, Ano 71, Série IV


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

domingo, 17 de março de 2013

Marx e a crise: os fantasmas, agora, são eles

A nova propaganda é liberal. A nova escravidão é digital.

por John Pilger

O que é a propaganda moderna? Para muitos, são as mentiras de um estado totalitário. Na década de 1970 encontrei-me com Leni Riefenstahl e perguntei-lhe acerca dos seus filmes épicos que glorificavam os nazis. Utilizando técnicas de câmara e de iluminação revolucionárias, ela produziu uma forma de documentário que empolgou alemães, o seu Triunfo da vontade; lançava a magia de Hitler.

Ela contou-me que as "mensagens" dos seus filmes dependiam não de "ordens de cima" mas sim do "vazio submisso" do público alemão. Será que isso inclui a burguesia liberal e educada? "Toda a gente", respondeu ela.

Hoje, preferimos acreditar que não há vazio submisso. A "escolha" é omnipresente. Telefones são "plataformas" que lançam toda opinião superficial. Há o Google mesmo no espaço externo se precisar disso. Acariciados como contas de rosário, os preciosos dispositivos nascem já concentrados na sua tarefa, implacavelmente monitorados e priorizados. O seu tema dominante é o ego. Eu. Minhas necessidades. O vazio submisso de Riefenstahl é a escravidão digital de hoje.

Edward Said descreveu este estado conectado em "Cultura e imperialismo" como levando o imperialismo a lugares que frotas navais nunca poderiam alcançar. É o meio final de controle social porque é voluntário, viciante e amortalhado em ilusões de liberdade pessoal.

A "mensagem" de hoje, de grotesca desigualdade, injustiça social e guerra, é a propaganda de democracias liberais. Em qualquer avaliação de comportamento humano, isto é extremismo. Quando Hugo Chavez o desafiou, foi insultado com má fé; e seu sucessor será subvertido pelos mesmos fanáticos do American Enterprise Institute, Harvard's Kennedy School e de organizações de "direitos humanos" que se apropriaram do liberalismo americano e sustentam sua propaganda. O historiador Norman Pollack chama a isto "fascismo liberal". Ele escreveu: "Tudo está normal na aparência. Para os que marchavam a passo de ganso [nazis], substitui a aparentemente mais inócua militarização da cultura total. E para o líder bombástico, temos o reformador manco, a trabalhar alegremente [na Casa Branca], a planear e executar assassínios, sorrindo o tempo todo.

Ainda há uma geração atrás, a discordância e a sátira mordaz eram permitidas nos media de referência, hoje passam as suas falsificações e impera a falsa moral da época (moral zeitgeist). A "identidade" é tudo, feminismo mutante que declara classe [como conceito] obsoleto. Do mesmo modo como dano colateral encobre assassínio em massa, "austeridade" tornou-se uma mentira aceitável. Por baixo do verniz do consumismo, verifica-se que um quarto da Grande Manchester vive em "pobreza extrema".

A violência militarista perpetrada contra centenas de milhares de homens, mulheres e crianças anónimas pelos "nossos" governos nunca é um crime contra a humanidade. Ao entrevistar Tony Blair 10 anos depois da sua criminosa invasão do Iraque, Kirsty Wark da BBC prendou-o com o momento que ele mais podia sonhar. Ela permitiu a Blair angustiar-se acerca da sua "difícil" decisão ao invés de chamá-lo a prestar contas pelas mentiras monumentais e o banho de sangue que provocou. Recordamo-nos de Albert Speer . Hollywood retornou ao seu papel da guerra fria, conduzida por liberais. O filme Argo, de Ben Affleck, vencedor do Óscar, é o primeiro longa metragem tão integrado dentro do sistema de propaganda que a sua advertência subliminar da "ameaça" do Irão é apresentada no momento em que Obama se prepara, mais uma vez, para atacar o Irão. Que a "verdadeira estória" de Affleck, de bons rapazes versus maus muçulmanos, é uma falsificação pois a justificação de Obama para os seus planos de guerra perde-se nos aplausos conseguidos através das RP. Como crítico independente, Andrew O'Hehir denuncia: Argo é "um filme de propaganda no sentido mais exacto, um filme que se reclama inocente de toda ideologia". Ou seja, envilece a arte de fazer cinema a fim de reflectir uma imagem do poder a que serve.

A verdadeira história é que, durante 34 anos, a elite da política externa dos EUA ferveu de desejos de vingança pela perda do xá do Irão, o seu amado tirano, e o seu estado torturador concebido pela CIA. Quando estudantes iranianos ocuparam a embaixada dos EUA em Teerão em 1979, encontraram uma montanha de documentos incriminatórios, os quais revelaram que uma rede de espiões israelenses estava a operar dentro dos EUA, a roubar segredos científicos e militares. Hoje, o dúplice aliado sionista – não o Irão – é a única ameaça nuclear no Médio Oriente.

Em 1977, Carls Bernstein, famoso pela sua cobertura do Watergate, revelou que mais de 400 jornalistas e executivos da maior parte das organizações de media dos EUA trabalhara para a CIA nos últimos 25 anos. Havia jornalistas do New York Times, Time e das grandes estações de TV. Nestes dias, uma força de trabalho tão formal e abominável é completamente desnecessária. Em 2010, o New York Times não fez segredo do seu conluio com a Casa Branca na censura aos registos de guerra do WikiLeaks. A CIA tem um "gabinete de ligação com a indústria do entretenimento" que ajuda produtores e directores a refazerem a sua imagem de uma gang sem lei que assassina, derruba governos e trafica drogas. Quando a CIA de Obama comete múltiplos assassínios por meio de drones, Affleck louva o "serviço clandestino... que todos os dias faz sacrifícios em prol de americanos... Quero agradecer-lhes muito". O vencedor do Oscar de 2010, 00:30 Hora Negra (Zero Dark Thirty) de Kathryn Bigelow, uma apologia da tortura, foi nada menos que aprovado pelo Pentágono.

A fatia de mercado do cinema estado-unidense nas bilheteiras da Grã-Bretanha muitas vezes atinge os 80 por cento e a pequena fatia britânica deve-se principalmente a co-produções com os EUA. Filmes da Europa e do resto do mundo representam uma pequena fracção daqueles que nos permitem ver. Na minha própria carreira de director de cinema, nunca experimentei um tempo em que vozes dissidentes nas artes visuais fossem tão poucas e tão silenciosas.

Em relação a todas as preocupações induzidas pelo inquérito Leveson , o "molde Murdoch" permanece intacto. A intercepção telefónica foi sempre uma diversão, uma pequena contravenção em comparação com o tocar de tambores dos media em favor de guerras criminosas. Segundo a Gallup, 99 por cento dos americanos acredita que o Irão é uma ameaça para si, assim como a maioria acreditava que o Iraque foi responsável pelos ataques do 11/Set. "A propaganda sempre vence", disse Leni Riefenstahl, "se você a permitir".
14/Março/2013
O original encontra-se no New Statesman britânico e em johnpilger.com/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Hugo Chávez

quarta-feira, 13 de março de 2013

A democracia e os mercados na nova ordem mundial



" No mundo real, a democracia, os mercados e os direitos humanos são alvo de um sério ataque em grande parte do planeta, incluindo as democracias industriais de ponta.
Mais ainda, a mais poderosa de entre elas - os Estados Unidos - é quem conduz o ataque.
No mundo real, os Estados Unidos nunca promoveram os mercados livres, desde a sua fundação até à era Reagan, que por sua vez veio estabelecer novos padrões de proteccionismo e de intervenção estatal na economia, contrariamente as inúmeras ilusões que existem sobre o assunto."

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" Há que esmagar os sentimentos humanos normais, os quais são incompatíveis com uma ideologia que está engrenada para satisfazer as necessidades do privilégio e do poder, que celebra o lucro privado como valor humano supremo e que recusa às pessoas outros direitos que não sejam o de andar aos salvados no mercado de trabalho... Não falando dos ricos, claro está, a quem compete receber ampla protecção do Estado."

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" Um estudo da OCDE de 1992 conclui que «a competição oligopolística e a interacção estratégica entre as empresas e os governos, mais do que a mão invisível das forças de mercado, são os factores que hoje em dia condicionam a competitividade e a divisão internacional do trabalho nas indústrias de alta tecnologia», como sucede na agricultura, na indústria farmacêutica, nos serviços e, em geral, nos mais importantes sectores de actividade económica."


Noam Chomsky - "A democracia e os mercados na nova ordem mundial"

domingo, 10 de março de 2013

Grandolar o futuro

 por Sandra Monteiro

Estamos a viver uma catástrofe social. A ideologia neoliberal programou-a há mais de duas décadas, quando começou a impor, a larga escala, a financeirização da economia, a liberalização das trocas e a centralização das políticas monetárias. O controlo das escolhas orçamentais dos Estados a que se assiste agora, a pretexto da crise, nos países cujos padrões de especialização produtiva os levaram a endividar-se mais com o exterior – dívida privada e pública – é, no essencial, a tradução de uma tragédia que vem de longe [1]. Uma tragédia que nenhuma regulação do sistema financeiro global quis evitar, que nenhuma estratégia europeia de solidariedade e coesão alguma vez quis impedir. E que foi reforçada por escolhas de governos que não compreenderam bem a dimensão da destruição engendrada, ou que, compreendendo-a, a saudaram.

A maioria dos portugueses e demais europeus não viu esta catástrofe chegar. Os sucessivos governos nacionais e da União Europeia, associados a uma frente constituída por elites financeiras, académicas e mediáticas, muito activa e com poderosas redes no mundo dos negócios privados, foram escondendo a debilitação da estrutura produtiva e o desvio dos instrumentos de política económico-financeira para finalidades contrárias ao bem comum. O espaço do debate público foi ocupado pela retórica da modernidade, da flexibilidade e da competitividade europeias, na verdade mais sinónima de desregulamentações, privatizações e explorações do que de coesão social ou territorial, integração económica e aprofundamento do «modelo social europeu».

A catástrofe social, quando nos atingiu em força, já tinha raízes profundas. Ela não é neste momento comparável, em grau e extensão do sofrimento, à tragédia que nos é mostrada pelas imagens da fome, uma fome silenciosa e esquelética, que associamos ao sul dessa espécie de território que tem sido o Estado social e democrático. Mas já tem todo o peso, e o silêncio, dos cortes que deixaram de ser feitos na margem e ameaçam a sobrevivência. Não apenas a sobrevivência material, com a perda de salário, emprego, prestações sociais, tecto ou comida. Os cortes ameaçam também a sobrevivência emocional, com a perda de familiares e amigos para a depressão, o suicídio, o isolamento ou esse exílio forçado a que chamamos emigração.

As monumentais manifestações que ocuparam as ruas portuguesas a 2 de Março, juntando mais de um milhão de pessoas sob o lema «Que se lixe a Troika! – O povo é quem mais ordena», traduziram esta fase da tragédia. Os cortes que atingem a sobrevivência material e imaterial podem, é certo, gerar outros actos, mas agora corporizaram-se num silêncio quase palpável que juntou gerações. O terror da miséria e a falta de esperança, que traduzem o desaparecimento da almofada social da «sociedade-providência» e a degradação do Estado social, marcaram muito as manifestações e têm de ser um fortíssimo sinal para as instituições da República. Pode estar a esgotar-se o tempo em que o povo, descobrindo-se sujeito histórico e exigindo ser a sede da soberania, caminha entre a gravidade do silêncio propagado ombro a ombro e a dignidade da canção que reinstaura as bases de um programa político sem o qual tudo pode mudar, mas será para que tudo fique na mesma. Cantar a Grândola, vila morena interrompendo membros do governo significa re-impor os valores que têm de orientar as escolhas políticas (igualdade e fraternidade), mas também que a sua negação terá como resposta o protesto, a insubmissão e a revolta, agora como quando a música de José Afonso foi senha para acabar com a ditadura.

Numa altura em que está a ser imposta uma mudança estrutural de regime, desta vez regressiva e antidemocrática, por elites políticas, económicas e mediáticas orgulhosas de serem obedientes e boas alunas do neoliberalismo austeritário, as grandoladas e as manifestações vieram recolocar as questões centrais: que escolhas políticas podem inverter o rumo desta catástrofe social e económica?; que negociadores poderão representar-nos condignamente, em Portugal e junto das instituições internacionais da Troika (Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e União Europeia)?

Como bem sabem o governo de Pedro Passos Coelho e o presidente Aníbal Cavaco Silva, os governados já não acreditam que esta maioria faça o país regressar ao investimento, ao crescimento e ao emprego, nem que ela possa representar-nos numa renegociação da dívida que afronte os credores. Foi por isto que a exigência da demissão do executivo e de marcação de uma consulta popular marcou as manifestações de 2 de Março. E é também o que exprime uma sondagem que mostra o divórcio entre as escolhas do governo e as de um povo que elege a aposta no Estado social e na criação de emprego, prioridades que implicam cortes na dívida e nas parcerias público-privadas [2]. Passos Coelho, peão convicto, continuará, com a Troika, a aproveitar o tempo que tiver para cumprir o programa político que os une, justificando mais austeridade com a conjuntura europeia. Cavaco Silva, esse, não tem estado calado, ao contrário do que muitos dizem. Está a fazer política como pensa que ela deve ser feita para ser eficaz. No dia em que começou a sétima «avaliação» da Troika, a 25 de Fevereiro, Cavaco convocou «jovens empreendedores», devidamente enquadrados pelo poder político e mediático, para manter as elites da «economia pós-Troika» na rota da tragédia que nos trouxe até aqui. A mensagem do presidente da República a esta «seiva de uma economia próspera» é clara: «A recuperação económica está hoje totalmente nas mãos dos empresários privados. O Estado não tem meios para provocar estímulos financeiros expansionistas. O que o Estado pode e deve fazer é criar um ambiente favorável ao desenvolvimento da iniciativa privada» [3].

É este desastroso mundo novo que está a ser criado e são estes os seus protagonistas. Para esta forma de fazer política, o povo é um empecilho que devia conformar-se à condição de «factor trabalho» e o Estado é um «ambientador» cujo papel é criar uma boa atmosfera para os interesses e os negócios privados prosperarem. É contra esta forma de pensar a política, e contra os seus resultados trágicos, que os cidadãos se têm manifestado nas ruas. O «Estado ambientador» nunca eliminará os maus cheiros das políticas que desprezam o direito de todos a uma vida digna. É contra ele que é preciso continuar a grandolar o futuro.

sexta-feira 8 de Março de 2013

http://pt.mondediplo.com/spip.php?article910 

Publicação em destaque

Marionetas russas

por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...