domingo, 10 de março de 2013

Grandolar o futuro

 por Sandra Monteiro

Estamos a viver uma catástrofe social. A ideologia neoliberal programou-a há mais de duas décadas, quando começou a impor, a larga escala, a financeirização da economia, a liberalização das trocas e a centralização das políticas monetárias. O controlo das escolhas orçamentais dos Estados a que se assiste agora, a pretexto da crise, nos países cujos padrões de especialização produtiva os levaram a endividar-se mais com o exterior – dívida privada e pública – é, no essencial, a tradução de uma tragédia que vem de longe [1]. Uma tragédia que nenhuma regulação do sistema financeiro global quis evitar, que nenhuma estratégia europeia de solidariedade e coesão alguma vez quis impedir. E que foi reforçada por escolhas de governos que não compreenderam bem a dimensão da destruição engendrada, ou que, compreendendo-a, a saudaram.

A maioria dos portugueses e demais europeus não viu esta catástrofe chegar. Os sucessivos governos nacionais e da União Europeia, associados a uma frente constituída por elites financeiras, académicas e mediáticas, muito activa e com poderosas redes no mundo dos negócios privados, foram escondendo a debilitação da estrutura produtiva e o desvio dos instrumentos de política económico-financeira para finalidades contrárias ao bem comum. O espaço do debate público foi ocupado pela retórica da modernidade, da flexibilidade e da competitividade europeias, na verdade mais sinónima de desregulamentações, privatizações e explorações do que de coesão social ou territorial, integração económica e aprofundamento do «modelo social europeu».

A catástrofe social, quando nos atingiu em força, já tinha raízes profundas. Ela não é neste momento comparável, em grau e extensão do sofrimento, à tragédia que nos é mostrada pelas imagens da fome, uma fome silenciosa e esquelética, que associamos ao sul dessa espécie de território que tem sido o Estado social e democrático. Mas já tem todo o peso, e o silêncio, dos cortes que deixaram de ser feitos na margem e ameaçam a sobrevivência. Não apenas a sobrevivência material, com a perda de salário, emprego, prestações sociais, tecto ou comida. Os cortes ameaçam também a sobrevivência emocional, com a perda de familiares e amigos para a depressão, o suicídio, o isolamento ou esse exílio forçado a que chamamos emigração.

As monumentais manifestações que ocuparam as ruas portuguesas a 2 de Março, juntando mais de um milhão de pessoas sob o lema «Que se lixe a Troika! – O povo é quem mais ordena», traduziram esta fase da tragédia. Os cortes que atingem a sobrevivência material e imaterial podem, é certo, gerar outros actos, mas agora corporizaram-se num silêncio quase palpável que juntou gerações. O terror da miséria e a falta de esperança, que traduzem o desaparecimento da almofada social da «sociedade-providência» e a degradação do Estado social, marcaram muito as manifestações e têm de ser um fortíssimo sinal para as instituições da República. Pode estar a esgotar-se o tempo em que o povo, descobrindo-se sujeito histórico e exigindo ser a sede da soberania, caminha entre a gravidade do silêncio propagado ombro a ombro e a dignidade da canção que reinstaura as bases de um programa político sem o qual tudo pode mudar, mas será para que tudo fique na mesma. Cantar a Grândola, vila morena interrompendo membros do governo significa re-impor os valores que têm de orientar as escolhas políticas (igualdade e fraternidade), mas também que a sua negação terá como resposta o protesto, a insubmissão e a revolta, agora como quando a música de José Afonso foi senha para acabar com a ditadura.

Numa altura em que está a ser imposta uma mudança estrutural de regime, desta vez regressiva e antidemocrática, por elites políticas, económicas e mediáticas orgulhosas de serem obedientes e boas alunas do neoliberalismo austeritário, as grandoladas e as manifestações vieram recolocar as questões centrais: que escolhas políticas podem inverter o rumo desta catástrofe social e económica?; que negociadores poderão representar-nos condignamente, em Portugal e junto das instituições internacionais da Troika (Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e União Europeia)?

Como bem sabem o governo de Pedro Passos Coelho e o presidente Aníbal Cavaco Silva, os governados já não acreditam que esta maioria faça o país regressar ao investimento, ao crescimento e ao emprego, nem que ela possa representar-nos numa renegociação da dívida que afronte os credores. Foi por isto que a exigência da demissão do executivo e de marcação de uma consulta popular marcou as manifestações de 2 de Março. E é também o que exprime uma sondagem que mostra o divórcio entre as escolhas do governo e as de um povo que elege a aposta no Estado social e na criação de emprego, prioridades que implicam cortes na dívida e nas parcerias público-privadas [2]. Passos Coelho, peão convicto, continuará, com a Troika, a aproveitar o tempo que tiver para cumprir o programa político que os une, justificando mais austeridade com a conjuntura europeia. Cavaco Silva, esse, não tem estado calado, ao contrário do que muitos dizem. Está a fazer política como pensa que ela deve ser feita para ser eficaz. No dia em que começou a sétima «avaliação» da Troika, a 25 de Fevereiro, Cavaco convocou «jovens empreendedores», devidamente enquadrados pelo poder político e mediático, para manter as elites da «economia pós-Troika» na rota da tragédia que nos trouxe até aqui. A mensagem do presidente da República a esta «seiva de uma economia próspera» é clara: «A recuperação económica está hoje totalmente nas mãos dos empresários privados. O Estado não tem meios para provocar estímulos financeiros expansionistas. O que o Estado pode e deve fazer é criar um ambiente favorável ao desenvolvimento da iniciativa privada» [3].

É este desastroso mundo novo que está a ser criado e são estes os seus protagonistas. Para esta forma de fazer política, o povo é um empecilho que devia conformar-se à condição de «factor trabalho» e o Estado é um «ambientador» cujo papel é criar uma boa atmosfera para os interesses e os negócios privados prosperarem. É contra esta forma de pensar a política, e contra os seus resultados trágicos, que os cidadãos se têm manifestado nas ruas. O «Estado ambientador» nunca eliminará os maus cheiros das políticas que desprezam o direito de todos a uma vida digna. É contra ele que é preciso continuar a grandolar o futuro.

sexta-feira 8 de Março de 2013

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