sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Um comboio descontrolado rumo à digitalização total da moeda e do trabalho


por Peter Koenig [*]
 
Há poucos dias estive num centro comercial à procura de uma máquina multibanco (ATM) para obter algum papel-moeda. Não havia multibanco. Uma semana antes ainda havia ali uma agência de um banco local – agora, desaparecera. O espaço vagado pelo banco fora substituído por um [café] Starbucks. Perguntei por ali – não havia mais caixas automáticas neste centro comercial – e este padrão está a repetir-se cada vez mais por toda a Suíça e Europa ocidental. As máquinas multibanco gradualmente desaparecem, não só dos centros comerciais como também das ruas. Será que a Suíça se tornará o primeiro país do mundo a ter moeda totalmente digital?

Este novo modelo de moeda sem numerário (cash) é progressiva mas brutalmente introduzido aos suíços e europeus – mas não lhes é contado o que está realmente a acontecer nos bastidores. Se dizem algo, é para contar à populaça que o pagamento se tornará muito mais fácil. Você simplesmente passa o seu cartão na máquina – e bingo. Não é preciso mais assinaturas, nem procurar mais por máquinas multibanco – a sua conta bancária é debitada directamente por qualquer quantia pequena ou grande que esteja a gastar. E naturalmente, de modo gradual, uma "pequena taxa" será cobrada pelos bancos. E você está impotente, pois uma alternativa com cash terá sido eliminada.

O limite superior da quantia que pode gastar da sua conta bancária é estabelecido principalmente por si próprio, na medida em que não exceda a tolerância dos bancos. Mas a tolerância dos bancos é generosa. Se exceder o seu crédito, o saldo da sua conta silenciosamente desliza para o vermelho e no fim do mês você paga um juro substancial; ou juros sobre os juros não pagos – e assim por diante. E isso apesar de as taxas de juro interbancária estarem num nível historicamente baixo. O juro para bancos do Banco Central da Suíça, por exemplo, é até negativo – um dos poucos bancos centrais do mundo com juros negativos, os outros incluem o Japão e a Dinamarca.

Quando recentemente conversei com o gerente de um banco de Genebra ele disse que está a ficar muito pior. "Já estamos a encerrar todas as máquinas multibanco, assim como a maior parte dos outros bancos". O que significa despedimentos de pessoal – o que naturalmente só aparece selectivamente no noticiário. Empregados de bancos e gerentes devem passar num exame da Comissão bancária suíça, para o qual eles têm de estudar centenas de horas extras em poucos meses para serem aprovados no teste – habitualmente planeado para fins-de-semana. Se você falhar estará fora, juntando-se às fileiras dos desempregados. A tendência é semelhante por toda a Europa. O gerente não revelou o assunto e a razão por trás deste "novo treino" – mas torna-se óbvio a partir da conversação que se seguiu que tinha tudo a ver com a ultrapassagem do povo pelos bancos através da eliminação do numerário. Estas são as minhas palavras, mas ele, um homem a par, estava tão preocupado como eu, se não mais.

A vigilância é omnipresente. Agora, não só os nossos telefonemas e emails são espiados como as nossas contas bancárias também. E o que é pior é é que com uma economia sem numerário nossas contas estão vulneráveis a serem invadidas pelo estado, por ladrões, pela polícia, pela autoridade fiscal, por qualquer espécie de autoridade – e, naturalmente, pelos mesmos bancos em que você tem confiado durante toda a sua vida. Recorda-se dos "bail-ins" [1] testados pela primeira em Chipre em 2013? Bail-ins tornar-se-ão uma prática comum para qualquer banco que tiver abusado na sua cobiça pelo lucro e for à bancarrota, se for preciso todos aqueles depósitos dos clientes. Mesmo os accionistas não estão seguros. Isto foi decidido silenciosamente há uns dois anos atrás, tanto nos EUA como também pela máfia não eleita de colarinho banco, a Comissão Europeia (CE).

O caso é "banks über alles" ("bancos acima de tudo"). E que país seria melhor adequado para introduzir a "vida sem numerário" senão a Suíça, o epicentro – juntamente com a Wall Street – da banca internacional? Os bancos darão as ordens no futuro, tanto na nossa economia pessoal como na do estado. Eles estão globalizados, seguem os mesmos princípios da desregulamentação à escala mundial. Eles estão em conluio com corporações globalizadas. Eles decidirão se você come ou será escravizado. Eles são uma das três armas principais dos 0,1% para bater os 99,9% até à submissão. As outras duas ao serviço do mestre hegemónico do impulso para a Dominação Total (Full Spectrum Dominance) são a guerra-indústria da segurança e a cada vez mais insolente máquina de propaganda da mentira. A desregulamentação bancária tornou-se outra pouco divulgada regra da Organização Mundial de Comércio (OMC). Países que queiram aderir à OMC devem desregulamentar seu sector bancário, mantendo-o aberto à intromissão dos tubarões da moeda globalizada, os conglomerados controlados pelo sionismo.

A redução de pessoal no mercado do emprego bancário está a aumentar. As notícias só informam sobre isso selectivamente, quando grandes volumes de empregos estão a ser eliminados. As estatísticas mentem por toda parte, na UE assim como em Washington. Por que assustar as pessoas? Elas ficarão bastante assustadas quando lhes forem oferecidos empregos e salários com os quais mal poderão sobreviver. O que já está a acontecer. Costumava ser uma táctica aplicada a países em desenvolvimento. Mantê-los escravizados pela dívida e baixos pagamentos, de modo que não tivessem tempo e energia para ganhar as ruas para protestar – tinham de procurar comida e trabalho, quaisquer que fossem os empregos subalternos que pudessem obter, para alimentar suas famílias. Isto está agora a atingir a Europa, o Ocidente em geral. Alguns países avançam mais neste caminho do que a Suíça.

Experiências sem numerário estão em curso em outros lugares, especialmente em países nórdicos, onde lojas de departamento seleccionadas e supermercados já não recebem cash. Uma outra experiência monstruoso foi executada na Índia um ano atrás [2] , no último trimestre de 2016, onde de um dia para o outro 80% das notas de papel-moeda mais populares foram eliminadas e só podiam ser trocadas por novas notas por banco e através de contas bancárias. E isto num país quase de puro cash, onde metade da população não tem conta bancária e onde áreas rurais remotas não têm bancos. O povo foi enganado para que a introdução súbita tivesse o máximo efeito.

A operação provocou fome maciça e milhares de pessoas morreram, pois subitamente deixaram de ter cash aceitável para comprar comida – tudo isso instigado pelo Projecto "Catalyst" da USAID, em conivência com os governantes e o banco central indiano. Era uma experiência. Foi um desastre. Se funcionasse na Índia com 1,3 mil milhões de pessoas, dois terços das quais vive em áreas rurais e a maior parte delas não tem conta bancária, o golpe poderia ser aplicado a qualquer país em desenvolvimento. Ver também India – Crime of the Century – Financial Genocide

O que está em curso na Suíça é uma experiência com o topo superior de populações. Como é que a classe privilegiada receberá mudanças tão radicais na nossa rotina monetária diária? – Até agora não têm sido noticiados muitos protestos. Há um fraco referendo lançado por um grupo de pessoas, as quais querem que o Banco Central da Suíça seja a única instituição que possa fazer moeda, como nos "velhos dias". Embora seja uma ideia muito respeitável, o referendo não tem possibilidade na banca dos dias de hoje e no ambiente de dívida financeira, onde a juventude está a ser doutrinada com a ideia de que passar um cartão em frente a um olho electrónico é excelente (cool). Hoje, a maior parte da moeda é feita por bancos privados, como algures na Europa e nos EUA. A desregulamentação bancária à escala mundial, iniciada pela administração Clinton na década de 1990 – hoje uma regra para qualquer membro da Organização Mundial de Comércio – tornou tudo isto possível.

A digitalização e a robotização estão apenas a começar. Balcões de pagamento com pessoal em supermercados estão a minguar; a maior parte deles são automáticos – e isso aconteceu desde o ano passado. – Para onde foram os empregados? – Perguntei a uma assistente que ajudava os clientes no auto-pagamento. "Eles juntaram-se às fileiras dos desempregados", disse ela com uma cara triste, tendo perdido vários dos seus colegas. "Isto também me atingirá, tão logo eles não precisem mais de mim para mostrar aos clientes como efectuar o pagamento por si próprio".

Bitcoins

A digitalização também inclui as criptomoedas, as moedas blockchain em torno – das quais a mais famosa é a Bitcoin. Isto traz a digitalização da moeda a um clímax. O sistema é complexo e parece prestar-se só para "peritos". Criptomoedas são moeda fiduciária (fiat money) [3] , baseadas sobre o nada, nem mesmo sobre o ouro. As criptos são electrónicas, invisíveis e altamente, mas muito altamente especulativas, um convite para gangsters e autores de fraudes. Com valores especulativos extremos, aparentemente é como se as criptomoedas fossem concebidas para vigaristas e especuladores.

A Bitcoin foi alegadamente inventada por Satoshi Nakamoto o qual poderia ser um pseudónimo de um homem ou um grupo de pessoas, que se suspeita viverem nos EUA. Acredita-se que a identidade de "Nakamoto" tenha origem na commonwealth [britânica], devido ao vocabulário utilizado nos seus escritos. Um dos seus associados próximos é aparentemente um codificador suíço, o qual é também membro activo da comunidade da criptomoeda. Diz-se que ele grafou o dispositivo para imprimir data e hora (time stamp) de mais de 500 intervenções de Nakamoto em fóruns. Tais "intervenções em fóruns" existem aos milhares, à escala mundial. Elas formam uma rede elaborada com base em algoritmos.

O Bitcoin foi criado formalmente em Janeiro de 2009 com um montante fixo de 21 milhões de "moedas" ("coins"), das quais mais da metade já estão em circulação e um milhão, ou cerca de 4,75% (do total) podem ser rastreados a Nakamoto – o qual de acordo com o actual valor de mercado corresponde a cerca de US$15 mil milhões. No total de hoje a capitalização de mercado da Bitcoin é de mais de US$315 mil milhões. O mercado é altamente volátil. São comuns flutuações drásticas diárias, especialmente nos últimos 12 meses. Se um dos grandes possuidores de Bitcoin, como Nakamoto, capitalizasse o seu lucro vendendo uma grande porção dos seus haveres, o preço da Bitcoin estaria em queda livre, funcionando de modo quase semelhante ao mercado de acções regular.

Em 24/Agosto/2010, quando a Bitcoin foi pela primeira vez transaccionada, o seu valor era de US$0,06. Em 24/Dezembro/2017, a moeda valia US$13.800, um aumento de 230.000%. Nos últimos doze meses, seu valor aumenta de cerca de US$800 em Dezembro/2016 para um pico próximo dos US$20 mil em Dezembro/2017, um aumento de aproximadamente 2.500%. Contudo, nos últimos sete dias, o preço caiu para US$5.160, isto é, em mais de 27%, e a tendência para ser de declínio; talvez um sinal de tomada rápida de lucro? Contudo, isto mostra quão instável é esta criptomoeda, aparentemente muito mais do que transaccionar acções corporativas na bolsa.

O número de criptomoedas disponíveis na Internet em 27/Novembro/2017 estava acima dos 1300 e em crescimento. Uma nova criptomoeda pode ser criada a qualquer momento e por qualquer pessoa. Pela capitalização de mercado, a Bitcoin e actualmente a maior rede blockchain (rede de bases de dados, armazenagem de dados em diferentes lugares publicamente verificáveis), seguida pela Ethereum, Bitcoin Cash, Ripple e Litecoin.

A Bitcoin pode ser a próxima bolha, deitando abaixo uma economia paralela que já tem os seus dedos fincados na nossa economia ocidental regular. As criptomoedas estão oficialmente proibidas na Rússia e na China, embora travar operações de criptomoeda por parte de indivíduos dificilmente seja possível. Elas não tocam o sistema bancário tradicional. Esta é a razão porque os grandes bancos as odeiam. Elas contornam os mamões (suckers) bancários, impedindo-os de fazerem lucros ainda mais altos a partir de comissões horrendas, contra as quais as pessoas como um todo são impotentes.

Aqui está o valor positivo da Bitcoin. Ela escapa a controles da banca e do estado. Se economias de países fossem movimentadas com Bitcoins ou outra criptomoeda, elas escapariam a sanções dos EUA, as quais funcionam só porque divisas ocidentais são filhas adoptivas do US dólar, sujeitas portanto à hegemonia do dólar; o que significa que todas as transacções internacionais têm de passar através de um banco dos EUA. Um caso típico é o de "bloqueios bancários", quando Washington decide travar todas as transacções internacionais de um país até que ele se submeta às vontades do império. Trata-se de chantagem; totalmente ilegal, mas, a menos que haja uma alternativa monetária, o mundo (ocidental) está sujeito a este sistema.

Um caso típico foi a Argentina, quando em Junho/2014 ela foi forçada por um juiz de Nova York a pagar a um Fundo Abutre com sede ali a quantia de US$1,6 mil milhões, uma sentença ilegal segundo uma resolução da ONU. A Argentina recusou-se a pagar, de modo que o juiz, interferindo numa nação soberana, bloqueou mais de US$500 milhões no pagamento da dívida da Argentina a credores, levando a Argentina à beira de uma segunda bancarrota em 13 anos. Finalmente, o neoliberal Macri negociou com os Abutres um acordo para o pagamento em excesso de US$400 milhões.

Esta chantagem estado-unidense não teria sido possível se a Argentina tivesse sido capaz de fazer suas transacções externas em Bitcoins ou outra criptomoeda. A Venezuela está actualmente a utilizar uma criptomoeda nacional para algumas das suas transacções externas, escapando dessa forma ao estrangulamento das sanções de Washington. Tivessem cidadãos gregos e cipriotas tido uma criptomoeda alternativa ao euro, não teriam sido sujeitos ao controle de cash imposto pelo Banco Central Europeu.


Por outro lado, o financiamento de organizações terroristas, como o ISIS, não pode ser interrompido, se o grupo terrorista negociar em criptomoeda. – Isto mostra, para o bem e para o mal, que Bitcoins, ou criptomoedas são por agora únicas na resistência à censura e à chantagem, ou a qualquer espécie de interferência autoritária externa em transacções monetárias electrónicas.

Viver sem numerário

Se a Suíça – um país onde até há pouco tempo a maior parte da pessoas ia pagar suas contas mensais em cash na agência de correio mais próxima – aceitar a mudança para a moeda digital, então nós, no mundo ocidental, estamos numa rota rápida para a escravização total pelas instituições financeiras. Isto vai a par, naturalmente, com o resto do sistemático e cada vez mais rápido avanço da opressão e robotização dos 99,9% pelos 0,1%.

Estamos actualmente em encruzilhadas, onde ainda podemos tanto decidir seguir o discurso de uma nova era monetária electrónica, com cada vez menos a dizer acerca do produto do nosso trabalho, nossa moeda; ou, Nós o Povo, resistiremos a um sistema bancário/financeiro que tem pleno controle sobre nossos recursos financeiros e que pode literalmente esfaimar-nos até à submissão ou a morte, se não nos comportarmos. A fim de resistir precisamos de um sistema monetário alternativo ou uma rede monetária, afastada da hegemonia do euro-dólar.

Ainda mais importante é a ascensão de uma outra economia, de outro esquema de pagamentos e transferência que já existe no Oriente, o Chinese International Payment System (CIPS), de facto um substituto do SWIFT, que é totalmente privado e ligado ao US dólar e a bancos dos EUA. O mundo precisa de uma economia multipolar, baseada no produto real de um país ou sociedade, como é o caso na China e na Rússia, não um sistema baseado na moeda fiduciária como é a actual economia ocidental.

Será que a Suíça, a fortaleza da finança mundial, juntamente com Nova York, Londres e Hong Kong, resistirá à tentação do aumento de lucro, poder e controle oferecido pela moeda digital? – Nós, o Povo, ainda temos a possibilidade de decidir ou por continuar a apodrecer numa economia da fraude, baseada em guerras e cobiça – para a moeda digital, exacerbada pelas criptomoedas, é uma nova ferramenta para uma nova fonte de maximização de lucros nas costas do povo comum; ou optarmos por um futuro honesto e por uma vida que nos deixe livre para tomarmos decisões políticas e financeiras numa sociedade plena de cash. Para esta última alternativa devemos acordar para ver a propaganda da fraude a desenrolar-se perante os nossos olhos – e resistir ao ataque dos robots e moeda electrónica que está a ser desencadeado sobre nós. 

26/Dezembro/2017
 

[*] Economista

NR
[1] Sobre o bail-in em Chipre ver:   Pensa que o seu dinheiro está seguro numa conta bancária? Pense bem. ,   Alto risco no sistema financeiro ,   Crise: algumas perguntas e respostas ,   O comboio do Euro descarrila ,   Acerca das taxas de rendimento negativas
[2] Acerca da brutal desmonetização efectuada na Índia ver:   Desmonetização e taxas de empréstimos bancárias ,   A desmonetização de notas de dinheiro ,   Taxas de juro e utilização de papel-moeda ,   A desmonetização e a questão da inflação
[3] Parece discutível classificar a Bitcoin como moeda fiduciária. Esta, por definição, não tem limite máximo de emissão e a Bitcoin tem um limite máximo inscrito no seu próprio algoritmo.


O original encontra-se em thesaker.is/runaway-train-towards-full-digitization-of-money-and-labor/


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

sábado, 2 de dezembro de 2017

Na ONU, a incapacidade USA de admitir a realidade

por Thierry Meyssan

 Enquanto os Presidentes Putin e Trump avançam na questão síria, os altos- funcionários de origem USA na ONU encetaram um braço de ferro com a Rússia. Recusando investigar um crime sobre o qual já tomaram posição a priori, provocaram não um, mas quatro vetos no Conselho de Segurança. Para Thierry Meyssan, o comportamento esquizofrénico dos Estados Unidos na cena internacional atesta, ao mesmo tempo, a divisão da Administração Trump e o declínio do imperialismo dos EUA.

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Retomando a postura do seu distante predecessor, Adlai Stevenson, aquando da crise dos mísseis cubanos, Nikki Haley denunciou o incidente acontecido em Khan Sheikhun por meio de terríveis fotografias. No entanto, o Mecanismo de inquérito ONU-OIAC recusou autenticar estas pretensas «provas». Observe-se o falcão Jeffrey Feltman sentado ao lado da Embaixatriz.
 
Decididamente poucas coisas mudaram desde o 11 de Setembro de 2001. Os Estados Unidos persistem em manipular a opinião pública internacional e os meios das Nações Unidas, por razões diferentes é claro, mas sempre com o mesmo desprezo pela verdade.

Em 2001, os representantes dos Estados Unidos e do Reino Unido, John Negroponte e Stewart Eldon, asseguravam que os seus dois países acabavam de atacar o Afeganistão em legítima defesa após os atentados cometidos em Nova Iorque e Washington [1]. O Secretário de Estado, Colin Powell, prometia distribuir no Conselho de Segurança um dossiê completo apresentando as provas da responsabilidade afegã. Continuamos à espera, 16 anos mais tarde, por esse documento.

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O Secretário de Estado, Colin Powell, mente no Conselho de Segurança. Brandindo o que ele apresenta como um frasco de antraz, capaz de matar toda a população de Nova Iorque, acusa o Iraque de se ter preparado para atacar os Estados Unidos. Jamais Washington se desculpou por esta mascarada.
 
Em 2003, o mesmo Colin Powell vinha explicar ao Conselho de Segurança, aquando de uma intervenção difundida pelas televisões do mundo inteiro, que o Iraque estava igualmente implicado nos atentados de 11-de-Setembro e que preparava uma nova agressão contra os Estados Unidos, por meio de armas de destruição maciça [2]. No entanto, assim que deixou as suas funções no seio do governo dos EUA, o General Powell admitia, num canal de televisão do seu país, que as muitas acusações do seu discurso eram todas falsas [3]. Continuamos à espera, 14 anos depois deste discurso, do pedido de desculpas dos Estados Unidos perante o Conselho de Segurança.

Toda a gente acabou por esquecer as acusações dos EUA sobre a “responsabilidade” do Presidente Saddam Hussein nos atentados de 11 de Setembro (desde então, Washington atribuiu os mesmos atentados à Arábia Saudita, seguindo-se, hoje em dia, o Irão, sem nunca apresentar provas em qualquer desses quatro casos).

Pelo contrário, recordamos o debate, que durou meses, sobre as armas de destruição maciça. À época, a Comissão de Controle, Verificação e Inspeção das Nações Unidas (em inglês UNMOVIC) não encontrou o menor traço dessas armas. Um braço de ferro opôs o seu director, o sueco Hans Blix, primeiro aos Estados Unidos, depois à ONU e, por fim ao conjunto do mundo ocidental. Washington afirmava que H. Blix não tinha encontrado essas armas porque fazia mal o seu trabalho, enquanto ele garantia que o Iraque jamais tivera a capacidade para fabricar tais armas. Seja como for, os Estados Unidos bombardearam Bagdade, invadiram o Iraque, derrubaram o Presidente Saddam Hussein e enforcaram-no, ocuparam o seu país e pilharam-no.

O método dos EUA após 2001 não tinha nenhuma relação com aquele que o tinha precedido. Em 1991, o Presidente Bush Sr. assegurara-se em colocar o Direito Internacional do seu lado antes de atacar o Iraque. Ele tinha-o pressionado a invadir o Kuweit e o Presidente Saddam Hussein a fixar-se em tal. Assim, conseguiu o apoio de quase todas as nações do mundo. Ao contrário, em 2003, Bush Júnior contentou-se em mentir e apenas em mentir. Inúmeros Estados distanciaram-se de Washington, enquanto se assistia às maiores manifestações pacifistas da História, de Paris a Sidney, de Pequim à Cidade do México.

Em 2012, o Gabinete de Assuntos Políticos da ONU redigiu um projecto de capitulação total e incondicional da Síria [4]. O seu Director, o norte-americano Jeffrey Feltman, antigo adjunto da Secretária de Estado Hillary Clinton, usou todos os meios de que dispunha para formar a maior coligação (coalizão-br) da História e acusar a Síria de todo o tipo de crimes, dos quais nenhum jamais foi provado.

Se os Estados que detêm o documento Feltman decidiram não publicá-lo foi para preservar as Nações Unidas. Com efeito, é inaceitável que os meios da ONU tenham sido utilizados para promover a guerra quando esta instituição foi criada para preservar a paz. Não sendo constrangido pelas mesmas obrigações que um Estado, eu publiquei um estudo detalhado sobre este ignóbil documento no livro Sous nos yeux (Sob os Nossos Olhos. Do 11-de-Setembro a D. Trump) [5].

Em 2017, o Mecanismo de Investigação Conjunta ONU-OIAC, criado a pedido da Síria para investigar o uso de armas químicas no seu território, foi objecto do mesmo braço de ferro como o que opôs Hans Blix a Washington. Salvo que, desta vez, as frentes estavam invertidas. Em 2003, a ONU defendera a paz. Mas não desta vez, Jeffrey Feltman fora reconduzido nas suas funções, mantendo-se como o número 2 da ONU. É a Rússia, desta vez, quem se opõe aos funcionários internacionais pró-EUA, em nome da Carta.

Se os trabalhos do Mecanismo de Inquérito foram objecto de normal debate durante o seu primeiro período, isto é, de Setembro de 2015 a Maio de 2017, eles tornaram-se motivo de clivagem quando o Guatemalteco Edmond Mulet substituiu, na sua direcção, a Argentina Virgínia Gamba ; uma nomeação imputável ao novo Secretário-geral da ONU, o Português António Guterres.

O Mecanismo de Investigação mobiliza funcionários internacionais da ONU e da OIAC. Esta prestigiosa organização internacional recebeu o Prémio Nobel da Paz, em 2013, nomeadamente pelo seu trabalho de vigilância da destruição pelos Estados Unidos e pela Rússia das armas químicas sírias. No entanto, o seu Director, o Turco Ahmet Üzümcü, evoluiu. Em Junho de 2015, ele foi convidado para Telfs Buchen (Áustria) para a reunião do Grupo de Bilderberg, o clube da OTAN.

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Em Dezembro de 2015, Ahmet Üzümcü é condecorado com a Legião de Honra pelo Ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Laurent Fabius, o homem para quem o Presidente al-Assad «não tem o direito de viver» e a Alcaida «faz o bom trabalho». 
 
A questão era ainda mais grave do que a de 2003, aquando do litígio opondo, por um lado, Hans Blix, e, por outro lado, os Estados Unidos que ameaçavam intervir contra o Iraque se a ONU provasse a existência de armas destruição maciça, enquanto em 2017 opõe a Rússia a Edmond Mulet, que poderia validar a posteriori a intervenção norte-americana contra a Síria. De facto, Washington já se decidira, considera a Síria como responsável por um ataque de gás sarin em Khan Sheikhun, e bombardeia de seguida a base aérea de Shayrat [6].

No caso em que o Mecanismo de Investigações se afastasse, de uma maneira ou de outra, do discurso de Washington, tal colocaria os Estados Unidos na obrigação de apresentar desculpas e indemnizar (indenizar-br) a Síria. Os funcionários internacionais pró-EU consideraram como sua missão, portanto, concluir que a Síria bombardeara a sua própria população com gás sarin, que ela ilegalmente manteria na Base Aérea de Shayrat.

A partir do mês de Outubro, o tom começou a subir entre certos funcionários da ONU e a Rússia. Contrariamente ao que a imprensa ocidental pretendeu, o diferendo não dizia respeito, de forma nenhuma, às conclusões do Mecanismo de Inquérito, mas, exclusivamente, aos seus métodos; recusando Moscovo antecipadamente qualquer conclusão obtida por métodos não-conformes aos princípios internacionais, estabelecidos no quadro da Convenção sobre Armas Químicas e da OIAC [7].

O gás sarin é um neurotóxico extremamente letal para o homem. Existem variantes deste produto, o clorosarin e ciclosarin, e uma versão ainda mais perigosa, o VX. Todos estes produtos são absorvidos pela pele e passam directamente para o sangue. Eles degradam-se num período de algumas semanas até alguns meses no ambiente, não sem consequências para os animais que entrem em contacto com eles. Quando penetra no solo, na ausência de oxigénio e de luz, pode perdurar durante muito tempo.

Basta ver as fotografias do ataque em Khan Sheikhun, mostrando, algumas horas mais tarde, pessoas a recolher amostras sem usar proteções para a pele, para saber com certeza que, se houve utilização de gás, não poderia ser nem sarin, nem um dos seus derivados. Para mais detalhes, iremos reportar-nos ao estudo do Professor Theodore Postol, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), que desmonta, um por um, os argumentos dos pretensos peritos da CIA [8].

Ora, contrariamente aos princípios da Convenção sobre as armas químicas, o Mecanismo de Inquérito não se deslocou ao terreno para recolher amostras, para as analisar, e identificar o gaz utilizado, se houve algum.

Interrogada a este propósito em Maio e Junho de 2017 pela Rússia, a OIAC declarou estar a estudar as condições de segurança dessa deslocação para finalmente concluir que não era necessário, uma vez que, segundo ela, «a utilização de sarin não levanta nenhuma dúvida».

Pelo contrário, o Mecanismo de Investigação dirigiu-se à base aérea de Shairat, onde segundo Washington o gás sarin tinha sido ilegalmente armazenado e onde havia sido carregado nos bombardeiros. Mas, apesar da insistência da Rússia, ele recusou recolher aí amostras.
Identicamente, o Mecanismo de Inquérito recusou estudar as revelações da Síria sobre o aprovisionamento dos jiadistas em gaz pelas sociedades norte-americanas e britânica Federal Laboratories, NonLethal Technologies, e Chemring Defence UK [9].

Os Estados Unidos e os seus aliados admitiram, eles próprios, no projecto de resolução que apresentaram, a 16 de Novembro, que os funcionários internacionais deveriam conduzir as suas investigações de «uma maneira apropriada à concretização do seu mandato» [10].

A Rússia rejeitou o relatório do Mecanismo de Inquérito tendo em vista o seu diletantismo e recusou, por três vezes, reconduzir o seu mandato. Ela opôs o seu veto a 24 de Outubro [11] e a 16 [12] e a 17 de Novembro, como já o havia feito a 12 de Abril [13] quando os Estados Unidos e a França [14] tentaram condenar a Síria por causa deste pretenso ataque de gaz sarin. Foi a 8ª, a 9ª, a 10ª e a 11ª vez que ela fez uso dele na questão síria.

Ignora-se por que razão Washington apresentou, ou fez apresentar, quatro vezes a mesma declaração ao Conselho de Segurança de modos diferentes. Este balbuciar já tinha ocorrido no início da guerra contra a Síria, a 4 de Outubro de 2011, a 4 de Fevereiro e 19 de Julho de 2012, quando a França e os Estados Unidos tentaram levar à condenação pelo Conselho o que eles chamavam a repressão da primavera síria. À época, a Rússia afirmava, pelo contrário, que não havia guerra civil, mas, sim uma agressão externa. Em cada ocasião, os Ocidentais replicaram que iam «convencer» o seu parceiro russo.

É interessante observar que, hoje em dia, o dogma ocidental pretende que a guerra na Síria começou como uma revolução democrática que descarrilou e acabou, finalmente, capturada pelos jiadistas. Ora, contrariamente ao que foi reivindicado, não existe qualquer prova da menor manifestação a favor da democracia na Síria em 2011-12. Todos os vídeos, publicados à época, são quer a favor do Presidente al-Assad, quer contra a República Árabe Síria, jamais pela democracia. Nenhum vídeo inclui slogan (eslogan-br) ou cartaz pró-democracia. Todos os vídeos das pretensas «manifestações revolucionárias» deste período foram gravados às sextas-feiras à saída das mesquitas sunitas, jamais em qualquer outro dia e nunca em qualquer outro lugar de reunião que não fosse uma mesquita sunita.

É verdade que em alguns vídeos se ouve frases contendo a palavra «liberdade». Apurando o ouvido, constatamos que os manifestantes aí exigem não a «Liberdade» no sentido ocidental, mas «a liberdade de aplicar a Xaria». Se encontrarem um documento rastreável que possa contradizer-me, de uma manifestação de mais de 50 pessoas, agradeço que mo comuniquem, que eu não deixarei de o publicar.

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Muito embora, para não dar a oportunidade à sua oposição de o acusar de ter ido buscar ordens junto ao KGBista Vladimir Putin, o President Trump não tenha tido nenhum encontro privado com ele, os dois homens espelham o seu entendimento (Đà Nẵng, 11 de Novembro de 2017).
 
Poderíamos interpretar a obstinação norte-americana em manipular os factos, como o sinal de alinhamento da Administração Trump com a política dos quatro mandatos precedentes. Mas esta hipótese é contrariada pela assinatura de um Memorandum secreto em Amã, a 8 de Novembro, entre a Jordânia [15], a Rússia e os Estados Unidos, e pela Declaração Conjunta dos Presidentes Putin e Trump, a 11 de Novembro, em Da Nang, à margem da cimeira de APEC [16].

O primeiro documento não foi publicado, mas sabemos por indiscrições que ele não leva em conta a exigência israelita de criar uma zona neutra em território sírio, a 60 quilómetros, não para lá da fronteira israelita, mas a partir da linha de cessar-fogo de 1967. Nunca perdendo uma ocasião de deitar óleo na fogueira, o governo britânico reagiu fazendo publicar através da BBC fotografias de satélite da base militar iraniana de El-Kiswah (a 45 quilómetros da linha de cessar-fogo) [17]. Como se poderia antecipar, o Primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu rejeitou imediatamente o acordo entre as Grandes potências e anunciou reservar o direito de Israel em intervir militarmente na Síria para preservar a sua segurança [18];

Este comentário constitui uma ameaça e, como tal, viola a Carta das Nações Unidas. Além disso, todos puderam constatar desde há sete anos que o pretexto de armas destinadas ao Líbano tem as costas largas. A título de exemplo, a 1 de Novembro o Tsahal (FDI) bombardeava, ilegalmente, uma zona industrial em Hassiyé alegando destruir armas destinadas ao Hezbolla. Na realidade, o alvo não era mais do que uma fábrica (usina-br) de cobre, indispensável para o restabelecimento do fornecimento de eletricidade no país [19].

A Declaração de Da Nang comporta nítidos avanços. Assim, ela estabelece, pela primeira vez, que todos os Sírios poderão participar na próxima eleição presidencial. Ora, até agora, os Sírios exilados foram proibidos de votar pelos membros da Coligação Internacional, em violação da Convenção de Viena. Quanto à «Coligação Nacional das Forças da Oposição e da Revolução», ela boicotava as eleições porque era uma instância dominada pelos Irmãos Muçulmanos, para quem «O Alcorão é a nossa Lei» e não há lugar para eleições num regime islamista.

O contraste entre, por um lado, a progressão das negociações Russo-EUA sobre a Síria e, por outro lado, a teimosia dos mesmos Estados Unidos em negar os factos perante o Conselho de Segurança da ONU é impressionante.

É interessante observar o embaraço da imprensa europeia tanto, quer face ao trabalho dos Presidentes Putin e Trump, como da teimosia infantil da delegação dos EU no Conselho de Segurança. Quase nenhum média (mídia-br) evocou o Memorandum de Amã e todos comentaram a Declaração Conjunta, antes de ela ser publicada, fazendo fé sobre a única base de uma Nota da Casa Branca. Quanto às criancices da Embaixatriz Nikki Haley no Conselho de Segurança, eles constataram, unanimemente, que os dois Grandes não tinham chegado a um acordo e ignoraram os argumentos russos, portanto longamente explicados por Moscovo.

Forçosamente constatamos que, se o Presidente Trump tenta liquidar a política imperialista dos seus predecessores, os funcionários internacionais pró-EU da ONU não conseguem adaptar-se à realidade.
Depois de 16 anos de mentiras sistemáticas, não conseguem raciocinar mais em função dos factos, mas, unicamente de acordo com as suas fantasias. Eles não conseguem mais senão tomar os seus desejos por realidades. Esse comportamento é característico de Impérios em declínio.

Tradução
Alva
[1] Referência: Onu S/2001/946 e S/2001/947.
[2] « Discours de M. Powell au Conseil de sécurité de l’ONU », par Colin L. Powell, Réseau Voltaire, 11 février 2003.
[3] “Colin Powell on Iraq, Race, and Hurricane Relief”, ABC, September 8, 2005.
[4] “A Alemanha e a ONU contra a Síria”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Al-Watan (Síria) , Rede Voltaire, 28 de Janeiro de 2016.
[5] Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump, Thierry Meyssan, Demi-Lune, 2017.
[6] “Porquê Trump bombardeou Shairat ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Al-Watan (Síria) , Rede Voltaire, 3 de Maio de 2017.
[7] « Observations émises par le Ministère russe des Affaires étrangères au sujet du dossier chimique syrien », Réseau Voltaire, 23 octobre 2017.
[8] “O relatório da CIA sobre o incidente de Khan Shaikhun é uma falsificação grosseira”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 18 de Abril de 2017.
[9] “Londres e Washington têm fornecido armas químicas aos jiadistas”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 22 de Agosto de 2017, www.voltairenet.org/article1...
[10] « Projet de résolution sur le Mécanisme d’enquête conjoint Onu-OIAC (Véto russe) », Réseau Voltaire, 16 novembre 2017.
[11] « Projet de résolution sur le renouvellement du Mécanisme d’enquête conjoint (Veto russe) », « Utilisation d’armes chimiques en Syrie (Veto russe) », Réseau Voltaire, 24 octobre 2017.
[12] « Projet de résolution sur le Mécanisme d’enquête conjoint Onu-OIAC (Véto russe) », Réseau Voltaire, 16 novembre 2017.
[13] « Débat sur l’incident chimique présumé de Khan Cheïkhoun (veto russe) », Réseau Voltaire, 12 avril 2017.
[14] « Évaluation française de l’attaque chimique de Khan Cheikhoun », Réseau Voltaire, 26 avril 2017.
[15] « La Jordanie apporte son soutien à la Syrie », Réseau Voltaire, 29 août 2017.
[16] « Déclaration commune des présidents russe et états-unien sur la Syrie », Réseau Voltaire, 11 novembre 2017.
[17] “Iran building permanent military base in Syria – claim”, Gordon Corera, BBC, November 10, 2017.
[18] “Israel rejeita o acordo de paz russo-americano na Síria”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 20 de Novembro de 2017.
[19] « Israël bombarde une usine de cuivre en Syrie », par Mounzer Mounzer, Réseau Voltaire, 3 novembre 2017.

aqui:http://www.voltairenet.org/article198903.html

O engodo e o dinheiro do engodo


por Pierre Lévy [*]
 
A surpresa é total, a informação inédita, o furo é incrível: a fraude e a evasão fiscais vicejariam nos quatro cantos do planeta, por meio dos paraísos fiscais. Foi preciso nada menos que um consórcio de 96 media internacionais e de 400 jornalistas para apoiar uma tal revelação, doravante conhecida sob a expressão (forçosamente) inglesa de "Paradise papers".

Mais ainda do que nos casos anteriores (Primavera 2016, Outono 2016), foi desencadeada uma torrente editorial listando os segredos das multinacionais mencionadas, cobrindo de opróbrio os bilionários implicados. A seguir aos grandes media, os responsáveis políticos, com todas as tendências confundidas – em França e alhures – foram prontos e (quase) unânimes a indignarem-se.

Os ministros das Finanças dos 28 de imediato comprometeram-se a reforçar a luta contra as "práticas fiscais agressivas", ainda que legais. A Comissão Europeia apontou com meias palavras os Estados membros que arrastam os pés como suspeito de um dumping fiscal deselegante (Malta, Irlanda, Luxemburgo...). Em Bruxelas, bons espíritos oportunamente aproveitaram a ocasião para martelar que a regra da unanimidade que subsiste apenas do domínio fiscal – para preservar um dedo de soberania nacional – estava decididamente obsoleta.

Face a um tal consenso, convém preservar o espírito crítico. E em primeiro lugar sublinhar que a indignação face a prática "chocantes" substitui o terreno da política pelo da moral – o que é o meio mais seguro de enganar os povos.

Em seguida, a insistência recorrente quanto à necessidade combater este "rumo da globalização" põe a pergunta: será mesmo do "rumo" que se trata? No fundo, a mensagem subliminar dirigida à plebe é a seguinte: se apenas chegássemos a limitar e a civilizar a "cupidez" das grandes firmas e a "avidez" dos bilionários, poderíamos finalmente lucrar com uma globalização feliz.

Ora, é preciso recordar esta verdade que nunca provoca manchetes: a evasão fiscal não poderia existir de modo algum, pelo menos nesta escala, se a livre circulação dos capitais não tivesse sido erigida em artigo de fé, em particular nos tratados europeus. Quem se lembra que antes da década de 1980 todo movimento de capitais era estritamente regulamentado e devia ser declarado? A União Europeia dinamitou este "arcaísmo".

Portanto, a indignação oficial contra a evasão fiscal poderia ser uma espécie de engodo, obscurecendo deliberadamente a verdadeira natureza do fenómeno: uma escolha política de "liberdade", que os oligarcas globalizados pretendem manter a todo custo.

Por outro lado, dão-nos a entender, tudo poderia correr bem melhor se as multinacionais e os hiper-ricos contribuíssem razoavelmente para os orçamentos públicos através dos impostos. Mas há uma questão que nunca é colocada: como se constituem os milhares de milhões de lucros e de fortunas? Para citar apenas um exemplo, o riquíssimo Xavier Niel, proprietário de Free (e accionista de referência do Monde ) é coberto de vergonha porque ele teria abrigado suas pequenas economias nos trópicos. Mas quando um documentário revelou recentemente a verdadeira origem da sua fortuna – a exploração pura e dura de milhares de assalariados, verdadeiros escravos modernos – a repercussão mediática foi ligeiramente mais modesta... E não é de admirar: este é o próprio fundamento do sistema.

Pois o problema não é em primeiro lugar o que revertem – ou não – os detentores de capitais, mas a capacidade destes de prosperar unicamente na base da exploração do trabalho daqueles que não têm senão os seus braços e a sua cabeça para viver. Colocar o projector da indignação na consequência pode constituir o meio mais seguro de escamotear a natureza profunda do problema. Na Opera dos três vintens, de Bertold Brecht, um dos seus heróis dizia: "o que é o assalto a um banco comparado à fundação de um banco?" .

Enfim, aqui e ali, alguns dão a entender e explicam: se não limitarmos a evasão fiscal dos oligarcas, corremos o risco de o "populismo" se desenvolver ainda mais. Mas tentar surfar sobre a cólera popular para melhor distrair do essencial não será, precisamente, uma boa definição do "populismo"?

À força de brincar com o fogo (da indignação), os aprendizes de feiticeiros mediáticos poderiam um dia ter algumas surpresas.
27/Novembro/2017
Ver também:

  • Para onde tem ido todo o excedente?

    [*] Redactor-chefe de Ruptures.

    O original encontra-se em https://ruptures-presse.fr/actu/paradise-evasion-fortune-leurre-niel/


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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