terça-feira, 31 de maio de 2016

A silenciar a América quando ela prepara uma nova guerra


por John Pilger 
 
Killary Clinton. Retornando aos Estados Unidos num ano eleitoral, estou impressionado pelo silêncio. Já cobri quatro campanhas presidenciais, a principiar pela de 1968; eu estava com Robert Kennedy quando ele foi alvejado e vi o seu assassino, a preparar-se para matá-lo. Foi um baptismo no estilo americano, juntamente com a violência salivante da polícia de Chicago na convenção amanhada do Partido Democrático. A grande contra-revolução havia começado.

O primeiro a ser assassinado naquele ano, Martin Luther King, ousara ligar o sofrimento dos afro-americanos e o do povo do Vietname. Quando Janis Joplin cantava, "Liberdade é apenas outra palavra para nada deixar a perder", ela talvez falasse inconscientemente aos milhões de vítimas da América em lugares remotos.

"Perdemos 58 mil jovens soldados no Vietname e eles morreram a defender a tua liberdade. Agora não os esqueça". Assim dizia um guia do Serviço de Parques Nacionais quando na semana passada filmei o Lincoln Memorial, em Washington. Ele dirigia-se a um grupo escolar de adolescentes em brilhantes t-shirts laranjas. Como que automaticamente, ele inverteu a verdade acerca do Vietname convertendo-a numa mentira incontestada.

Os milhões de vietnamitas que morreram e foram mutilados e envenenados e desalojados pela invasão americana não têm lugar histórico nas mentes jovens, para não mencionar os estimados 60 mil veteranos que deram cabo das suas próprias vidas. Um amigo meu, um fuzileiro naval (marine) que ficou paraplégico no Vietname, era muitas vezes indagado: "A qual lado se opunha?"

Uns anos atrás comparecei a uma exibição popular chamada "O preço da liberdade" na venerável Smithsonian Institution, em Washington. Às filas de pessoas comuns, sobretudo crianças arrastadas numa caverna santa de revisionismo, era administrada uma vasta variedade de mentiras: o bombardeamento atómico de Hiroshima e Nagasaki salvou "um milhão de vida"; o Iraque foi "libertado [por] ataques aéreos de precisão sem precedentes". O tema era infalivelmente heróico: só americanos pagam o preço da liberdade.

A campanha eleitoral de 2016 é notável não só pela ascensão de Donald Trump e Bernie Sanders como também pela resiliência de um silêncio permanente acerca de um mortífero [estatuto] auto-concedido de divindade. Um terço dos membros das Nações Unidas já sentiu a bota de Washington, derrubando governos, subvertendo democracias, impondo bloqueios e boicotes. A maior parte dos presidentes responsáveis foram liberais –Truman, Kennedy, Johnson, Carter, Clinton, Obama.

O recorde sensacional de perfídia é tão mutante na mente do público, escreveu o falecido Harold Pinter, que ele "nunca aconteceu ... Nada alguma vez aconteceu. Mesmo quando estava a acontecer não estava acontecendo. Isso não importava. Não tinha interesse. Pouco importava...". Pinter exprimia uma admiração simulada pelo que chamava "uma manipulação bastante clínica do poder à escala mundial ao mesmo tempo que era mascarada como uma força para o bem universal. É brilhante, mesmo genial, um acto de hipnose com grande êxito".

Tome-se Obama. Quando ele se prepara para deixar o gabinete, começou outra vez toda a bajulação . Ele é "cool". Como um dos presidentes mais violentos, Obama deu rédea solta ao aparelho de fabricação de guerras do seu desacreditado antecessor. Ele perseguiu mais denunciantes – os que contavam verdades – do que qualquer outro presidente. Ele declarou Chelsea Manning culpada antes de ela ser examinada. Hoje, Obama dirige uma campanha mundial sem precedentes de terrorismo e assassinato através de drones.

Em 2009 Obama prometeu ajudar a "livrar o mundo de armas nucleares" e recebeu o Prémio Nobel da Paz. Nenhum presidente americano construiu mais ogivas nucleares do que Obama. Ele está a "modernizar" o arsenal da America para o juízo final, incluindo uma nova "mini" arma nuclear, cuja dimensão e tecnologia "inteligente", disse um general proeminente, assegura que a sua utilização "já não é mais impensável".

James Bradley, o autor do best-seller Flags of Our Fathers e filho do fuzileiro naval dos EUA que asteou a bandeira sobre Iwo Jima, disse: "Um grande mito que estamos a assistir é esse de Obama como uma espécie de rapaz pacífico que está a tentar livrar-nos de armas nucleares. Ele é o maior belicista nuclear que há. Está a comprometer-nos numa corrida ruinosa de gastos de um milhão de milhões de dólares com mais armas nucleares. De certo modo, as pessoas vivem nesta fantasia de que como ele dá notícias vagas em conferências e discursos e aparece bem em fotografias isso de algum modo está ligado à política real. Não está".

Com Obama, uma segunda guerra fria está a caminho. O presidente russo é um vilão de pantomina; os chineses ainda não estão de volta à sua sinistra caricatura de macacos – quando todos os chineses forem banidos dos Estados Unidos – mas os guerreiros dos media trabalham para isso.

Nem Hillary Clinton nem Bernie Sanders mencionaram algo disto. Não há risco nem perigo para os Estados Unidos e todo nós; para eles, a maior acumulação militar nas fronteiras da Rússia desde a Segunda Guerra Mundial não aconteceu. No dia 11 de Maio a Roménia aceitou uma base de "defesa de mísseis" da Nato que aponta mísseis americanos de primeiro ataque ao coração da Rússia [NT] , a segunda potência nuclear do mundo.

Na Ásia, o Pentágono está a enviar navios, aviões e forças especiais para as Filipinas a fim de ameaçar a China. Os EUA já cercam a China com centenas de bases militares que se encurvam num arco desde a Austrália até a Ásia e através do Afeganistão. Obama chama a isto um "eixo central" ("pivot").

Como consequência directa, a China confirmadamente mudou sua política de armas nucleares do não-primeiro-uso para o alerta máximo e lançou ao mar submarinos com armas nucleares. A escada rolante está a acelerar.

Foi Hillary Clinton quem, como secretária de Estado em 2010, elevou as reivindicações territoriais que competiam por rochas e recifes no Mar do Sul da China a uma questão internacional. Seguiu-se a histeria da CNN e da BBC. A China estava a construir pistas de pouso nas ilhas disputadas. Num jogo de guerra gigante em 2015, a Operation Talisman Sabre , os EUA e a Austrália experimentaram "engasgar" os Estreitos de Málaca pelos quais passa a maior parte do petróleo e do comércio da China. Isto não foi noticiado.

Clinton declarou que a América tinha um "interesse nacional" naquelas águas. As Filipinas e o Vietname foram encorajados e subornados para prosseguirem com suas reivindicações e velhas inimizades contra a China. Na América, o povo está a ser intoxicado a fim de encarar qualquer posição defensiva chinesa como ofensiva e, assim, o terreno fica preparado para uma escalada rápida. Uma estratégia semelhante de provocação e propaganda é aplicada à Rússia.

Clinton, a "candidata das mulheres", deixa um rastro de golpes sangrentos:   nas Honduras, na Líbia (mais o assassínio do presidente líbio) e na Ucrânia. Este último é agora um parque de diversões da CIA enxameado de nazis e a linha de frente de uma acenada guerra com a Rússia. Foi através da Ucrânia – literalmente, terra de fronteira – que os nazis de Hitler invadiram a União Soviética, a qual perdeu 27 milhões de pessoas. Esta catástrofe gigantesca permanece presente na Rússia. A campanha presidencial de Clinton tem recebido dinheiro de todas excepto uma das dez maiores companhias de armamento do mundo. Nenhum outro candidato se aproxima.

Sanders, a esperança de muitos jovens americanos, não é muito diferente de Clinton na sua visão de proprietário do mundo para além dos Estados Unidos. Ele apoiou o bombardeamento ilegal da Sérvia promovido por Clinton. Ele apoiou o terrorismo de Obama com drones, a provocação da Rússia e o retorno de forças especiais (esquadrões da morte) ao Iraque. Ele nada tem a dizer sobre os tambores de guerra com ameaças à China e quanto ao agravamento do risco de guerra nuclear. Ele concorda em que Edward Snowden deveria ser submetido a julgamento e chama Hugo Chavez – um social-democrata, como ele – de "ditador comunista morto". Ele promete apoiar Clinton se esta for nomeada.

A eleição de Trump ou de Clinton é a velha ilusão da escolha que não é escolha:   dois lados da mesma moeda. Transformando minorias em bodes espiatórios e prometendo "tornar a América grande outra vez", Trump acaba por ser um populista interno de extrema direita; mas o perigo da Clinton pode ser mais letal para o mundo.

"Só Donald Trump não disse nada de significativo e crítico acerca da política externa dos EUA", escreveu Stephen Cohen , professor emérito de História Russa nas Universidades de Princeton e Nova York, um dos poucos peritos em Rússia nos Estados Unidos a falar acerca do risco de guerra.

Numa entrevista à rádio, Cohen referiu-se a questões críticas que só Trump levantou. Dentre elas:   por que os Estados Unidos estão "por toda a parte do globo"? O que é a verdadeira missão da NATO? Por que os EUA procuram sempre mudanças de regime no Iraque, Síria, Líbia, Ucrânia? Por que Washington trata a Rússia e Vladimir Putin como inimigos?

A histeria nos media liberais acerca de Trump serve a uma ilusão de "debate livre e aberto" e de "democracia a funcionar". Suas visões sobre imigrantes e muçulmanos são grotescas, mas o deportador-chefe de pessoas vulneráveis da América não é Trump e sim Obama, cujo legado é a traição às pessoas da sua cor:   basta ver a acumulação nas prisões de uma população principalmente negra, agora mais numerosa do que no gulag de Stalin.

Esta campanha presidencial pode não ser acerca do populismo mas sim do liberalismo americano, uma ideologia que se vê a si própria como moderna e portanto superior e o único caminho consagrado. Aqueles à sua direita comportam-se como os cristãos imperialistas do século XIX, com um dever divino de converter ou cooptar ou conquistar.

Na Grã-Bretanha, isto é o blairismo. O criminoso de guerra cristão Tony Blair avançou com a sua preparação secreta para a invasão do Iraque em grande medida porque a classe política e os media liberais caíram no seu "orgulho britânico" ("cool Britannia"). No Guardian, o aplauso era ensurdecedor; ele foi chamado de "místico". Uma ilusão conhecida como política de identidade, importada dos Estados Unidos, acomodou-se facilmente aos seus cuidados.

A história foi declarada ultrapassada, a classe foi abolida e o género promovido como feminismo; montes de mulheres tornaram-se deputadas do New Labour. Desde o primeiro dia no Parlamento elas votaram pelo corte de benefícios a pais solteiros, sobretudo mulheres, como lhes foi instruído. A maioria votou por uma invasão que provocou 700 mil viúvas iraquianas.

O equivalente nos EUA são os politicamente correctos belicistas do New York Times, Washington Post e redes de TV que dominam o debate político. Era claro, disseram eles, que a um homem como aquele não podia ser confiada a Casa Branca. Nenhumas questões foram levantadas. Nada acerca dos 80 por cento de americanos cujo rendimento colapsou para os níveis da década de 1970. Nada sobre a deriva para a guerra. A sabedoria corrente parece ser "cuide do seu nariz" e vote por Clinton: qualquer um excepto Trump. Desse modo, você trava o monstro e preserva um sistema que silencia [a preparação de] uma nova guerra.
27/Maio/2016 
 
[NT] Trata-se do sistema Aegis Combat, capaz tanto de controlar o lançamento de mísseis anti-balísticos como de lançar mísseis de cruzeiro Tomahawks.   A sua instalação na base aérea romena de Deveselu viola o tratado Intermediate-Range Nuclear Forces, de 1987.   Está prevista a instalação de um sistema semelhante na Polónia.   Ver NATO Missile Shield Is Practically Guaranteeing a Russian Preemptive Strike .

O original encontra-se em johnpilger.com/articles/silencing-america-as-it-prepares-for-war

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

quinta-feira, 12 de maio de 2016

ÁUSTRIA OUTRA VEZ

por José Goulão



 
Dizem que a História não se repete; ou que se repete como farsa. Porém, ninguém pode garantir, apesar de asserções tão veementes, que ela não se repita como tragédia. Pode acontecer, parece mesmo que já está a acontecer sob os circunspectos narizes das eminências da União Europeia, porém tão ocupadas a estrangular a Grécia, a decifrar os oráculos de arbitrariedade do BCE e do Eurogrupo, a subverter as vontades legítimas dos portugueses, a devolver refugiados aos campos da morte, a minar o voto referendário dos britânicos, a bajular o sultão turco, a pretender caçar terroristas que não precisam de extraordinários talentos para estarem sempre dois passos à frente da parafernália de espionagem virada contra a privacidade do cidadão comum.

Adolf Hitler era austríaco, recorda-se. Isso não quer dizer que a Áustria seja um berço de führers nazis; mas também não se pode garantir que a semente geradora de um se tenha tornado improdutiva. Porque quando se lêem resultados eleitorais onde um herdeiro político do criminoso que desencadeou a Segunda Guerra Mundial atinge os 35 por cento à primeira – mais uns pozinhos do que os nazis alemães obtiveram no sufrágio que lhes ofereceu o governo em 1933 – deduz-se que o caso é de monta, deveria ser levado a sério.
Sobretudo porque não é um caso isolado na Europa, embora tenha a enorme carga, e não apenas simbólica, de ter emergido na Áustria. Há os bandos da senhora Le Pen em França; o governo e os seus grupos de assalto fascistas na Ucrânia, entronizado um pela santíssima aliança entre a União Europeia e os Estados Unidos, treinados outros por militares norte-americanos, na reserva ao que dizem; há também as maquinações governamentais fascistas nos países nórdicos e bálticos; os garrotes do nacionalismo aristocrático ultramontano com que os governos polaco e húngaro asfixiam metodicamente os seus povos; há ainda o imperador pan-turco Erdogan, o garante de que as guerras no Médio Oriente estão para durar enquanto brinca com as vidas de milhões de fugitivos, abrindo-lhes ou fechando-lhes as portas da sobrevivência com as mãos untadas pelo dinheiro surripiado aos contribuintes europeus.
Para lá do Atlântico, Trump reina como um vingativo salvador de desvalidos e descontentes sobre o pântano republicano e a criminosa mentira democrática; nas Filipinas triunfa eleitoralmente El Castigador, o nacionalismo terrorista que comanda hordas de esquadrões da morte invocando a injustiça social, assustadora, que as “elites políticas” – assim lhes chama – têm aprofundado usando o Estado como se fosse coisa sua.
Na Venezuela, na Argentina, no Brasil, amanhã na Bolívia, quiçá no Uruguai, os fascistas outrora com fardas de generais e carrancas de carrascos, hoje de polo de marca, ou de fato e gravata e sorriso de gel, estão a dar largas ao ódio de vingança há muito acumulado contra as transformações democráticas e populares, comandados, como sempre, pela batuta de Washington.
Tudo isto acontece, aqui e lá, sobre os escombros dos sistemas tradicionais de poder, entre eles o tão famoso “bloco central” em que a sanguessuga neoliberal assentou o seu regime, usando a democracia para subverter a democracia. A realidade não é assim tão simplista, tem variantes, mas o que conta são os resultados: alargamento do fosso das desigualdades, mais milhões empurrados para junto dos milhões de deserdados, a fome e as epidemias alastrando, centenas de milhões de seres humanos à deriva pelo planeta, e o mundo nas mãos de meia dúzia de eleitos que ninguém elegeu e que usam a Terra como o seu quintal, manejando os cordelinhos das marionetas políticas – parece ter chegado o momento em que só as genuinamente fascistas lhes servem.
Enquanto isto acontece, a comunicação social dominante oferece-nos uma realidade paralela embalada no basbaquismo das maravilhas tecnológicas, e assim transforma a ficção em vida para consumo, na mais conseguida e universal das lavagens aos cérebros.

aqui:http://mundocaohoje.blogspot.pt/

segunda-feira, 9 de maio de 2016

A política estrangeira dos E.U.A

por Thierry Meyssan

 A política externa dos EU é hoje muitas vezes contraditória, como se vê na Síria, onde as tropas treinadas pelo Pentágono se batem contra as treinados pela CIA. No entanto, ela é perfeitamente coerente em dois pontos: dividir a Europa entre, por um lado, a UE, e por outro a Rússia; e dividir o Extremo-Oriente entre, por um lado, a ASEAN, e por outro a China. Porquê, e pode-se prever o que acontecerá, desde já ?


JPEG - 54.1 kb 
 
Para explicar, e portanto prever, a política externa dos Estados Unidos, tem-se oposto durante mais de um século os isolacionistas aos intervencionistas. Os primeiros situavam-se na linha dos «Pilgrim Fathers» (Pais Peregrinos-ndT) que fugiram da velha Europa para construir um mundo novo, baseado nos seus valores religiosos e, portanto, afastado do cinismo Europeu. Os segundos, na tradição de certos dos «Pais Fundadores», entendiam não somente conquistar a sua independência, mas prosseguir por sua conta o projecto do Império Britânico.

Hoje em dia, esta distinção não faz mais sentido porque se tornou impossível viver em isolamento, mesmo para um grande país como os Estados Unidos. Muito embora seja comum acusar os seus adversários políticos de isolacionismo, não há nenhum político norte-americano —escontando Ron Paul— que defenda essa ideia.

O debate situa-se entre os partidários da guerra perpétua e os adeptos de uma utilização mais contida da força. Se levarmos em conta os trabalhos dos professores Martin Gilens e Benjamin I. Page, a política actual dos Estados Unidos é decidida por um conjunto de grupos de interesse, independentemente da vontade dos cidadãos [1]. É, portanto, legítimo ver neste debate a influência, por um lado, do complexo militar-industrial que domina a economia dos EU, cujo interesse é o de prosseguir a «guerra sem fim»; e, por outro lado, as empresas de rendimentos (computadores, alta tecnologia, entretenimento), as quais, é certo têm uma produção mais virtual que real, mas que cobram as suas rendas por todo o lado onde o mundo está em paz.

Esta análise do debate deixa de lado a questão do acesso às matérias-primas e fontes de energia, que foi dominante nos séculos XIX e XX, mas perdeu a sua acuidade sem, no entanto, desaparecer totalmente.

A partir da «Doutrina Carter», que assimila o acesso aos hidrocarbonetos do «Médio-Oriente Alargado» a uma questão de «segurança nacional» [2], viu-se Washington criar o CentCom, deslocar mais de 500. 000 homens para o Golfo, e reclamar o contrôlo de toda a região. Lembramos que, persuadido da iminência do «pico petrolífero», Dick Cheney decidiu preparar as «Primaveras Árabes» e guerras contra todos os Estados da região que não controlava. Mas, esta política perdeu o seu sentido no decurso da aplicação porque os Estados Unidos, além da produção de gás e petróleo de xisto («fracking»-ndT), assumiram o contrôlo dos hidrocarbonetos do Golfo do México. Por conseguinte, nos próximos anos os Estados Unidos não só terão abandonado o «Médio-Oriente Alargado», como estão na disposição de lançar uma grande guerra contra a Venezuela, única média potência a rivalizar e a ameaçar a sua exploração no Golfo do México.

Na sua série de entrevistas com a The Atlantic, o Presidente Obama tentou explicitar a sua doutrina [3]. Para o fazer, respondeu longa e repetidamente aos que o acusam de contradição ou de fraqueza, nomeadamente após o episódio da linha vermelha na Síria. Ele tinha, com efeito, declarado que o uso de armas químicas era uma linha vermelha a não cruzar, mas quando a sua administração alegou que a República Árabe Síria as tinha usado, contra a sua própria população, recusou desencadear uma nova guerra. Deixando de lado o facto de saber se a acusação era verdadeira ou não, o Presidente sublinhou que os Estados Unidos não tinham nenhum interesse em arriscar a vida dos seus soldados neste conflito, e que ele havia escolhido poupar as suas forças para dispôr delas face a ameaças reais contra o interesse nacional. É esta contenção que constituiria a «Doutrina Obama».

Quais são, portanto, estas verdadeiras ameaças ? O Presidente não o diz. Quando muito, pode-se recorrer ao mesmo tempo aos trabalhos do US National Intelligence Council e às observações precedentes sobre o poder dos grupos de interesse. Parece, então, que os Estados Unidos abandonaram a «Doutrina G. W. Bush», post 11-de-Setembro, de dominação global para regressar à do seu pai: a excelência comercial. Uma vez a Guerra Fria terminada, à falta de inimigo a época devia ser aproveitada, unicamente, para a competição económica no seio do sistema capitalista liberalizado.

Aliás, para bem demonstrar que a era dos conflitos ideológicos estava terminada é que o Presidente Obama se aproximou de Cuba e do Irão. Era indispensável apaziguar a oposição destes dois Estados revolucionários, os únicos a contestar não só a supremacia dos Estados Unidos, mas, também, as regras do jogo internacional. A má fé da qual os Estados Unidos fazem prova na aplicação do acordo 5+1 atesta, simplesmente, que eles não têm nada a fazer quanto ao nuclear iraniano, antes buscam, unicamente, colocar uma trela à revolução Khomeinista.

É neste contexto que se assiste ao regresso da «Doutrina Wolfowitz», segundo a qual tudo deve ser feito para prevenir a emergência de um novo concorrente, a começar pelo controlar a União Europeia [4]. Esta estratégia parecia ter sido modificada, já que Washington considerava com maior apreensão ainda o despertar da China. Assim, pôde-se falar de uma estratégia de «Báscula para o Extremo-Oriente», consistindo na retirada de tropas presentes no Médio-Oriente Alargado e a reposicioná-las, quer tanto para controlar esta nova região como para conter o poderio chinês. Se o Pentágono abandonou o delírio neo-conservador de destruição da China, ele entende conter Pequim num papel exclusivamente económico e interditar-lhe qualquer influência política fora das suas fronteiras.

No entanto, é ao contrário da «Báscula para o Extremo-Oriente» a que se assiste. Os Estados Unidos reforçaram ligeiramente, é certo, a sua presença no Pacífico, mas implantaram-se militarmente sobretudo na Europa central. Na altura exacta em que as guerras prosseguem na Palestina e no Iémene, na Síria e no Iraque, e que as armas vão falar de novo na Líbia, um novo conflito foi iniciado na Ucrânia. Existem, no entanto, duas maneiras de interpretar esta evolução.

Por um lado, pode-se considerar que a implantação militar na fronteira russa, e a resposta militar que ela suscita de Moscovo, não ameaçam de forma alguma a paz. Parece, com efeito, ao mesmo tempo muito arriscado e absolutamente desnecessário desencadear um tal conflito. A guerra na Ucrânia não seria, então, dirigida contra a Rússia, antes constituiria a fabricação artificial de uma pseudo-ameaça russa sobre a Europa, com as suas sanções e contra-sanções, permitindo aos Estados Unidos «proteger» os seus crédulos aliados.

Por um lado, pode-se considerar que o futuro económico dos Estados Unidos repousa sobre o seu contrôlo das trocas internacionais e, portanto, sobre o contrôlo do transporte marítimo [5]. Pelo contrário, o desenvolvimento da Rússia e da China supõe libertar-se da tutela dos E.U. e, assim, construir rotas comerciais continentais. É o projecto do Presidente Xi com a construção de duas Rotas da Seda, uma passando pelo seu antigo traçado através da Ásia Central, do Paquistão, do Irão, do Iraque e da Síria até ao Mediterrâneo; a outra passando pela Rússia até à Alemanha. Duas rotas que são hoje em dia cortadas, no Levante pelo Daesh (E.I.), e na Europa pela Ucrânia.

A questão do transporte marítimo estava no centro da estratégia norte-americana no início do século XXI com o apoio aos piratas do Corno de África [6]; uma estratégia que terminou quando Moscovo, e Pequim, enviaram para o local a sua marinha de guerra. No entanto, mesmo se a China fez o Egipto dobrar o Canal do Suez, o acesso pelo Estreito de Bal el-Mandeb permanece controlado oficialmente via Djibuti e, informalmente, pela Al-Qaida, via Emirado Islâmico de Mukalla.

Ao contrôlo de rotas comerciais, convêm acrescentar o das trocas financeiras. Razão pela qual, a Justiça norte-americana promulgou regras que tenta impôr, progressivamente, aos bancos do mundo inteiro. Mas aí, novamente, a Rússia montou o seu próprio sistema Swift, enquanto a China recusou a convertibilidade da sua moeda em dólares, para não estar adstrita às regras dos EUA.

Se esta análise fôr correcta, as guerras na Síria, no Iraque e na Ucrânia só acabarão quando a Rússia e a China tiverem garantido um outro itinerário comercial até à Europa Ocidental. Neste sentido, observamos os esforços norte-americanos em fazer bascular a Bielorrússia para o seu campo após a ter hostilizado durante um tempo enorme ; uma maneira de estender o corta-fogo ucraniano e de se assegurarem quanto a uma hermética divisória entre a Europa Ocidental e Oriental.

Nesta perspectiva, as negociações comerciais que os Estados Unidos empreenderam com a União Europeia (TTIP) e com a ASEAN (TPP) não têm por fim reforçar as suas trocas, mas, pelo contrário, excluir a Rússia e a China dos mercados. De maneira muito estúpida os europeus e asiáticos concentram-se na escolha das normas de produção em vez de exigir a entrada dos Russos e dos Chineses nas negociações.

Um último ensinamento das entrevistas, à The Atlantic, é que os Estados Unidos entendem actualizar as suas alianças, adaptá-las à sua nova doutrina estratégica. Assim, o apoio aos Saud, que prevalecia na época do petróleo do Médio-Oriente, não tem, mais, qualquer interesse e constitui mesmo um fardo. Ou, ainda, a «relação especial» com o Reino Unido que tinha um valor, do contrôlo dos oceanos (Carta do Atlântico) até à tentativa de desenho de um mundo unipolar (guerra do Iraque), não apresenta, mais, especial interesse e deve ser repensada. Sem esquecer o custoso apoio a Israel, que não tem mais utilidade no Médio-Oriente, e que só poderá prosseguir se Telavive se mostrar útil em outras regiões do mundo.

As observações precedentes, não têm tradução na actual campanha presidencial nos Estados Unidos que opõe, de um lado, o complexo militar-industrial militar e a ideologia WASP, representados por Hillary Clinton e, do outro, a indústria de infra-estructuras e o pacto social do «sonho americano», representados por Donald Trump [7]. A violência desta campanha atesta a necessidade de reequilíbrio destas forças, após uma supremacia, sem partilha, do belicismo desde 1995.

Assim que o campo, hoje em dia, representado por Trump prevalecer, deveremos assistir à resolução das guerras, mas uma opressiva coerção será exercida para o pagamento de patentes e direitos de autor. No caso em que a sua vitória tarde a chegar, os Estados Unidos deverão fazer face ao levantamento de uma população exasperada e a motins. Tornar-se-ia, então, particularmente difícil prever a política externa dos EUA.
Tradução
Alva


[1] « Testing Theories of American Politics : Elites, Interest Groups, and Average Citizens » («Ensaindo Teorias sobre a Política Americana : Elites, Grupos de Interesse, e Cidadãos Comuns»- ndT),, Martin Gilens and Benjamin I. Page, Perspectives on Politics, Volume 12, Issue 03, September 2014, pp. 564-581.
[2] “State of the Union Address 1980”, by Jimmy Carter, Voltaire Network, January 23rd, 1980.
[3] “The Obama Doctrine” («A Doutrina Obama»- ndT), Jeffrey Goldberg, The Atlantic (USA) , Voltaire Network, March 10th, 2016.
[4] « US Strategy Plan Calls For Insuring No Rivals Develop », Patrick E. Tyler, and « Excerpts from Pentagon’s Plan : "Prevent the Re-Emergence of a New Rival" », New York Times, March 8th, 1992. « Keeping the US First, Pentagon Would preclude a Rival Superpower », Barton Gellman, The Washington Post, March 11, 1992.
[5] “The Geopolitics of American Global Decline” («A Geo-política do Declínio Americano Global»- ndT), by Alfred McCoy, Tom Dispatch (USA) , Voltaire Network, June 22nd, 2015.
[6] « Pirates, corsaires et flibustiers du XXIe siècle » («Piratas, corsários e flibusteiros do XXIº século»- ndT), par Thierry Meyssan, Оdnako (Russie), Réseau Voltaire, 25 juin 2010.
[7] “Quem será o próximo Presidente dos Estados Unidos?”, “Mattis contra Trump”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Al-Watan (Síria) , Rede Voltaire, 4 de Abril, 4 de Maio de 2016.

aqui:http://www.voltairenet.org/article191674.html

Publicação em destaque

Marionetas russas

por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...