segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sustentabilidade do SNS – Não há dinheiro?


  por Jorge F. Seabra [*]
 
Os custos e a alegada insustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS) têm constituído a espinha dorsal d a argumentação usada por governos e partidos da área do poder para justificarem os cortes orçamentais que hipotecam o desenvolvimento do SNS, servindo de explicação para a contínua retirada de direitos aos cidadãos.

Na realidade, as transferências do Orçamento de Estado para o SNS têm vindo a diminuir drasticamente, sendo os governos muito criativos na invenção de múltiplas e enviesadas formas de o sub-financiar.

Se em 2010 foram transferidos do Orçamento de Estado para o SNS 8.848 milhões de euros, em 2012 essa verba diminuiu para 7.107 milhões, um corte de cerca de 20% (19,7%) [fonte: SNS – Orçamento de Estado 2012, Ministério da Saúde].

Contudo, o facto de sucessivos governos terem desenvolvido políticas fiscais laxistas ou favorecedoras das grandes empresas cotadas em Bolsa e desviado enormes somas para apoio a investimentos de prioridade mais que discutível - BPN e BPP, BCP, SIRESP, submarinos, "perdão fiscal" às mais valias da PT, do BES, da Jerónimo Martins, "off-shore" da Madeira, auto-estradas em excesso, contratos ruinosos nas PPP, "rendas" abusivas na energia, etc., - mostra que a apregoada insustentabilidade financeira do SNS, não pode ser, dessa forma, justificada, existindo muito dinheiro malparado que daria, caso as escolhas políticas fossem outras, para assegurar, sem dificuldade, o presente e o futuro do SNS.

De resto, quer no plano nacional, quer no internacional, não foi a bancarrota do "Estado Social" ou o custo dos serviços por ele prestados, a causa da crise em que o mundo e o país mergulharam. Na realidade, foi a falência do sistema financeiro, originada por uma política de desregulação que estimulou investimentos não produtivos de elevado risco e crédito armadilhado para estimular o consumo, a causa do previsível e inevitável "crash" que, depois, os mesmos interesses egoistas fizeram repercutir sobre toda a economia. A grave situação actual foi desencadeada por esse desastre financeiro que governos cúmplices procuraram e procuram encobrir, tapando buracos e "imparidades" com dinheiros públicos, que depois dizem faltar à sustentabilidade dos direitos sociais.

Em Fevereiro de 2008, depois de anos de apregoada insustentabilidade financeira do National Health Service inglês, o governo britânico injectou, sem hesitação e num piscar de olhos, 73 mil milhões de euros (aproximadamente o valor total da "ajuda" do BCE-FMI a Portugal) para "salvar" o Northern Bank que a especulação bolsista da administração levara à falência.

Em Portugal, enquanto se corta no Ensino e na Saúde, perdoa-se aos acionistas da PT 270 milhões de euros que deviam pagar ao fisco, gastam-se 5 a 7 mil milhões de euros só para safar um banco (BPN), que depois se vende por 40 milhões, gastam-se mais 450 milhões para "salvar" o BPP (ou alguns dos seus accionistas) que acabou por fechar deixando os depositantes mais crédulos de bolsos vazios. Retiram-se mil milhões de euros ao SNS, mas pretendeu-se dar 800 milhões de euros às grandes empresas, cortando a taxa social única (TSU) que os trabalhadores teriam de compensar,. A Caixa Geral de Depósitos, que gastou dinheiro no socorro ao BPP e ao BPN (que o estado tem de repor), há pouco recapitalizada com fundos da "ajuda" da troika , corta os empréstimos aos cidadãos e às pequenas e médias empresas mas financia os Mellos em centenas de milhões de euros para completarem a aquisição da Brisa (os mesmos Mellos que continuam a investir nas Parcerias Público-Privadas da Saúde ocupando o vazio criado com o sub-financiamento do SNS).

Confirmando que o problema não se centra na (in)capacidade financeira ou na insuficiente produção de riqueza mas sim numa opção ideológica facciosamente monetarista ao serviço de interesses dos donos da banca e das grandes empresas, as mesmos instituições (Comissão Europeia, BCE, FMI) que afirmam, nos media, a dificuldade ou impossibilidade de resolver os problemas da dívida soberana dos preguiçosos países do Sul, dolosamente apelidados de PIGS, retirando direitos (nomeadamente na Saúde) aos seu povos, encontraram a forma rápida de "dar", discretamente, só em Dezembro de 2011 e Fevereiro de 2012, um milhar de mil milhões de euros (1000 de mil milhões) à banca.

Sublinhe-se, a propósito da grandeza dos números, que o total de apoios à banca europeia, era, segundo afirmou Durão Barroso ao Parlamento Europeu em Setembro de 2011, de 4.600 mil milhões de euros, o que, somado aos recentes acrescentos, eleva essa ajuda a um total fabuloso de 5.600 mil milhões de euros, (7 a 10 vezes o fundo de estabilidade europeia - ESM, a "grande bazuca" contra a especulação recentemente aprovada, cerca de 15 vezes o valor total da dívida grega e 71 vezes a "ajuda" concedida a Portugal, uns "míseros" 78 mil milhões, metade dos quais irão ser devolvidos em juros e comissões).

Então não há dinheiro?...

"Há e não há! É uma questão de prioridades. Há para umas coisas e não há para outras..." – como disse o (tão ignorado pela TV) Prof. Bruto da Costa, prestigiado economista, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, organismo oficial da Igreja Católica:

De facto, a pergunta correcta não é se há dinheiro. A questão que deve ser posta aos portugueses é se querem continuar a gastar o dinheiro que têm a "salvar" os accionistas do BPN e do BPP, a pagar mais uma auto-estrada aos Mellos, a comprar submarinos que nem os compromissos da NATO obrigam, a dar muitos milhões em "rendas" às PPP e às empresas de energia, a perdoar impostos à banca e às famigeradas Sociedades Gestoras de Participações Sociais (SGPS), ou se, pelo contrário, acham melhor gastá-lo em investimentos produtivos e no financiamento do SNS e de outros serviços sociais do estado.

Dez caças F-16 comprados em 1994 e que nunca chegaram a sair dos caixotes onde ainda hoje permanecem, representam "só" 600 milhões de euros abandonados a um canto, constituindo um paradigmático monumento ao despesismo delirante e terceiro mundista dos nossos rigorosos governantes que tão facilmente acusam os portugueses de viver acima das suas possibilidades e o SNS de ter um custo insuportável.

Apesar dos alegados desperdícios dolosamente empolados pelos governos das últimas décadas que sobre eles montaram outra das vertentes da argumentação justificativa do apoio prestado aos grandes interesses privados, o Serviço Nacional de Saúde continua a constituir um dos maiores avanços alcançados pela democracia em Portugal, tendo colocado o país no pelotão da frente dos melhores cuidados de Saúde (12º do mundo em 2001, segundo a OMS) permanecendo ainda, e apesar de todos os ataques desferidos, como um serviço público eficaz e com boa rentabilidade (cada vez menor, é certo).

A celebrada "empresarialização" dos Hospitais, que inoculou o pior da lógica da organização privada no seio do serviço público, trouxe consigo uma "criativa" concorrência de números e práticas de obscuro rigor, perseguindo lucros virtuais construídos na falsidade das estatísticas, a que acrescentou, simultaneamente, uma cascata de medidas regulamentadoras que insuflaram o desvio administrativista e burocrático da gestão hospitalar.

Esse caminho perverso, quase sempre redundante e supérfluo, sobrepôs-se à prioridade natural dos objectivos clínicos, multiplicando administradores, assessores e outsourcings , fazendo disparar os custos sem melhorar a qualidade dos serviços.

O ataque às Carreiras Médicas, que asseguravam e validavam a progressão técnico-científica dos médicos e a estruturação hierárquica dos Serviços, desvalorizou a avaliação inter-pares substituindo-a por nomeações e contratos isolados, tornando o exercício da prática médica mais precário e fragmentado, mais dependente de regras irracionais e de números ilusórios. Assim se foi também menorizando a formação e a investigação clínica, tornando mais difícil a criação do espírito de equipa facilitador do trabalho multidisciplinar. Com a necessidade de contratação de empresas externas, muitas vezes para assegurar unicamente as urgências, fez-se aumentar, sem proveito, os gastos do Estado no SNS, pondo em risco a sua qualidade e o seu futuro.

Apesar disso, os custos do SNS português permanecem (ao contrário do que é apregoado), em valores significativamente baixos, quando comparados com outros países europeus. Embora o cidadão português seja dos que mais gasta do seu bolso - 24% dos gastos em Saúde são custos directos com medicamentos, saúde oral e outros (fora do SNS) -, o gasto médio em Saúde por habitante é, em Portugal (1.627 euros), muito inferior ao da Espanha (2.139), metade da Alemanha (3.221), Suécia (3.335) e França (3.370) e três vezes menos que nos USA (5.227) e Luxemburgo (5.438) [dados recentes fornecidos pelo Eurostat e referentes a 2008].

Só no contexto virtual criado pela Tutela e pelos media , é que o SNS – apresentado como estando sempre em crise -- vive acima das suas (nossas) possibilidades, num país preguiçoso e sem dinheiro. Por isso, segundo a Tutela, há que fazer pagar o cidadão que procura o sistema público, e que o usa por vezes mal (devido à desorganização da ligação dos cuidados primários com os diferenciados), encaminhando-o para as Urgências, engarrafando os seus acessos, o que estimula a conflitualidade e o descontentamento.

O "cliente" menos informado é, assim, através dos media que constantemente atacam o serviço público de Saúde, instrumentalizado e atirado às bichas das Urgências e dos SAP, ou desviado para a privada a pretexto dos tempos de espera de consultas e intervenções cirúrgicas que a Tutela faz gala em lamentar nos telejonais, nunca ter dado mostras de querer, verdadeiramente, resolver esses problemas dentro do SNS. Aliás, diga-se em abono da verdade, que se a Tutela os já tivesse resolvido, teria solucionado o essencial, e não haveria nenhuma oportunidade de negócio para a grande privada que, provavelmente, nem sequer existiria.

Como o SNS conquistou um lugar incontornável no núcleo de direitos alcançado pela democracia portuguesa, não há ainda, no amplo espectro partidário português (mesmo entre os mais ortodoxos apoiantes do neoliberalismo monetarista de Milton Friedman do nosso governo), quem assuma publicamente ser contra ele. Todos afirmam defender o SNS e tudo o que fazem, quando no poder, é justificado pela busca da sua sustentabilidade ou do seu aperfeiçoamento . Seguindo essa tática, a resposta da Tutela tem sido sempre a de mostrar preocupação com o "caos" e o "problema" da Saúde, dedicando-se a "aperfeiçoar" medidas "salvadoras" do SNS, que, na realidade, mais o foram afundando, agravando os seus problemas, aproveitando a deixa para fazer o cidadão pagar, de forma pedagógica, "aprendendo" assim que a Saúde custa dinheiro.

Tornou-se pois, necessário que o cidadão se habitue a pagar. Pagar a alguém, pagar por cada acto, por cada episódio, por cada consulta. Como na privada. Ou melhor, como na grande privada, porque a pequena é já hoje uma realidade quase inexistente não passando, na maioria dos casos, de consultórios- franchizing das companhias de seguros que pagam cada vez pior o trabalho médico (30 euros brutos ou menos por cada consulta de especialidade). De fora, restam apenas franjas sobrantes que ainda alimentam, em alguns profissionais, o sonho de uma medicina liberal, numa profissão que cada vez mais se proletariza (no mau sentido do termo, infelizmente).

É a grande privada que se tem expandido exponencialmente, ocupando espaço criado pelo progressivo desabamento do SNS causado pelas medidas tomadas pela Tutela "para o consolidar" . É ela a grande vencedora deste jogo de sombras. É ela também que se apropria dos maiores lucros (é o negócio mais lucrativo, a seguir ao das armas – Isabel Vaz /BES Saúde, dixit ). A grande privada que, paradoxalmente, só sobrevive e acumula lucros com a baixa remuneração da maioria dos profissionais e a contribuição decisiva de subvenções e apoios estatais, conhecidos e desconhecidos, directos e indirectos, através das PPP, dos sub-sistemas, das transferências de doentes como a ADSE, Min.Justiça, SIGIC, dos cheque-cirurgia, das convenções, das assessorias, tirando mais dinheiro dos bolsos dos contribuintes que voltam a pagar o que já descontaram para o SNS.

A Constituição assegura um SNS tendencialmente gratuito e proíbe o co-pagamento? Pois há que fazê-lo tendencialmente pago! Como? Nada melhor do que criar taxas ditas "moderadoras", porque moderar não é constitucionalmente proibido. O estranho, nessas taxas "moderadoras", é que também são cobradas análises, colonscopias, gastroscopias, broncoscopias, como se isso fosse escolha (ou abuso) do doente, viciado em picadelas, exames invasivos e operações, e não actos só possíveis de executar por prescrição médica.

Na realidade, as taxas "moderadoras" têm outro papel: o de indiciar um co-pagamento progressivo que atenue a diferença com o preço da privada e crie a habituação de que os cuidados de Saúde não são um direito inerente a qualquer cidadão e um serviço pré-pago. As taxas são, de facto, um duplo pagamento contrário ao espírito e à letra da Constituição (como toda a gente sabe), e só o contorcionismo jurídico de um Tribunal Constitucional partidarizado as conseguiu encaixar no seu espírito solidário e "tendencialmente gratuito".

O actual governo assume despudoradamente querer reformar o "Estado Social", abandonando o dever de garantir, por igual, o direito de todos os cidadãos à Saúde, substituindo-o por uma política caritativa e assistencialista (a devolução, pelo SNS, de duas dezenas de hospitais às Misericórdias e a campanha de um "cortejo de oferendas" para construir uma ala pediátrica de um grande hospital público, são apenas dois símbolos desse retrocesso). Assim se procura dar aos "pobres", o pouco que resta de um Orçamento de Estado virado para os negócios e para as negociatas, a que se juntam as sobras de um "mecenato" que as grandes empresas quiserem dispensar com o dinheiro que lhes é poupado nos impostos, e a quem, todos nós, depois, devemos ficar servilmente agradecidos.

Sublinhe-se que nada há de mal ou criticável na prática médica individual e privada da Medicina. Um médico pode e deve, em qualquer sistema (público ou privado), exercer com honestidade e eficiência a sua profissão. Mas a privatização dos cuidados de Saúde, como forma organizativa que tem em vista o lucro, não é barata nem eficaz e contém em si mecanismos perversos que facilitam e estimulam a distorção, a falta de rigor e a má prática.

A evolução técnica e a multidisciplinaridade da medicina moderna, obrigam a um aumento de escala dos investimentos, que não pode (nem deve) ser combatido, já que tal implicaria um recuo na capacidade e/ou no nível assistencial. Contudo, esse contínuo desenvolvimento pode e deve ser efectuado, com vantagem, no seio de um sector público não lucrativo, centrado no benefício da população e não no interesse dos accionistas, de forma a não deixar largos sectores populacionais sem cobertura, entregando-os a sistemas assistencialistas sub-financiados e de má qualidade. A experiência negativa dos EUA é uma boa prova das inúmeras desvantagens da liberalização e privatização da Saúde (cara e com enormes desperdícios), em que os inúmeros centros de excelência convivem com milhões de cidadãos sem assistência, ou com direitos à Saúde limitados e degradados.

Poder-se-á concluir, pois, que o estrangulamento do SNS que as medidas governamentais e da troika implicam, são o acentuar de uma política que, de há muito, procura limitar o seu papel de grande e dominante serviço público prestador de cuidados de Saúde. Essas medidas não são justificadas por qualquer défice na sua sustentabilidade económica presente ou futura. Na realidade, elas representam apenas uma opção ideológica concreta, que defende interesses estranhos ao bem-estar da população, contrariando o desígnio constitucionalmente consagrado de um SNS universal, solidário e tendencialmente gratuito.

Há contudo, um largo consenso que se pode e deve construir na defesa cidadã do SNS, contra a política da troika e dos grandes interesses que sequestram o governo e o país, construindo um futuro que derrote o falso fatalismo do "não há alternativa", posto em voga por Margaret Tatcher, primeira responsável da brutal fragilização do prestigiado National Health Service inglês.

A intransigente oposição à desestruturação do SNS português, como serviço público cumpridor dos preceitos constitucionalmente instituídos, deve assumir-se como o campo transversal, abrangente e pluripartidário onde os médicos portugueses e a sua Ordem se devem posicionar, na defesa dos seus direitos, dos direitos dos doentes e de todos os cidadãos do país.
 

[*] Membro da Comissão Nacional da Ordem dos Médicos para o SNS.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Como a austeridade orçamental de hoje recorda os mal entendidos económicos da I Guerra Mundial


 O enganoso abismo fiscal de 2012 dos EUA

por Michael Hudson [*]


Quando a I Guerra Mundial estalou em Agosto de 1914, economistas de ambos os lados previram que as hostilidades não poderiam perdurar mais do que cerca de seis meses. As guerras haviam-se tornado tão caras que o dinheiro dos governos rapidamente ficaria esgotado. Parecia que se a Alemanha não pudesse derrotar a França na Primavera, as potências aliadas e central teriam as suas poupanças esgotadas e atingiriam o que hoje é chamado de precipício orçamental (fiscal cliff) e seriam forçadas a negociar um acordo de paz.

Mas a Grande Guerra arrastou-se durante quatro anos destrutivos. Os governos europeus fizeram o mesmo que os Estados Unidos após o estalar da Guerra Civil em 1861, quando o Tesouro imprimiu o papel-moeda, os chamados greenbacks . Eles pagavam por mais combate simplesmente com a impressão da sua própria moeda. Suas economias não cederam e não houve grande inflação. Isso aconteceu só após o término da guerra, devido à tentativa da Alemanha de pagar reparações em divisas estrangeiras. Foi o que provocou o afundamento da sua taxa de câmbio, elevando preços de importação e portanto preços internos. A culpa não foi da despesa do governo com a própria guerra (muito menos com programas sociais).

Mas a história é escrita pelos vitoriosos e a última geração assistiu à emergência dos bancos e do sector financeiro como os grandes vitoriosos. Mantendo os 99% da base em dívida, os 1% do topo estão agora a criar uma teoria económica enganosa para persuadir os eleitores a seguirem políticas que beneficiam o sector financeiro a expensas do trabalho, da indústria e do governo democrático tal como o conhecemos.

Os lobbystas da Wall Street atribuem a culpa do desemprego e da perda de competitividade industrial aos gastos do governo e aos défices orçamentais – especialmente com programas sociais – e à reivindicação do trabalho em participar da produtividade crescente da economia. O mito (talvez devêssemos chamá-lo teoria económica lixo) é que (1) governos não deveriam incidir em défices (pelo menos, não através da impressão da sua própria moeda), porque (2) a criação de moeda pública e impostos elevados (pelo menos sobre a riqueza) provoca ascensão de preços. Eles dizem que a cura para o mal-estar económico (o qual foi provocado por eles próprios) é menos despesa pública, bem como mais cortes fiscais para a riqueza, a qual eufemizam como "criadores de emprego". Reivindicando excedentes orçamentais, lobbystas dos bancos prometem que estes proporcionarão à economia bastante poder de compra para crescer. Então, quando isto acaba em crise, eles insistem em que a austeridade pode espremer suficiente rendimento para permitir que dívidas do sector privado sejam pagas.

A realidade é que quando bancos sobrecarregam a economia com dívida isto deixa menos para gastar com bens e serviços internos ao mesmo tempo que conduz para a alta os preços da habitação (e portanto o custo de vida) com criação imprudente de crédito em condições de empréstimo frouxas. Mas no topo desta deflação da dívida, os lobbystas dos bancos pressionam por deflação fiscal: excedentes orçamentais ao invés de défices com a criação de frentes de trabalho. O efeito é mais uma vez reduzir a procura de mercado do sector privado, contraindo mercados e emprego. Os governos caem mais profundamente em aflições e dizem-lhes então para liquidar ao desbarato terras e recursos naturais, empresas públicas e outros activos. Isto cria um mercado lucrativo para empréstimos bancários financiarem privatizações a crédito. O que explica porque os lobbystas financeiros apoiam os direitos dos novos compradores a elevarem os preços que cobram por necessidades básicas, criando uma frente unida para endossar a extracção de renda. O efeito é enriquecer o sector financeiro possuído pelos 1% de maneiras que endividam e privatizam a economia como um todo – indivíduos, negócios e o próprio governo.

Esta política foi denunciada como destrutiva no fim dos anos 1920 e princípio da década de 1930 quando John Maynard Keynes, Harold Moulton e alguns outros contestaram as afirmações de Jacques Rueff e Bertil Ohlin de que dívidas de qualquer magnitude podiam ser pagas se os governo impusessem austeridade e sofrimento suficientemente profundos. Esta é a doutrina adoptada desde a década de 1960 pelo Fundo Monetário Internacional para ser imposta sobre devedores do Terceiro Mundo e pelos neoliberais europeus que defendem credores impondo austeridade à Irlanda, Grécia, Espanha e Portugal.

Tal mitologia pró austeridade destina-se a desviar o público a fim de que não pergunte porque em tempo de paz os governos não podem simplesmente imprimir o dinheiro de que precisam. Dada a opção de imprimir dinheiro ao invés de tributar, por que tantos políticos só criam novos gastos com o objectivo de travar guerra e destruir propriedade, não para construir ou reparar pontos, estradas e outras infraestruturas públicas? Por que deveriam os governos tributar empregados para futuros pagamentos de aposentações, mas não a Wall Street por comissões e seguros financeiros a fim de construir um fundo para pagar por futuras crises de empréstimos excessivos dos bancos? A propósito, por que o Governo dos EUA não imprime o dinheiro para pagar a Segurança Social e cuidados médicos, da mesma forma como criou nova dívida no montante de US$13 milhões de milhões (trillion) após o salvamento bancário de 2008? (Voltarei a esta questão mais abaixo).

A resposta a estas questões tem pouco a ver com mercados, ou com teoria monetária e fiscal. Os banqueiros afirmam que se têm de pagar mais comissões de utilizador para pré-financiar futuras reclamações por maus empréstimos e seguros de depósito para poupar o Tesouro ou os contribuintes de serem cravados pela conta, terão de cobrar mais aos clientes – apesar dos seus presentes historiais de lucros, que parecem agarrar tudo quanto podem. Mas eles apoiam um duplo padrão quando se trata de tributar o trabalho.

A comutação do fardo fiscal para o trabalho e a indústria é conseguida mais facilmente através do corte nas despesas públicas para os 99%. Aqui está a raiz do confronto de Dezembro de 2012 sobre as políticas anti-défice propostas pela comissão Bowles-Simpson de cortes orçamentais que o presidente Obama nomeou em 2010. Derramando lágrimas de crocodilo sobre o fracasso do governo em equilibrar o orçamento, os bancos insistem em que os 15,3% de hoje de retenção salarial do FICA (Federal Insurance Contributions Act) seja elevado – como se isto não elevasse o custo de vida e não drenasse a economia do consumidor de poder de compra. Ao patronato e sua força de trabalho dizem para poupar antecipadamente para a Segurança Social ou outros programas públicos. Isto é um imposto sobre rendimento disfarçado sobre os 99% da base, cujas receitas são utilizadas para reduzir o défice orçamental de modo a que possam ser cortados impostos sobre as finanças e os 1%. Para parafrasear um dito de Leon Helmley, de que "Só o povo miúdo paga impostos", a palavra de ordem pós 2008 é de que só os 99% têm de sofrer perdas, não os 1% quando a deflação da dívida afunda os preços do imobiliário e do mercado de acções para inaugurar uma economia de Situação Líquida Negativa (Negative Equity) enquanto as taxas de desemprego levantam voo.

Não há mais necessidade de poupar antecipadamente para a Segurança Social do que há para poupar antecipadamente para pagar uma guerra. Vender títulos do Tesouro para pagar pensões tem efeito monetário e fiscal idêntico de vender títulos recém impressos. Trata-se de uma farsa – para comutar o fardo fiscal para cima do trabalho e da indústria. Os governos precisam proporcionar à economia dinheiro e crédito para expandir mercados e emprego. Eles fazem isso incidindo em défices orçamentais e isso pode ser feito pela criação da sua própria moeda. É a isto que os bancos se opõem, acusando-os de levar à hiper-inflação ao invés de ajudar as economias a crescerem.

A sua motivação para esta acusação errada é em causa própria e a sua lógica é enganadora. Banqueiros sempre combateram a fim de impedir governos de criarem a sua própria moeda – pelo menos em condições normais de paz. Durante muitos séculos, títulos governamentais foram o maior e mais seguro investimento para as elites financeiras que possuíam a maior parte das poupanças. Banqueiros de investimento e correctores monopolizaram as finanças públicas, com comissões substanciais de subscrição. O mercado para acções e títulos corporativos era abundante em fraudes, dominado por iniciados (insiders) ao serviço das ferrovias e grandes trusts organizados pela Wall Street e empreendimentos de canais organizados por correctores franceses e britânicos.

Contudo, quando os custos de travar uma guerra internacional excediam muito o volume da poupança nacional ou a receita fiscal disponível, havia pouca alternativa para governos senão criarem a sua própria moeda. Esta necessidade óbvia aplacava a oposição habitual levantada pelos banqueiros a fim de limitar a opção monetária pública. O que mostra que governos podem fazer mais sob condições de emergência de force majeur do que sob condições normais. E a crise financeira de Setembro de 2008 proporcionou uma oportunidade para os governos estado-unidense e europeus criarem nova dívida para salvamentos bancários. Isto revelou-se ser tão caro quanto travar uma guerra. Era na verdade uma guerra financeira. Os bancos já haviam capturado as agências reguladoras para entrarem em empréstimos temerários e numa onda de fraude e corrupção nunca vista desde a década de 1920. E agora eles estão a manter economias reféns de uma ruptura na cadeia de pagamentos se não forem salvos dos seus jogos especulativos, das suas hipotecas lixo e do seu fraudulento empacotamento de empréstimos.

A primeira vitória foi neutralizar a capacidade – ou pelo menos a vontade – do Tesouro, da Reserva Federal e do Controlador da Moeda (Comptroller of the Currency) de regular o sector financeiro. A Goldman Sachs, o Citicorp e seus companheiros gigantes da Wall Street mantinham poder de veto na nomeação de administradores chave destas agências. Eles utilizaram esta cabeça de ponte para eliminar candidatos que pudessem não favorecer os seus interesses, preferindo desreguladores ideológicos do tipo de Alan Greenspan e Tim Geithner. Como disse satiricamente John Kenneth Galbraith, uma pré condição para obter um posto num banco central é visão em túnel quando chega a entender que governos podem criar o seu crédito tão prontamente quanto os bancos o fazem. O que é necessário sã lealdades políticas para deitarem-se na cama com os bancos.

Na ruína financeira pós 2008 bastou apenas uma série de toques no teclado do computador para o governo dos EUA criar US$13 milhões de milhões de dívida a fim de salvar bancos de sofrerem perdas com os seus empréstimos imobiliários imprudentes (os quais modelos de computadores pretendiam que tornariam os bancos tão ricos que poderiam pagar aos seus administradores enormes salários, bónus e opções de acções), apostas em seguros que resultaram más (subvalorizando o risco para ganhar negócios a fim de pagar aos seus administradores enormes salários e bónus), jogos de arbitragem e fraude absoluta (dar a ilusão de rendimentos que justificassem enormes salários, bónus e opções de acções). Os US$800 mil milhões do Troubled Asset Relief Program (TARP) e os US$2 milhões de milhões dos swaps "caixa por lixo" ("cash for trash") do Federal Reserve permitiram aos bancos continuar a sua remuneração de executivos e possuidores de títulos sem um soluço – enquanto os rendimentos e a riqueza afundavam para os 99% restantes dos americanos.

Uma nova expressão, Capitalismo de Casino, foi cunhada para descrever a transformação do capitalismo financeiro que estava na era da desregulamentação pós 1980 que abriu as portas a bancos para fazerem o que governos até agora faziam em tempo de guerra: criar moeda e nova dívida pública simplesmente "imprimindo-o" – neste caso, electronicamente nos seus teclados de computador.

Levar as agências de financiamento hipotecário Fannie Mae e Freddie Mac, insolventes, para o balanço público por US$5,2 milhões de milhões representou mais de um terço do salvamento de US$13 milhões de milhões. Isto salvou os possuidores dos seus títulos de terem de sofrer perdas com as avaliações fraudulentas das hipotecas lixo com as quais o Countrywide, Bank of America, Citibank e outros bancos "demasiado grandes para falir" as haviam entupido. Este enorme aumento de dívida foi feito sem elevar impostos. De facto, a administração Bush cortou impostos, efectuando os maiores cortes para os mais altos rendimentos e escalões de riqueza que foram os seus grandes contribuidores de campanha [eleitoral]. Privilégios fiscais especiais foram dados a bancos de modo a que eles pudessem "ganhar o seu caminho para sair da dívida" (e, na verdade, da situação líquida negativa). [1] O Federal Reserve deu uma linha gratuita de crédito (Quantitative Easing) ao sistema bancário a apenas 0,25% de juro anual em 2011 – ou seja, um quarto de um ponto percentual, sem perguntar questões acerca da qualidade das hipotecas lixo e outros títulos penhorados como colateral ao seu valor facial pleno, o qual estava muito acima do preço de mercado.

Esta criação de uma dívida de US$13 milhões de milhões (trillion) para salvar bancos a fim de que não sofressem perdas não foi acusada de ameaçar a estabilidade económica. Ela permitiu [aos banqueiros] continuar a pagar salários e bónus exorbitantes, bem como dividendos a accionistas e pagar também contrapartes nas apostas de arbitragem do casino capitalista. Estes pagamentos ajudaram os 1% a receberem uns confirmados 93% dos ganhos em rendimento desde 2008. O salvamento portanto polarizou a economia, dando ao sector financeiro mais poder sobre o trabalho e os consumidores, sobre a indústria e o governo do que até então desde a Era Dourada do século XIX.

Tudo isto torna a guerra financeira de hoje muito semelhante ao período pós I Guerra Mundial e a incontáveis guerras anteriores. O efeito é empobrecer os perdedores, apropriar activos até então públicos em benefício dos vitoriosos e impor serviço de dívida e impostos pela tributação. "As crises financeiras têm sido tão devastadoras economicamente quanto uma guerra mundial e podem ser ainda um fardo para os nossos netos", observou recentemente Andrew Haldane, responsável do Banco da Inglaterra. "Em termos de perda de rendimento e produção, isto é tão mau quanto uma guerra mundial", disse ele. A ascensão da dívida governamental estimulou apelo à austeridade – sobre a parte daqueles que não receberam a dádiva. "Seria espantoso se o povo não estivesse a formular grandes questões acerca de onde é que as finanças deram para o torto" [2] .

Mas enquanto o sector financeiro estiver a vencer a sua guerra contra a economia como um todo, ele prefere que as pessoas acreditem que Não Há Alternativa. Tendo capturado a teoria económica dominante (mainstream) bem como a política governamental, as finanças procuram dissuadir estudantes, eleitores e os media de perguntarem se o sistema financeiro realmente precisa ser organizado do modo como é. Uma vez que uma tal linha de questionamento seja empreendida, o povo pode perceber que os sistemas bancário, de pensões, de Segurança Social e de financiamento do défice público não têm de ser organizados do modo como são agora. Há melhores alternativas à estrada actual para a austeridade e a servidão da dívida.

A continuar.
Notas
[1] Tais benefícios não foram concedidos aos proprietários de casas cujo valor imobiliário caiu em situação líquida negativa. Para os poucos que receberam amortizações parciais (write-downs) de dívida para o valor corrente de mercado, o crédito foi tratado como rendimento normal e tributado!
[2] Philip Aldrick, " Loss of income caused by banks as bad as a 'world war' , afirma BoE's Andrew Haldane," The Telegraph, December 3, 2012. O sr. Haldane é o director executivo do banco para a estabilidade financeira.


[*] O livro The Bubble and Beyond resume as teorias económicas de Michael Hudson.   O seu livro mais recente é Finance Capitalism and Its Discontents .   Ele contribuiu para Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion , publicado pela AK Press.   mh@michael-hudson.com

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/2012/12/28/americas-deceptive-2012-fiscal-cliff/ . Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

sábado, 29 de dezembro de 2012

Raquel Varela. “Um dos grandes objectivos da troika é aproximar-nos da China”

Por Nuno Ramos de Almeida, publicado em 29 Dez 2012 - 03:10 |
A investigadora defende que os portugueses pagam os direitos sociais nos impostos e que parte desse dinheiro é desviado.


O livro sobre quem paga o Estado social coordenado pela historiadora Raquel Varela tem tido uma recepção desigual: bem aceite pelo público, é normalmente ignorado pelos economistas que dominam o debate em Portugal. A obra contraria a tese muito em voga de que o nosso problema é que os pobrezinhos comeram muitos bifes. Nas suas páginas fazem-se contas e chega-se à conclusão de que alguém ficou com o dinheiro dos nossos impostos.

Estamos perante uma obra política ou um livro científico?

É um estudo académico que calcula da forma mais exacta possível, com os dados que existem, a relação entre gastos sociais do Estado e os impostos pagos pelos assalariados. O livro é fruto de um trabalho que não inclui só economistas; colaboram nele historiadores, um filósofo, um físico e um médico. Creio poder dizer com o apoio de todos que é um livro que assume uma posição clara de desmontar a chantagem política feita sobre os trabalhadores ao propagar a ideia de que andaram a viver acima das suas possibilidades. É um livro académico com consequências políticas.

O discurso dominante afirma que há um esgotamento deste modelo da segurança social e que a alteração da pirâmide etária faz com que o actual nível de reformas seja insustentável.

Isso não é de maneira nenhuma verdade. Nós provamos que de acordo com os números existentes os trabalhadores pagam com os seus impostos os gastos sociais do Estado. A outra questão é a razão por que chegámos aqui. Aquilo que aconteceu foi uma permanente transferência de recursos, desde o início do advento das políticas neoliberais em Portugal. O neoliberalismo caracteriza-se pelo modelo just in time: não há stocks de mercadorias nem de força de trabalho. A força de trabalho tem de ser precária e estar permanentemente móvel. O neoliberalismo surge como reacção à crise de 1981-84, que foi uma das maiores crises cíclicas do capital, que teve efeitos explosivos. Em Portugal assiste- -se ao esforço para diminuir os stocks da força de trabalho. Desenrolam-se um conjunto de processos negociais em que parte crescente da força de trabalho mais velha é enviada para a reforma antecipada, o que vai ter um peso enorme sobre a Segurança Social. Estas reformas antecipadas são na realidade despedimentos encapotados em que as empresas não pagam a indemnização e endossam esse custo à Segurança Social. A utilização da Segurança Social como uma espécie de fundo de despedimento das empresas privadas representa um grande rombo para esta. Parte significativa da força de trabalho mais velha e com mais direitos é empurrada para a reforma, sendo substituída por um contingente de trabalhadores subcontratados e sem direitos.

Esse processo não merece a contestação dos sindicatos?

Durante muito tempo as organizações dos trabalhadores, nomeadamente as da CGTP, reagiram a esse processo. O primeiro acordo de empresa que é feito nesse sentido é na Lisnave. Só após três anos com salários em atraso é que os sindicatos aceitam assinar esse compromisso que vai consagrar uma divisão da força de trabalho em que os novos trabalhadores entram subcontratados e sem direitos. Durante 30 anos assistimos ao desenrolar deste processo, aquilo que muda em 2008, a maior crise desde 1981-84, é que a solução que os governos escolheram para sair desta crise passa pela transformação de todos assalariados em força de trabalho precária. Uma política que defende que as exportações só podem tornar-se competitivas com a queda abrupta dos salários, o que tem como consequência a quebra da procura interna. Esta política aumenta a conflitualidade entre os próprios capitalistas e nos partidos no poder: quando se aumentam as exportações, a Portucel ganha, mas o Belmiro de Azevedo e o Continente perdem.

Se os trabalhadores pagam a sua reforma e gastos sociais com os seus impostos, como é que se acumula e cresce o défice e a dívida do Estado?

O défice e o crescimento da dívida devem--se a outros factores que não estão incluídos nos gastos sociais. Nestes gastos estão os gastos que consideramos sociais e outros gastos do Estado. Aquilo que se tem de ver é que dos gastos totais do Estado há muita coisa que não tem a ver directamente com gastos sociais. Por exemplo, o serviço da dívida não pode ser em grande parte imputado a gastos com os trabalhadores e a sua manutenção.

E quais são os gasto que para vocês são considerados sociais?

Nós retiramos dos gastos sociais, por exemplo, o serviço defesa, que consideramos um gasto do Estado mas não um gasto social. Saúde, educação, desporto, cultura, transportes públicos e Segurança Social foram as grande parcelas que incluímos. Também incluímos a mão-de-obra da Segurança Social. Chegamos à conclusão de que somados os gastos e as contribuições sociais e impostos arrecadados há muitos anos que há superavit, há alguns anos que há um défice ligeiro, mas isso é independente da acumulação da dívida do Estado, que na nossa opinião se deve a transferências em massa, a partir de 2008, para salvar o sector financeiro, nomeadamente o caso mais óbvio do BPN. Têm de se acrescentar a isso os gastos crescentes nas parceiras público--privadas. Este tipo de negócios e decisões não é inocente. Nós mostramos, por exemplo, que desde que existem os hospitais empresas, que são hospitais públicos com gestão privada, se verifica que a diminuição dos salários de médicos e enfermeiros é idêntica àquilo que é gasto na subcontratação externa de serviços a privados. Outra coisa que pomos em dúvida são determinados programas que estão contabilizados como gastos sociais mas que são subsídios directos às empresas privadas, como por exemplo o Estado pagar parte do ordenado de trabalhadores que estavam desempregados que são contratados por empresas privadas. Outra coisa que analisamos, em relação à sustentabilidade da Segurança Social, é a transferência de fundos de pensões privados para o Estado. Aparentemente quando são transferidos esses fundos de pensões da banca da PT parecem capitalizados, mas ninguém garante a sustentabilidade desses fundos nos próximos dez ou 20 anos.

Mas vocês fazem estas contas agora. Com a evolução da pirâmide demográfica e com a subida previsível do desemprego não tornam crescentemente deficitária a Segurança Social?

Neste momento ela não é deficitária, mas se me perguntar se uma sociedade aguenta ter mais de um milhão e quatrocentos mil desempregados por muito tempo, tenho muitas dúvidas. E não se trata só do equilíbrio financeiro da Segurança Social. Portugal com este nível de desemprego não é sustentável do ponto vista económico, social e político. Chegamos a um nível de desenvolvimento da humanidade em que o problema do emprego tem de ser equacionado de outra forma: andamos na auto-estrada e pagamos as portagens numa máquina, o mesmo fazemos em relação às compras no supermercado, o metro de Turim anda sem condutor... Chegamos a um nível de desenvolvimento tecnológico que naturalmente acarreta um patamar de desemprego estrutural se nós não mudarmos a nossa forma de viver. Temos de criar uma sociedade em que toda a gente trabalhe menos horas, mas que trabalhe. Se a única coisa que fazemos é formar engenheiros para construírem máquinas que vão substituir o trabalho de milhares de pessoas estamos a cair num buraco negro em que temos máquinas de um lado e desempregados do outro. Em nenhum sítio é possível aguentar a Segurança Social e a sociedade nestas condições.

Com a privatização dos serviços públicos, o aumento dos transportes e dos custos de educação e saúde, quanto diminui na prática o salário real das pessoas?

Não sei. Não fizemos estes cálculos. Já vi números muito variados em relação a isso. Na diminuição da massa salarial há os cortes de salários, há os cortes por via dos aumentos de impostos e há o aumento das despesas das pessoas devido ao recorte das políticas sociais do Estado. Obviamente que isto implica um valor elevado, mas ainda não está avaliado.

A vossa tese opõe-se à ideia de que as pessoas viveram acima das possibilidades e afirma que o dinheiro colectado aos trabalhadores foi desviado para outros gastos?

Temos um superavit na maior parte dos anos e o governo nunca explicou o que fez com esse dinheiro. Se temos um défice brutal do Estado, conclui-se que alguém andou a viver acima das suas possibilidades. Agora parece evidente é que não foram os trabalhadores que pagaram impostos. Na nossa opinião uma das explicações da existência desses défices é a dívida pública como mecanismo de renda fixa de capital.

Mas essa dívida não pode resultar da suborçamentação do Estado? Se nas empresas de transportes as indemnizações compensatórias não pagam a diferença entre o custo do serviço e o que paga o utente, não há aqui uma transferência dos custos sociais do Estado para a acumulação da dívida?

Nós não fazemos as contas da dívida pública portuguesa neste livro. Temos alguns artigos em que se aborda o mecanismo que permitiu a criação desta dívida em geral, como é que a dívida se transforma em renda privada. Não contabilizamos isso no livro. Aí só contabilizamos gastos sociais em relação às contribuições e impostos pagos pelos trabalhadores. Acerca da dívida, aquilo que concluímos é que, se os trabalhadores pagam tendencialmente mais do que recebem em serviços sociais, temos de ir procurar outras razões para explicar a acumulação do défice. Para isso damos um conjunto de pistas: as parcerias público- -privadas, o crescimento dos encargos financeiros da própria dívida pública...

Mas questões como a compra de habitação própria não podem ser vistas como motivo de endividamento?

Se nós tivemos de nos endividar nos últimos 20 anos para compra de habitação isso não significa que tenhamos vivido acima das nossas possibilidades, mas abaixo delas. Os salários portugueses mantiveram-se tão baixos nos últimos 20 anos que as pessoas para resolverem este direito básico que é a habitação tiveram de se endividar. O neoliberalismo nem o direito básico da habitação conseguiu resolver. Das duas uma: ou nós insistimos que as pessoas são umas perdulárias que quiseram ter casa própria – mais de 70% dos portugueses são proprietários de casa própria para a qual a grande maioria teve de se endividar aos bancos – ou podemos dizer que os portugueses têm salários tão baixos que tiveram de se endividar para conseguir comprar casa.

Mas isso não teve consequências no próprio endividamento dos bancos, que para emprestarem esse dinheiro se endividaram na banca estrangeira?

Penso que o mais importante está no endividamento dos particulares para garantir os lucros do sistema financeiro e das grandes construtoras nacionais, cujo processo de acumulação de capital resultou desse endividamento forçado das famílias para resolver o direito básico de ter uma habitação. Esse processo não resolveu o problema das famílias portuguesas, que todos os dias, com o aumento do desemprego, arriscam ser despejadas. Temos de assumir que não andamos a viver acima das nossas possibilidades, mas pelo contrário vivemos num sistema económico que nem o problema da habitação consegue resolver.

E neste sistema económico era possível resolver o problema da habitação de outra maneira?

Não acredito, mas isso está no domínio da futurologia, posso estar absolutamente errada. Os historiadores marxistas estão sempre a anunciar crises terminais que nunca o são. Aquilo que eu tenho lido é que se não tivesse havido um socorro enorme ao sistema financeiro estaríamos numa crise muito semelhante à Grande Depressão de 1929, embora nós vivamos um processo substancialmente diferente devido à globalização da economia. A interdependência dos mercados é hoje infinitamente superior. Se a crise teve as consequências que teve, revoluções e contra-revoluções durante dez anos, eu não sei que consequências teria tido esta sem as medidas que foram adoptadas. Agora salvar o sistema financeiro teve um preço que é a situação de barbárie social que vivemos.

Umas das observações que se fazem nesta crise é que se dá uma alteração no eixo da economia, que os países desenvolvidos estão a descer a sua importância enquanto os emergentes estão a crescer. Diz-se também que o modelo de desenvolvimento dos países desenvolvidos não é sustentável do ponto de vista ecológico. Se todos os habitantes do planeta tivessem um nível de vida de um português a Terra entraria em colapso. Não é possível dizer que vivemos desse ponto de vista acima das nossas possibilidades?

É preciso ter cuidado com todas essas chamadas teorias do decrescimento. Dizer que um país vive acima das suas possibilidades não é correcto do ponto de vista histórico. Num país há pessoas que vivem acima das suas possibilidades e outras que não. A mim parece-me que é claramente o caso europeu. Por exemplo, culpabilizar todos os alemães é uma deriva nacionalista. Os trabalhadores alemães têm os seus salários congelados nos últimos dez, 15 anos por causa deste processo. Do meu ponto de vista, não devemos fazer esta afirmação em relação aos países no seu todo, mas em relação às classes sociais. Portugal é o segundo país mais desigual da Europa, depois do Reino Unido, e esta crise é acompanhada pelo um aumento exponencial do consumo de bens de luxo, mas não se pode daí concluir que todos os portugueses estejam implicados nisso. Nós não temos um consumo excessivo, temos é um consumo exagerado de hidratos de carbono, temos um consumo deficitário de legumes frescos com nutrientes, temos um consumo exagerado de transportes individuais e um consumo deficitário de transportes colectivos. Ou seja, o problema do consumo não é abstracto, concretiza-se numa sociedade que é desigual. Há sectores que consomem muito e outros muito pouco e há coisas que se consome muito e outras muito pouco. Tem de haver uma elação saudável do homem, da economia e da natureza, mas não pode haver a ideia de um regresso a um passado mítico em que estaríamos em harmonia com a natureza.

Aquilo que eu lhe pergunto é diferente, se os padrões de consumo da sociedade industrial não têm de pressupor desigualdade: porque se todos tivéssemos no planeta acesso a estes consumos normais nos países desenvolvidos a Terra não o suportaria.

A sustentabilidade deve ter por base uma análise criteriosa daquilo que consumimos a mais e daquilo que consumimos a menos. Nós consumimos muitas coisas a menos. Consumimos a menos alimentos biológicos, cultura de qualidade, transportes públicos, bicicletas não poluentes. Podia estar a tarde toda a dar exemplos. Mais que uma crítica do consumismo em abstracto temos de nos centrar numa análise daquilo que devemos e podemos consumir em concreto.

Fala de um processo de globalização. No seu entender ele é positivo ou negativo?

O processo de globalização que vivemos é um processo de globalização imperialista. Era bom que recuperássemos a esse respeito este conceito que os cientistas sociais têm tido medo de usar. Embora recentemente nas discussões de instituições internacionais como a OIT (Organização Internacional do Trabalho) haja alguns autores que recuperam estes conceitos. É óbvio que esta globalização nos trouxe coisa de que nós gostamos: conhecer os outros povos, a sua cultura, a sua comida, consumir os seus produtos, etc. Isto tem sido feito através de um processo muito desigual e que vai produzindo desigualdades. Ao mesmo tempo que aos trabalhadores chineses é entregue uma guia para trabalhar 16 horas por dia por dois dólares, sem que se lhes permita levar a família e sem assistência social – estou a citar números oficiais usados por um historiador chinês –, temos um dos maiores processos de acumulação de capital nos Estados Unidos devido a esta divisão de trabalho que torna a China a fábrica do mundo. Esta desigualdade não é aceitável. Estou convencida que um dos grande objectivos do programa da troika é aproximar-nos da China. O capitalismo chinês tem um problema imenso que deriva de viver da exploração da mais-valia absoluta, o que significa que um trabalhador chinês dá mais--valia devido ao aumento da exploração do trabalho. Para isso é necessário manter o elevado número de horas da jornada de trabalho. Enquanto um trabalhador americano rende pela mais-valia relativa. Ele trabalha meia hora para si e as outras sete horas e meia são para o capital, enquanto um trabalhador chinês é muito menos produtivo. Para acumular o mesmo capital na China é preciso muito mais trabalhadores. A jornada de trabalho é maior por causa disso. Com um aumento de salário na China de 10% deixa de compensar as empresas estrangeiras estarem lá. Esse aumento de salário tem um efeito muito maior na diminuição da acumulação de capital que um mesmo aumento num país com uma grande produtividade. Nos últimos anos tem havido aumentos salariais na China fruto das greves. É possível que a burguesia europeia pense que a forma de resolver esta crise é tentar fazer uma China aqui perto, contornando os problemas que têm tido no processo de acumulação chinês.

Isso significa o quê?

Diminuir o nível salarial dos trabalhadores europeus e reindustrializar a Europa. Quando a chanceler Angela Merkel falou na hipótese de reindustrializar Portugal era isso que estava a propor. Por um lado, a utilização dos países do Sul da Europa como uma espécie de nova China, por outro o roubo de cérebros e licenciados para os países do centro da Europa e a Alemanha.

Mas essa deslocação não enfrenta alguns constrangimentos, nomeadamente os linguísticos, que impedem essa flexibilidade do mercado de trabalho em termos europeus?

Nós temos hoje um milhão e trezentos mil licenciados em Portugal, e a mão- -de-obra na Europa é altamente qualificada. É tão proletarizada como era nas fábricas. Neste momento um investigador em Portugal ganha muito menos que um operário alemão. É um novo proletariado qualificado. É mais produtivo que o tradicional. O que eu faço hoje com um computador exigia há poucos anos dezenas de pessoas. Todo o processo de Bolonha visou criar as condições para a deslocação na Europa desta nova mão- -de-obra extraordinariamente produtiva. Cada vez mais a língua é o inglês, há cada vez mais empresas que não trabalham na sua língua nacional. Estão-se a criar condições para ter um mercado de trabalho à escala continental. É por isso que a nossa precarização vai ser o enterro dos direitos sociais dos trabalhadores alemães. O que se prepara é que de hoje para amanhã os trabalhadores qualificados do Sul ocupem por um salário muito mais baixo o lugar de um trabalhador alemão. É este o objectivo da política da troika.

http://www.ionline.pt/portugal/raquel-varela-dos-grandes-objectivos-da-troika-aproximarmo-nos-da-china

sábado, 22 de dezembro de 2012

Apelo do Dr. Rath às pessoas da Alemanha, da Europa e de todo mundo, Berlim 13.03.2012

"Se, por um lado não tive oposição no âmbito científico, pelo outro, a oposição por parte da indústria farmacêutica é terrível. Durante os cinco últimos anos, a sua estratégia principal tem sido tentar desprestigiar a divulgação destas descobertas na área da saúde natural, não patenteável, no intuito de proteger o seu negócio com investimentos de muitos milhares de milhões de dólares com a doença."

"O único motivo pelo qual a indústria farmacêutica não se defrontou comigo é porque eu relacionei este negócio sem escrúpulos ou "negócio com a doença" com os maiores crimes contra a humanidade cometidos durante o século 20: a morte maciça durante a segunda guerra mundial. É um facto histórico que o cartel das indústrias farmacêutica e petroquímica financiaram a chegada ao poder de Hitler 70 anos atrás. A Segunda Guerra Mundial foi principalmente uma guerra pela conquista dos recursos naturais existentes na Europa do Leste e na Ásia." M. Rath

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Não foi para isto que se fez o 25 de Abril; foi por causa disto


por Guilherme Alves Coelho [*]
Dizem alguns cientistas que "o progresso científico é a substituição de um erro por um erro menor". Se a politica fosse uma ciência exacta assim deveria ser também. Mas não, a existência de classes sociais, que se opõem fortemente, perturba a "correcção do erro". O progresso social não é linear como na ciência, mas sim feito de avanços e recuos onde, por vezes, é preciso recomeçar do zero.

A história de Portugal está repleta de exemplos desta dinâmica. O "erro" da monarquia demorou séculos a substituir pelo "erro" menor da República. Mas conseguido esse avanço, de novo a situação se foi degradando, até ser preciso emendá-lo de novo. A correcção, que muitos creram ser para melhor, depressa se revelaria um pesadelo ainda pior que o anterior: foi o fascismo. O "erro" cresceu durante 48 anos, atingindo limites insuportáveis, até mais uma vez o povo repor o rumo no dia 25 de Abril de 1974.

Parecia dado o grande e definitivo salto em frente. Muitos se convenceram que as forças conservadoras nunca mais regressariam e finalmente estava instituída a democracia. Engano. Desde então, os sucessivos governos de alternância sucederam-se com o mesmo objectivo de sempre: repor "o erro" anterior.

Hoje, decorridos quase tantos anos como os que levou o fascismo, a história repete-se. Parece ter chegado outra vez o momento histórico de emendar o "erro".

Há cerca de um século, dois portugueses preocupados com o seu país e com o seu povo, davam-se conta dos mesmos problemas. Um deles, Guerra Junqueiro, na época que antecedeu a revolução republicana, apresentava algumas das razões por que havia que emendar o "erro". Comentava ele acerca do povo, da burguesia, do poder legislativo, da justiça e finalmente dos dois partidos que então, como agora, monopolizavam o poder:
" Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.

Uma burguesia , cívica e politicamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.

Um poder legislativo , esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.

A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.

Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar." ( Guerra Junqueiro , 1896).
Apesar desse quadro negro, a esperança popular renascia. O "lampejo misterioso da alma nacional, guardado na noite da inconsciência" do povo, conduziu, 14 anos depois, à revolução republicana. Porém apenas nove anos de regime republicano eram passados e já era preciso novo combate. Fialho de Almeida zurzia fortemente os governantes coevos, não lhes perdoando o desbaratar da esperança ganha com o novo regime:
"Aqui d'el-rei! Isto é uma liquidação geral nos bens do povo; um saque trinta vezes mais vil que o de Junot; uma epopeia de furto, mais audaciosa de que a história célebre de Ali-Babá, onde também figuram cavernas de riquezas, um poderoso chefe e quarenta ladrões. Morreu o chefe (o Rei D. Fernando), as preciosidades foram arroladas, mas os quarenta ladrões multiplicaram-se e por aí continuam a saquear até ao fim. (...)

Conclui-se disto a deliquescência da vida portuguesa, nos seus duplos aspectos da consciência e da moral. Lá começa primeiro uma separação completa e desdenhosa entre os interesses da grossa massa da população, e os da matilha que reparte entre si os dinheiros das rendas públicas, e se crapulisa na porfia escandalosa do poder. Vê-se em seguida a indiferença pública crescer em matéria politica, os jornais serem lidos só por passatempo, os actos do governo serem mencionados só por uma variante de anedotas obscenas, a politica armar em profissão sem hombridade, em impune chantage, e jornalistas e homens de estado enfileirarem, no conceito geral, logo em seguida aos ratoneiros e assassinos. (...) Virá um dia em que o povo desnaturado por todas aquelas lições de compra e venda, farto de ludíbrios e vexames, abdique por fim do seu ideal de autonomia, perca a noção de solo, encha de excremento as páginas da história... e permita Deus que não o ouçamos bramir, com desesperada voz, aos ecos da fronteira:

- Livrem-me desta canalha que me fez odiosa a liberdade, que em paga disso aqui lhes ofereço a minha servidão! ( Fialho d'Almeida , Os Gatos , 1919)
Trinta e oito anos decorreram sobre o 25 de Abril. O que se vê crescer é novamente o grito popular: "livrem-me desta canalha que me quer fazer odiosa a liberdade" conquistada em 1974. "A matilha que reparte entre si o dinheiro das rendas públicas" continua a mesma de sempre. É a mesma do fascismo, é a mesma da república, e a mesma da monarquia. A mesma que reparte com o estrangeiro ocupante "o saque trinta vezes mais vil que o de Junot".

O povo, como então, parece estar "farto de ludíbrios e vexames". Mas agora com uma grande e determinante diferença. A experiência ganha com as conquistas pós 25 de Abril trouxe-lhe uma visão do que pode ser uma sociedade mais justa. De que não está disposto a abdicar para "oferecer a servidão" ao ocupante!

Não foi para isto que se fez o 25 de Abril, costuma dizer-se; foi precisamente por causa disto, acrescento. Foi por apresentar os mesmos sinais de "deliquescência da vida portuguesa nos seus duplos aspectos da consciência e da moral" que hoje apresenta, que o povo português foi então chamado a "corrigir esse erro". Saberá fazê-lo de novo, e tantas vezes quantas os seus inimigos, cá dentro e lá fora, insistirem em regressar ao passado.
13/Dezembro/2012
[*] Arquitecto

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Os economistas e o um por cento

A análise económica da realidade


por Michael Hudson [*]

"Os deuses enlouquecem primeiro aqueles a quem querem destruir". E se quiseram destruir economias, primeiro criaram uma classe rica no topo e deixaram que a natureza humana fizesse o resto. O uso do poder rapidamente leva ao seu abuso, à arrogância económica e social. Ao tentar proteger os seus lucros, perpetua-se e torna hereditária a sua riqueza, o aparecimento de uma elite do poder encerra-se na sua posição de modo a excluir e a prejudicar os que estão em baixo. Os ricos endividam-nos, atiram a carga fiscal sobre os menos poderosos e transformam o governo numa oligarquia.

Esta é uma história antiga. Os gregos perceberam-no bem, ao verem como o poder leva à arrogância, provocando a sua própria queda. A arrogância é o vício da riqueza e do poder, um exagero de insolência que implica o prejuízo dos outros. Ao empobrecer a economia, destrói a fonte dos lucros, dos juros, dos ganhos de capital, e até da recuperação das poupanças originais e do principal da dívida.

O carácter abusivo da riqueza e do poder não é o que os modelos económicos predominantes descrevem. É por isso que a teoria económica está falida. O conceito de utilidade marginal decrescente implica que os ricos ficam mais saciados à medida que ficam mais ricos e daí menos viciados no poder. Esta ideia de saciedade progressiva de lucros segue a direcção errada, negando o fio condutor básico dos últimos dez mil anos de tecnologia e civilização humanas.

A actual abordagem da oferta e da procura trata a economia como um "mercado" duma forma puramente abstracta, na medida em que troca e substitui uns pelos outros a quantidade dos bens (já produzidos), da mão-de-obra (com uma determinada produtividade) e do capital (já acumulado, sem explicar como). Esta abordagem não se preocupa em aprofundar como é que as pessoas arranjaram o capital para o "trocar" pela "mão-de-obra". Ainda por cima, esta abordagem interpreta erradamente o crescimento tecnológico e a experiência básica de negócios, ao assumir condições de retornos decrescentes e utilidade marginal decrescente. O resultado intelectual é um universo paralelo, cujo critério para a excelência económica é pura e simplesmente o círculo interno das suas premissas abstractas, e não a sua realidade.

No seu recente livro Economists and the Powerful , Norbert Häring e Niall Douglas mostram que a disciplina económica não entrou por este caminho por acaso. Norbert Häring e Niall Douglas são organizadores importantes da World Economic Association , que surgiu do movimento Economia-Pós-Autista destinado a fornecer uma alternativa à economia neoclássica e neoliberal predominante. (Häring é co-editor da World Economic Review .) Para esse efeito, apresentaram uma grande quantidade de referências que esclarecem como a economia se transformou num exercício de propaganda de financeiros, latifundiários, monopolistas, pessoas no interior do sistema, vigaristas e outros predadores de rendas que os economistas clássicos tentaram tributar e eliminar através de regulamentações. Este estado de coisas reflecte o pendor secular destes parasitas para lutar contra a economia clássica, patrocinando ficções em benefício próprio que os descrevem como ganhando as suas fortunas, não por meios predatórios e extractivos, mas contribuindo para os resultados como "criadores de empregos".

Qualquer distribuição de riqueza e de receitas é tratada como um equilíbrio que reflecte uma escolha voluntária, sem se examinarem as estruturas organizativas e sociais da contratação de postos de trabalho, da produção e da distribuição. Os autores fornecem um antídoto a esta visão periférica, apontando para as verdadeiras mãos invisíveis em acção: negócios internos, manobras contra a força de trabalho e contra sindicatos, pilhagem e fraude desenfreadas. O que eles entendem por 'poder' é os empregadores contratarem fura-greves, organizarem grupos de pressão para obterem favores especiais e negócios internos, e apoiarem as campanhas eleitorais de legisladores comprometidos para agirem a favor dos um por cento.

Criticando a teoria dos manuais, sublinham que a maior parte da produção tem retornos crescentes. Os custos unitários caem à medida que o investimento do capital fixo se alarga a uma produção maior. Enquanto produtor com um custo marginal praticamente de zero a Microsoft, por exemplo, obtém uma renda crescente sobre a propriedade intelectual por cada programa vendido. A um nível de economia ampliada, aumentar o salário mínimo permitiria à maior parte das empresas beneficiar de retornos acrescidos, aumentando a procura.

As empresas usam a alavanca política para garantirem que árbitros anti-trabalho sejam nomeados para os tribunais e arenas que dirimem disputas sobre o emprego, condições de trabalho e despedimentos. As indústrias de capital intensivo entregam a terceiros tarefas pouco especializadas a fornecedores de pequena escala que utilizam mão-de-obra não sindicalizada. A privatização de empresas públicas também tem em grande medida a intenção de quebrar o poder da força de trabalho sindicalizada. A teoria marginal da oferta e da procura implica que cada trabalhador adicional que é contratado aumenta as taxas salariais, obrigando os negócios a oporem-se a políticas de pleno emprego a fim de manter os salários baixos, mesmo que isso limite o mercado para a sua produção.

Portanto, a tecnologia e as condições decrescentes não são a razão pela qual os salários têm vindo a diminuir – ou pela qual os custos financeiros e outros, não produtivos, têm vindo a subir na maior parte das economias ocidentais. Estes aumentos de custos são provocados pelos encargos da dívida para aquisições por empréstimos (leveraged buyouts) e pelos assaltos corporativos, mais os salários, bónus e opções de acções dos executivos. A mão-de-obra também enfrenta custos de vida mais altos em consequência da crescente dívida hipotecária contraída para a habitação, empréstimos a estudantes para obter um curso como pré-condição para o emprego da classe média, e dívidas de cartões de crédito para manter os padrões de consumo, e crescentes retenções no salário para a Segurança Social e Medicare à medida que os impostos se tornam regressivos. Este serviço de dívida pessoal (incluindo os custos da habitação) e diversos impostos absorvem mais de dois terços do ordenado comum. Por isso, mesmo que os trabalhadores não tivessem que comprar quaisquer dos bens e serviços que produzem – alimentos, vestuário e outras necessidades básicas de consumo – mesmo assim, não podiam competir com a mão-de-obra de economias menos financiarizadas e livres do encargo de dívidas.

A nível corporativo, a engenharia financeira está mais virada para aumentar os preços das acções do que para novos investimentos em capital tangível. Mesmo isso não está a ser feito de forma a servir o interesse dos accionistas a longo prazo ou da economia em geral. Häring e Douglas fazem uma análise demolidora que denuncia o pagamento de opções de acções como "motivação" para os gestores. Os gestores maximizam o valor dessas opções gastando as receitas corporativas em compras de acções em vez de novos investimentos directos para alargar os seus negócios. Pior ainda, as companhias pedem emprestado para comprar as suas acções ou mesmo para pagar dividendos a fim de fazer subir o seu preço. O "capital" neste ganho é financeiro, não é industrial. Também acontece ser anti-mão-de-obra, na medida em que a carga das dívidas das companhias permite que os assaltantes corporativos utilizem a ameaça da bancarrota para exigir reduções nas pensões e nos benefícios salariais.

O problema com o planeamento financeiro é o seu curto intervalo de tempo, o toca-e-foge, destinada a extrair receitas em vez de aproveitar o tempo para investir em nova produção e desenvolver mercados. Escondendo esta estratégia de curto prazo com ficções de contabilidade "mark to model" ao estilo Enron, os gestores agarram no dinheiro e fogem, deixando atrás de si os resíduos da bancarrota.

A alavancagem da dívida é encorajada tributando os lucros dos preços dos activos a taxas muito mais baixas do que os ganhos (salários e lucros) e permitindo que os juros sejam dedutíveis aos impostos. Este subsídio fiscal não é de modo algum uma característica inerente aos mercados. Reflecte a conquista da política de tributação pelo sector financeiro, juntamente com a conquista reguladora que impede a fiscalização do governo de modo a poder fazer fortunas através da desregulamentação, da privatização, e da popularização da ideia de que a economia pode enriquecer através do endividamento. A doutrina liberal demoniza o governo como o único poder capaz de regular e tributar receitas não ganhas e de agir contra fraudes. Isso inverte a ideia de mercados livres em relação ao significado clássico de mercados livres de rendas económicas não ganhas, para deixar a arena actual livre para os rentistas predatórios.

Esta estratégia é coroada pelo poder para censurar. A descrição enganosa e ilusória da economia apresentada pelos financeiros, especuladores do imobiliário e monopolistas é esconder cuidadosamente o seu próprio comportamento. É este o supremo poder da actual teoria económica dominante: moldar a imagem que as pessoas têm da economia. O ponto de partida é desviar o público de observar (e, portanto, regulamentar ou tributar) as estruturas de poder do mundo real em funcionamento. Preferem tornar-se invisíveis, acima de todo o poder financeiro, para endividarem a economia. Afinal de contas, foi através de meios financeiros que as finanças comutaram o planeamento económico das mãos do governo para a Wall Street e para centros bancários semelhantes no estrangeiro.

Os grupos de pressão a favor dos 1% popularizam a visão de que a economia actual é de facto um produto natural e inevitável da evolução darwiniana. Conforme Margaret Thatcher afirmou: Não Há Alternativa (TINA). Esta estreiteza de vistas é reforçada por uma política censória: "Se o olho te ofende, arranca-o". Häring e Douglas descrevem o processo académico de arrancar quaisquer olhos ofensivos que possam introduzir mais realismo quando se trata de comportamento predatório e de procura de rendas.

A principal directiva é descrever o planeamento financeiro como melhor do que o das instituições públicas. Em contraste com o aval da Era Progressista de manter baixos os custos das infra-estruturas, o sector financeiro procura privatizar as empresas públicas – a crédito, de preferência e a preços de aflição, para criar novas fortunas a partir dos privilégios da extorsão de rendas. A tarefa da actual teoria económica preponderante, conforme o autor a descreve, é desviar as atenções do carácter explorador e tecnologicamente desnecessário dessa procura de rendas. Balzac foi mais realista, ao observar que, por detrás de toda fortuna familiar existe um grande roubo, normalmente há muito esquecido.

Concentram-se no poder interno em vez de identificar a dimensão internacional de como é exercido o poder económico. O FMI, o governo dos EUA e a burocracia da União Europeia exercem a alavanca da dívida externa para impor o Consenso de Washington neoliberal. É assim que a "troika" europeia impõe a austeridade na Grécia ao substituir o governo democrático por "tecnocratas" cujas políticas servem os 1% na actual guerra de classes. Esta via leva, fatalmente, aos assassínios programados com que os Rapazes de Chicago impuseram o seu "mercado livre" cleptocrático no Chile com Pinochet, elaboraram através da Operação Condor os assassínios de líderes sindicais, reformadores agrários e padres e freiras da Teologia de Libertação em toda a América Latina e nos próprios Estados Unidos. Mas eu percebo que os autores tenham tido que traçar algures a linha entre economia e táctica militar, concentrando-se na teoria económica lixo do mercado livre.

A alta finança tornou-se o modo moderno da guerra. Depois de endividar os países, os credores pressionam para privatizar monopólios naturais e criar novos direitos monopolistas para si próprios. Têm como objectivo o que as forças militares tiveram em tempos passados, mas com um custo mais baixo. É mais barato apoderar-se de terras através de penhoras do que através da ocupação armada, e obter direitos às riquezas minerais e infra-estruturas públicas "tramando" as nações através da dívida. As populações submetidas não reagirão enquanto puderem ser convencidas a aceitar a ocupação como um acontecimento natural e até mesmo útil.

No final, chegamos à arrogância a nível internacional. As dívidas crescem a uma taxa exponencial (o Milagre do Juro Composto), tornando o êxito financeiro absorver tudo – de tal modo que os impérios avançam para a sua própria derrota. É esta a trágica debilidade tanto da alta finança como da conquista militar.

O exagero militar foi o que obrigou os agressores a mudar para o modo financeiro de conquista. Para os economistas que procuram o conforto baseando a sua disciplina na física, o paradigma relevante é a Terceira Lei do Movimento, de Newton, aplicada à política do poder internacional: Toda a acção cria uma reacção igual e oposta. As partes exploradas são impelidas a afastar-se – ou irem à falência.

A decadência propaga-se a partir do próprio núcleo financeiro imperialista à medida que os predadores usam o seu espólio financeiro estrangeiro para dominar a população interna, polarizando e empobrecendo a economia e destruindo assim o mercado interno. É esta a história do declínio e queda do Império Romano, e vai continuar a ser o modelo económico padrão. Um "mercado" assim é auto-destrutivo.
10/Dezembro/2012
 

[*] O livro The Bubble and Beyond resume as teorias económicas de Michael Hudson. O seu último livro é Finance Capitalism and its Discontents .

O original encontra-se em: http://www.counterpunch.org/2012/12/10/reality-economics/ . Tradução de Margarida Ferreira.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Acima do bem e do mal


 por Carlos Morais
Cartaz de 'Operação E'. Há uns dias, Luís Tosar afirmava que " faltam heróis para conduzir a energia que está na rua". O actor de cinema era entrevistado num jornal digital pelo papel protagonista no filme Operação E .

Não só vi o filme estreado recentemente como também investi o tempo necessário para conhecer as suas opiniões sobre o conflito colombiano, seguindo e consultando boa parte das dúzias de entrevistas na rádio, televisão e jornais em que o actor galego pontifica sobre uma realidade que parece conscientemente não querer conhecer.

A simpatia que sentia por ele e por algumas das personagens que tem interpretado desvaneceu-se repentinamente pelo lamentável papel que está a cumprir na hora de analisar com irresponsável ligeireza, e difundir com absoluta banalidade, erróneas e falsas concepções sobre a brutal guerra de extermínio e de submetimento que a oligarquia colombiana declarou contra o seu povo desde há meio século.

Aparentemente, o guião do filme narra uma história verídica. Gira à volta das peripécias de um camponês colombiano, José Crisanto, a quem a insurgência entregou Emmanuel, o filho de Clara Rojas , uma política capturada pelas FARC em 2002 e que em resultado de uma relação com um combatente revolucionário ficou grávida num acampamento guerrilheiro. Perante os graves problemas de saúde da criança, foi entregue a Crisanto para que a cuidasse. Posteriormente, o menino acabou numa instituição estatal em Bogotá, impossibilitando assim que a guerrilha, tal como publicamente se comprometera, pudesse entregá-lo junto com a sua mãe e outra representante política, também prisioneira de guerra. Crisanto incumpriu o acordo com as FARC, mas também foi acusado de colaboração com a guerrilha por parte do Estado, padecendo prisão.

Uma realidade concreta omitida deliberadamente

A Colômbia tem mais de 5 milhões e meio de pessoas deslocadas pelas políticas de roubo e saqueio de terras promovidas pela oligarquia, empregando o mastodôntico exército regular e os paramilitares controlados pelo Pentágono e Israel, ocupando assim o triste primeiro lugar depois do Sudão, Iraque, Afeganistão, Somália e República Democrática do Congo.

São mais de 10 milhões o número de hectares arrebatados a camponeses e povos indígenas por uma política estatal perfeitamente planificada.

A Colômbia tem mais de 250 mil desaparecid@s, 175 mil pessoas executadas, cerca de 9 mil prisioneiras e prisioneiros políticos. Tem o recorde mundial de matar representantes operários, é quase 3.000 o número de sindicalistas assassinados nas últimas duas décadas. Setenta por cento da população vive na miséria, sendo o primeiro país em desigualdade da América Latina.

A Colômbia é uma imensa fossa comum com milhares de corpos mutilados, onde estão ocultos parte dos crimes cometidos pela casta oligárquica que governa um país submetido aos interesses do imperialismo ianque e de multinacionais espanholas como Repsol, Cepsa, Endesa, Union Fenosa, Telefónica ou Banco Santander. Em La Macarena, no Meta, à beira de um complexo militar, a 200 quilómetros de Bogotá, fica uma das maiores fossas comuns do planeta.

O governo Uribe e o actual governo Santos converteram esta imensa nação numa gigantesca base militar norte-americana, a partir da qual os falcões de Washington tentam desesperadamente recuperar o terreno perdido pelo avanço da onda bolivariana. Cumpre não esquecer as declarações de Dick Cheney, vice-presidente de Bush JR: "Para controlar a Venezuela, é necessário dominar militarmente a Colômbia".

Frente a esta situação, em meados da década dos sessenta do século passado, um punhado de camponeses dirigidos por Manuel Marulanda Vélez, com apoio do Partido Comunista, iniciaram a resistência popular, posteriormente cristalizada numa poderosa e invencível organização marxista-leninista em armas denominada Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército do Povo. Pois, tal como afirmou o comandante Alfonso Cano em declarações em prol de uma saída negociada do conflito, meses antes do seu assassinato pela maquinaria militar pro-imperialista na operação "Odisseo" "as FARC nascemos resistindo a violência oligárquica que utiliza sistematicamente o crime político para liquidar a oposição democrática e revolucionária; também como resposta camponesa e popular à agressão latifundiária e latifundiária que inundou de sangue os campos colombianos usurpando terra de camponeses e colonos".

A Colômbia é um regime autoritário e terrorista que até o momento impossibilitou que a oposição popular pudesse defender pacificamente o seu projecto político. Cada vez que tentou esta via, foi literalmente massacrada. A experiência da União Patriótica, na segunda metade dos oitenta, ainda está muito viva. Dois candidatos presidenciais, 8 congressistas, 13 deputados, 70 vereadores, 11 presidentes da câmara e milhares de militantes foram assassinados entre 1985 e inícios dos anos noventa, por defenderem a justiça social e a soberania nacional. Razão que explica as dificuldades de compreensão de Luis Tosar para não entender que "não seja fácil que a gente fale".

Actualmente, esta burguesia vende-pátria assinou um Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos e pretende converter o país numa imensa exploração mineira e agro-industrial, seguindo o modelo de economia de enclave.

Existem centenas de livros, páginas web, documentários, reportagens jornalísticas, nos quais se pode contrastar tudo isto. Porém, um colossal muro de silêncio e manipulação pretende lavar a cara de um Estado criminoso e narcotraficante, apresentando-o como um modelo de democracia parlamentar. Para citar um só exemplo que Luís Tosar deveria conhecer, há uns meses os Estados Unidos solicitaram, por narcotráfico, a extradição do ex-chefe de segurança de Álvaro Uribe, o general Maurício Santoyo.

A oligarquia provocou e alimenta esta guerra contra as imensas maiorias populares, que hoje a insurgência pretende superar mediante o processo de negociação política que se está a desenvolver em Havana. O futuro determinará se a vitória de por a oligarquia a dialogar não é mais que um novo engano da burguesia para ganhar tempo e lograr o que em 50 anos não atingiu: dobrar os firmes princípios revolucionários, comunistas e bolivarianos das FARC-EP. Na actualidade, tal como transmitiu no mês de Outubro em Oslo o comandante Iván Marquez "apoiados em simples exercícios de matemática, podemos afirmar que a guerra é insustentável para o Estado".

A infâmia de meter todo o mundo no mesmo saco

Frente a esta inegável realidade, Luís Tosar adopta uma posse de neutralidade e imparcialidade, situando-se acima do bem e do mal. Não quer admitir, e menos ainda reconhecer, que os povos têm direito à autodefesa quando são atacados. A rebelião armada contra a opressão é um dever quando não existem possibilidades reais de defesa frente à exploração e à dominação.

Este filme era uma magnífica oportunidade para divulgar a verdade sobre um dos conflitos políticos, sociais e armados mais submetidos à grosseira manipulação dos meios de comunicação burgueses, mas novamente optou-se por dar uma visão morna e maquilhada da tese oficial imposta pelos que se consideram os donos do mundo.

O filme, dirigido pelo realizador hispano-francês Miguel Courtois, e financiado por TVE e Canal + França, situa no mesmo nível as duas partes em conflito: povo colombiano versus oligarquia, e as suas estruturas de defesa, intervenção e combate: guerrilhas/organizações populares/movimentos sociais versus exército regular/polícia/paramilitares e sicários.

Não é de estranhar esta atitude em quem dirigiu "El lobo" (2004) ou "GAL" (2006), desfigurando conflitos políticos com base nas leituras impostas pela ideologia dominante e as necessidades comerciais.

Tão pouco nos surpreende que alguém como Luís Tosar, epidermicamente solidário com aquelas causas progressistas socialmente mais assimiláveis, uma das caras mais visíveis da desaparecida Burla Negra, ex-militante e candidato do BNG às eleições municipais e europeias, colabore activamente em ocultar a natureza política da guerra de guerrilhas que amplos sectores do povo colombiano promovem e apoiam.

Nem "todos são maus" , nem "é difícil saber quem é o pior de todos" , nem as FARC são uma "narcoguerrilha" , tal como manifestou num programa de La Sexta. Nada disso!

É muito fácil, a partir de um hotel de cinco estrelas, do glamour dos palcos de televisão e festivais de cinema, sentenciar com frivolidade condenações veladas das justas lutas pela libertação dos povos, e para não perder essa aureola de progressista meter no mesmo saco oprimidos e opressores.

Afirmar que, na Colômbia, povo em armas e exército genocida são similares, é o mesmo que considerar que a legitimidade do emprego da violência da guerrilha vietnamita era tão condenável quanto os bombardeamentos com napalm do exército de ocupação ianque.

O conflito colombiano "não é absurdo", é a única alternativa que os sectores mais avançados do povo trabalhador colombiano podem adoptar frente à guerra de extermínio de uma burguesia apátrida e criminosa.

Há que molhar-se, não valem as meias tintas. Gastar três milhões de euros num filme que satisfaz parcialmente a oligarquia colombiana é uma lamentável contribuição para essas causas justas que esporadicamente Luís Tosar gosta de apoiar.

Entendemos que optar claramente pela causa dos humildes e oprimidos da Colômbia não contribui para somar méritos para ganhar outro Prémio Goya . Antes, é garantia de ficar completamente eliminado de qualquer possibilidade futura de atingir um óscar. Outra coisa é estar contra os despejos, incremento do IVA ou condenar as fanfarronadas extremistas do ministro Wert.

Nada esperávamos nem esperamos do mundo da farándula. Numa das entrevistas aludidas, após a reprodução de imagens da repressão da polícia espanhola, o actor luguês sai novamente pela tangente afirmando literalmente que "é muito triste que a polícia não saiba quem é o inimigo. Um sai à rua para protestar e por cima os companheiros (sic) polícias vão contra ti em lugar de ir contra o inimigo real. Não sei se é que estão completamente errados ou é que, realmente, não tenham outra forma de fazer as coisas" . Não há pior cego que aquele que não quer ver.

A Revolução é uma necessidade, não uma atitude romântica

Luís Tosar afirma numa entrevista ser um romântico e que há uma "visão muito romântica dos movimentos revolucionários". Novamente volta a confundir alhos com bugalhos. As revoluções são processos sociais transformadores, resultado objectivo de opressões, da tomada de consciência de amplas maiorias sociais, não produtos artificiais estéticos e "idealistas" de intelectuais e artistas progressistas. A intensa guerra de classes continua na Colômbia porque não existe outra possibilidade para o seu povo.

Porque, ao contrário das opiniões de Luís Tosar, quando afirma que "Eu não confio muito na inteligência colectiva. Nunca confiei. Creio que assim não funcionamos bem", são as massas que constroem a sua própria história.

Na Colômbia não faltam heróis para conduzir a energia que está na rua. Existem, são de carne e osso, têm nome e rosto, sofrem, riem, combatem, amam. A imensa maioria são centenas de milhares de anónimos activistas, camponeses, trabalhadores, estudantes, mulheres, indígenas que lutam nas trincheiras dos movimentos sociais, nas minas, nos campos, nas fábricas, nas universidades, nos povos e nas cidades.

Outros chamaram-se Jacobo Arenas, Efraín Guzman, Mariana Paez, Raúl Reyes, Iván Ríos, Manuel Marulanda, Jorje Briceño "Mono Jojoy", Alfonso Cano. Foram parte da Colômbia mais brava e rebelde. Da mesma que se opôso ao colonialismo espanhol durante mais de trezentos anos, e posteriormente ao Estado oligárquico crioulo.

Outros são conhecidos por Jesus Santrich, Rodrigo Granda, Simón Trinidad, Tanja Nijmeijer "Alexandra", Maurício Jaramillo, Fabián Ramírez, Pablo Catatumbo, Joaquín Gómez, Iván Marquez, Timoleón Jiménez "Timochenko". Com o seu valor e talento, a Colômbia triunfará. Graças a eles, mantém-se viva a esperança de milhões de colombianas e colombianos que desejam uma paz com justiça social e soberania nacional.

Não somos dos que estão acima do bem e do mal. Somos, sim, daqueles que preferem apanhar uma constipação a não nos molharmos. Sem duvidar nem um milésimo de segundo tomamos partido, estamos com a Colômbia que hoje avança e, mais cedo que tarde, triunfará.
Galiza, 11/Dezembro/2012
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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