quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Acima do bem e do mal


 por Carlos Morais
Cartaz de 'Operação E'. Há uns dias, Luís Tosar afirmava que " faltam heróis para conduzir a energia que está na rua". O actor de cinema era entrevistado num jornal digital pelo papel protagonista no filme Operação E .

Não só vi o filme estreado recentemente como também investi o tempo necessário para conhecer as suas opiniões sobre o conflito colombiano, seguindo e consultando boa parte das dúzias de entrevistas na rádio, televisão e jornais em que o actor galego pontifica sobre uma realidade que parece conscientemente não querer conhecer.

A simpatia que sentia por ele e por algumas das personagens que tem interpretado desvaneceu-se repentinamente pelo lamentável papel que está a cumprir na hora de analisar com irresponsável ligeireza, e difundir com absoluta banalidade, erróneas e falsas concepções sobre a brutal guerra de extermínio e de submetimento que a oligarquia colombiana declarou contra o seu povo desde há meio século.

Aparentemente, o guião do filme narra uma história verídica. Gira à volta das peripécias de um camponês colombiano, José Crisanto, a quem a insurgência entregou Emmanuel, o filho de Clara Rojas , uma política capturada pelas FARC em 2002 e que em resultado de uma relação com um combatente revolucionário ficou grávida num acampamento guerrilheiro. Perante os graves problemas de saúde da criança, foi entregue a Crisanto para que a cuidasse. Posteriormente, o menino acabou numa instituição estatal em Bogotá, impossibilitando assim que a guerrilha, tal como publicamente se comprometera, pudesse entregá-lo junto com a sua mãe e outra representante política, também prisioneira de guerra. Crisanto incumpriu o acordo com as FARC, mas também foi acusado de colaboração com a guerrilha por parte do Estado, padecendo prisão.

Uma realidade concreta omitida deliberadamente

A Colômbia tem mais de 5 milhões e meio de pessoas deslocadas pelas políticas de roubo e saqueio de terras promovidas pela oligarquia, empregando o mastodôntico exército regular e os paramilitares controlados pelo Pentágono e Israel, ocupando assim o triste primeiro lugar depois do Sudão, Iraque, Afeganistão, Somália e República Democrática do Congo.

São mais de 10 milhões o número de hectares arrebatados a camponeses e povos indígenas por uma política estatal perfeitamente planificada.

A Colômbia tem mais de 250 mil desaparecid@s, 175 mil pessoas executadas, cerca de 9 mil prisioneiras e prisioneiros políticos. Tem o recorde mundial de matar representantes operários, é quase 3.000 o número de sindicalistas assassinados nas últimas duas décadas. Setenta por cento da população vive na miséria, sendo o primeiro país em desigualdade da América Latina.

A Colômbia é uma imensa fossa comum com milhares de corpos mutilados, onde estão ocultos parte dos crimes cometidos pela casta oligárquica que governa um país submetido aos interesses do imperialismo ianque e de multinacionais espanholas como Repsol, Cepsa, Endesa, Union Fenosa, Telefónica ou Banco Santander. Em La Macarena, no Meta, à beira de um complexo militar, a 200 quilómetros de Bogotá, fica uma das maiores fossas comuns do planeta.

O governo Uribe e o actual governo Santos converteram esta imensa nação numa gigantesca base militar norte-americana, a partir da qual os falcões de Washington tentam desesperadamente recuperar o terreno perdido pelo avanço da onda bolivariana. Cumpre não esquecer as declarações de Dick Cheney, vice-presidente de Bush JR: "Para controlar a Venezuela, é necessário dominar militarmente a Colômbia".

Frente a esta situação, em meados da década dos sessenta do século passado, um punhado de camponeses dirigidos por Manuel Marulanda Vélez, com apoio do Partido Comunista, iniciaram a resistência popular, posteriormente cristalizada numa poderosa e invencível organização marxista-leninista em armas denominada Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército do Povo. Pois, tal como afirmou o comandante Alfonso Cano em declarações em prol de uma saída negociada do conflito, meses antes do seu assassinato pela maquinaria militar pro-imperialista na operação "Odisseo" "as FARC nascemos resistindo a violência oligárquica que utiliza sistematicamente o crime político para liquidar a oposição democrática e revolucionária; também como resposta camponesa e popular à agressão latifundiária e latifundiária que inundou de sangue os campos colombianos usurpando terra de camponeses e colonos".

A Colômbia é um regime autoritário e terrorista que até o momento impossibilitou que a oposição popular pudesse defender pacificamente o seu projecto político. Cada vez que tentou esta via, foi literalmente massacrada. A experiência da União Patriótica, na segunda metade dos oitenta, ainda está muito viva. Dois candidatos presidenciais, 8 congressistas, 13 deputados, 70 vereadores, 11 presidentes da câmara e milhares de militantes foram assassinados entre 1985 e inícios dos anos noventa, por defenderem a justiça social e a soberania nacional. Razão que explica as dificuldades de compreensão de Luis Tosar para não entender que "não seja fácil que a gente fale".

Actualmente, esta burguesia vende-pátria assinou um Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos e pretende converter o país numa imensa exploração mineira e agro-industrial, seguindo o modelo de economia de enclave.

Existem centenas de livros, páginas web, documentários, reportagens jornalísticas, nos quais se pode contrastar tudo isto. Porém, um colossal muro de silêncio e manipulação pretende lavar a cara de um Estado criminoso e narcotraficante, apresentando-o como um modelo de democracia parlamentar. Para citar um só exemplo que Luís Tosar deveria conhecer, há uns meses os Estados Unidos solicitaram, por narcotráfico, a extradição do ex-chefe de segurança de Álvaro Uribe, o general Maurício Santoyo.

A oligarquia provocou e alimenta esta guerra contra as imensas maiorias populares, que hoje a insurgência pretende superar mediante o processo de negociação política que se está a desenvolver em Havana. O futuro determinará se a vitória de por a oligarquia a dialogar não é mais que um novo engano da burguesia para ganhar tempo e lograr o que em 50 anos não atingiu: dobrar os firmes princípios revolucionários, comunistas e bolivarianos das FARC-EP. Na actualidade, tal como transmitiu no mês de Outubro em Oslo o comandante Iván Marquez "apoiados em simples exercícios de matemática, podemos afirmar que a guerra é insustentável para o Estado".

A infâmia de meter todo o mundo no mesmo saco

Frente a esta inegável realidade, Luís Tosar adopta uma posse de neutralidade e imparcialidade, situando-se acima do bem e do mal. Não quer admitir, e menos ainda reconhecer, que os povos têm direito à autodefesa quando são atacados. A rebelião armada contra a opressão é um dever quando não existem possibilidades reais de defesa frente à exploração e à dominação.

Este filme era uma magnífica oportunidade para divulgar a verdade sobre um dos conflitos políticos, sociais e armados mais submetidos à grosseira manipulação dos meios de comunicação burgueses, mas novamente optou-se por dar uma visão morna e maquilhada da tese oficial imposta pelos que se consideram os donos do mundo.

O filme, dirigido pelo realizador hispano-francês Miguel Courtois, e financiado por TVE e Canal + França, situa no mesmo nível as duas partes em conflito: povo colombiano versus oligarquia, e as suas estruturas de defesa, intervenção e combate: guerrilhas/organizações populares/movimentos sociais versus exército regular/polícia/paramilitares e sicários.

Não é de estranhar esta atitude em quem dirigiu "El lobo" (2004) ou "GAL" (2006), desfigurando conflitos políticos com base nas leituras impostas pela ideologia dominante e as necessidades comerciais.

Tão pouco nos surpreende que alguém como Luís Tosar, epidermicamente solidário com aquelas causas progressistas socialmente mais assimiláveis, uma das caras mais visíveis da desaparecida Burla Negra, ex-militante e candidato do BNG às eleições municipais e europeias, colabore activamente em ocultar a natureza política da guerra de guerrilhas que amplos sectores do povo colombiano promovem e apoiam.

Nem "todos são maus" , nem "é difícil saber quem é o pior de todos" , nem as FARC são uma "narcoguerrilha" , tal como manifestou num programa de La Sexta. Nada disso!

É muito fácil, a partir de um hotel de cinco estrelas, do glamour dos palcos de televisão e festivais de cinema, sentenciar com frivolidade condenações veladas das justas lutas pela libertação dos povos, e para não perder essa aureola de progressista meter no mesmo saco oprimidos e opressores.

Afirmar que, na Colômbia, povo em armas e exército genocida são similares, é o mesmo que considerar que a legitimidade do emprego da violência da guerrilha vietnamita era tão condenável quanto os bombardeamentos com napalm do exército de ocupação ianque.

O conflito colombiano "não é absurdo", é a única alternativa que os sectores mais avançados do povo trabalhador colombiano podem adoptar frente à guerra de extermínio de uma burguesia apátrida e criminosa.

Há que molhar-se, não valem as meias tintas. Gastar três milhões de euros num filme que satisfaz parcialmente a oligarquia colombiana é uma lamentável contribuição para essas causas justas que esporadicamente Luís Tosar gosta de apoiar.

Entendemos que optar claramente pela causa dos humildes e oprimidos da Colômbia não contribui para somar méritos para ganhar outro Prémio Goya . Antes, é garantia de ficar completamente eliminado de qualquer possibilidade futura de atingir um óscar. Outra coisa é estar contra os despejos, incremento do IVA ou condenar as fanfarronadas extremistas do ministro Wert.

Nada esperávamos nem esperamos do mundo da farándula. Numa das entrevistas aludidas, após a reprodução de imagens da repressão da polícia espanhola, o actor luguês sai novamente pela tangente afirmando literalmente que "é muito triste que a polícia não saiba quem é o inimigo. Um sai à rua para protestar e por cima os companheiros (sic) polícias vão contra ti em lugar de ir contra o inimigo real. Não sei se é que estão completamente errados ou é que, realmente, não tenham outra forma de fazer as coisas" . Não há pior cego que aquele que não quer ver.

A Revolução é uma necessidade, não uma atitude romântica

Luís Tosar afirma numa entrevista ser um romântico e que há uma "visão muito romântica dos movimentos revolucionários". Novamente volta a confundir alhos com bugalhos. As revoluções são processos sociais transformadores, resultado objectivo de opressões, da tomada de consciência de amplas maiorias sociais, não produtos artificiais estéticos e "idealistas" de intelectuais e artistas progressistas. A intensa guerra de classes continua na Colômbia porque não existe outra possibilidade para o seu povo.

Porque, ao contrário das opiniões de Luís Tosar, quando afirma que "Eu não confio muito na inteligência colectiva. Nunca confiei. Creio que assim não funcionamos bem", são as massas que constroem a sua própria história.

Na Colômbia não faltam heróis para conduzir a energia que está na rua. Existem, são de carne e osso, têm nome e rosto, sofrem, riem, combatem, amam. A imensa maioria são centenas de milhares de anónimos activistas, camponeses, trabalhadores, estudantes, mulheres, indígenas que lutam nas trincheiras dos movimentos sociais, nas minas, nos campos, nas fábricas, nas universidades, nos povos e nas cidades.

Outros chamaram-se Jacobo Arenas, Efraín Guzman, Mariana Paez, Raúl Reyes, Iván Ríos, Manuel Marulanda, Jorje Briceño "Mono Jojoy", Alfonso Cano. Foram parte da Colômbia mais brava e rebelde. Da mesma que se opôso ao colonialismo espanhol durante mais de trezentos anos, e posteriormente ao Estado oligárquico crioulo.

Outros são conhecidos por Jesus Santrich, Rodrigo Granda, Simón Trinidad, Tanja Nijmeijer "Alexandra", Maurício Jaramillo, Fabián Ramírez, Pablo Catatumbo, Joaquín Gómez, Iván Marquez, Timoleón Jiménez "Timochenko". Com o seu valor e talento, a Colômbia triunfará. Graças a eles, mantém-se viva a esperança de milhões de colombianas e colombianos que desejam uma paz com justiça social e soberania nacional.

Não somos dos que estão acima do bem e do mal. Somos, sim, daqueles que preferem apanhar uma constipação a não nos molharmos. Sem duvidar nem um milésimo de segundo tomamos partido, estamos com a Colômbia que hoje avança e, mais cedo que tarde, triunfará.
Galiza, 11/Dezembro/2012
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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