quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Os economistas e o um por cento

A análise económica da realidade


por Michael Hudson [*]

"Os deuses enlouquecem primeiro aqueles a quem querem destruir". E se quiseram destruir economias, primeiro criaram uma classe rica no topo e deixaram que a natureza humana fizesse o resto. O uso do poder rapidamente leva ao seu abuso, à arrogância económica e social. Ao tentar proteger os seus lucros, perpetua-se e torna hereditária a sua riqueza, o aparecimento de uma elite do poder encerra-se na sua posição de modo a excluir e a prejudicar os que estão em baixo. Os ricos endividam-nos, atiram a carga fiscal sobre os menos poderosos e transformam o governo numa oligarquia.

Esta é uma história antiga. Os gregos perceberam-no bem, ao verem como o poder leva à arrogância, provocando a sua própria queda. A arrogância é o vício da riqueza e do poder, um exagero de insolência que implica o prejuízo dos outros. Ao empobrecer a economia, destrói a fonte dos lucros, dos juros, dos ganhos de capital, e até da recuperação das poupanças originais e do principal da dívida.

O carácter abusivo da riqueza e do poder não é o que os modelos económicos predominantes descrevem. É por isso que a teoria económica está falida. O conceito de utilidade marginal decrescente implica que os ricos ficam mais saciados à medida que ficam mais ricos e daí menos viciados no poder. Esta ideia de saciedade progressiva de lucros segue a direcção errada, negando o fio condutor básico dos últimos dez mil anos de tecnologia e civilização humanas.

A actual abordagem da oferta e da procura trata a economia como um "mercado" duma forma puramente abstracta, na medida em que troca e substitui uns pelos outros a quantidade dos bens (já produzidos), da mão-de-obra (com uma determinada produtividade) e do capital (já acumulado, sem explicar como). Esta abordagem não se preocupa em aprofundar como é que as pessoas arranjaram o capital para o "trocar" pela "mão-de-obra". Ainda por cima, esta abordagem interpreta erradamente o crescimento tecnológico e a experiência básica de negócios, ao assumir condições de retornos decrescentes e utilidade marginal decrescente. O resultado intelectual é um universo paralelo, cujo critério para a excelência económica é pura e simplesmente o círculo interno das suas premissas abstractas, e não a sua realidade.

No seu recente livro Economists and the Powerful , Norbert Häring e Niall Douglas mostram que a disciplina económica não entrou por este caminho por acaso. Norbert Häring e Niall Douglas são organizadores importantes da World Economic Association , que surgiu do movimento Economia-Pós-Autista destinado a fornecer uma alternativa à economia neoclássica e neoliberal predominante. (Häring é co-editor da World Economic Review .) Para esse efeito, apresentaram uma grande quantidade de referências que esclarecem como a economia se transformou num exercício de propaganda de financeiros, latifundiários, monopolistas, pessoas no interior do sistema, vigaristas e outros predadores de rendas que os economistas clássicos tentaram tributar e eliminar através de regulamentações. Este estado de coisas reflecte o pendor secular destes parasitas para lutar contra a economia clássica, patrocinando ficções em benefício próprio que os descrevem como ganhando as suas fortunas, não por meios predatórios e extractivos, mas contribuindo para os resultados como "criadores de empregos".

Qualquer distribuição de riqueza e de receitas é tratada como um equilíbrio que reflecte uma escolha voluntária, sem se examinarem as estruturas organizativas e sociais da contratação de postos de trabalho, da produção e da distribuição. Os autores fornecem um antídoto a esta visão periférica, apontando para as verdadeiras mãos invisíveis em acção: negócios internos, manobras contra a força de trabalho e contra sindicatos, pilhagem e fraude desenfreadas. O que eles entendem por 'poder' é os empregadores contratarem fura-greves, organizarem grupos de pressão para obterem favores especiais e negócios internos, e apoiarem as campanhas eleitorais de legisladores comprometidos para agirem a favor dos um por cento.

Criticando a teoria dos manuais, sublinham que a maior parte da produção tem retornos crescentes. Os custos unitários caem à medida que o investimento do capital fixo se alarga a uma produção maior. Enquanto produtor com um custo marginal praticamente de zero a Microsoft, por exemplo, obtém uma renda crescente sobre a propriedade intelectual por cada programa vendido. A um nível de economia ampliada, aumentar o salário mínimo permitiria à maior parte das empresas beneficiar de retornos acrescidos, aumentando a procura.

As empresas usam a alavanca política para garantirem que árbitros anti-trabalho sejam nomeados para os tribunais e arenas que dirimem disputas sobre o emprego, condições de trabalho e despedimentos. As indústrias de capital intensivo entregam a terceiros tarefas pouco especializadas a fornecedores de pequena escala que utilizam mão-de-obra não sindicalizada. A privatização de empresas públicas também tem em grande medida a intenção de quebrar o poder da força de trabalho sindicalizada. A teoria marginal da oferta e da procura implica que cada trabalhador adicional que é contratado aumenta as taxas salariais, obrigando os negócios a oporem-se a políticas de pleno emprego a fim de manter os salários baixos, mesmo que isso limite o mercado para a sua produção.

Portanto, a tecnologia e as condições decrescentes não são a razão pela qual os salários têm vindo a diminuir – ou pela qual os custos financeiros e outros, não produtivos, têm vindo a subir na maior parte das economias ocidentais. Estes aumentos de custos são provocados pelos encargos da dívida para aquisições por empréstimos (leveraged buyouts) e pelos assaltos corporativos, mais os salários, bónus e opções de acções dos executivos. A mão-de-obra também enfrenta custos de vida mais altos em consequência da crescente dívida hipotecária contraída para a habitação, empréstimos a estudantes para obter um curso como pré-condição para o emprego da classe média, e dívidas de cartões de crédito para manter os padrões de consumo, e crescentes retenções no salário para a Segurança Social e Medicare à medida que os impostos se tornam regressivos. Este serviço de dívida pessoal (incluindo os custos da habitação) e diversos impostos absorvem mais de dois terços do ordenado comum. Por isso, mesmo que os trabalhadores não tivessem que comprar quaisquer dos bens e serviços que produzem – alimentos, vestuário e outras necessidades básicas de consumo – mesmo assim, não podiam competir com a mão-de-obra de economias menos financiarizadas e livres do encargo de dívidas.

A nível corporativo, a engenharia financeira está mais virada para aumentar os preços das acções do que para novos investimentos em capital tangível. Mesmo isso não está a ser feito de forma a servir o interesse dos accionistas a longo prazo ou da economia em geral. Häring e Douglas fazem uma análise demolidora que denuncia o pagamento de opções de acções como "motivação" para os gestores. Os gestores maximizam o valor dessas opções gastando as receitas corporativas em compras de acções em vez de novos investimentos directos para alargar os seus negócios. Pior ainda, as companhias pedem emprestado para comprar as suas acções ou mesmo para pagar dividendos a fim de fazer subir o seu preço. O "capital" neste ganho é financeiro, não é industrial. Também acontece ser anti-mão-de-obra, na medida em que a carga das dívidas das companhias permite que os assaltantes corporativos utilizem a ameaça da bancarrota para exigir reduções nas pensões e nos benefícios salariais.

O problema com o planeamento financeiro é o seu curto intervalo de tempo, o toca-e-foge, destinada a extrair receitas em vez de aproveitar o tempo para investir em nova produção e desenvolver mercados. Escondendo esta estratégia de curto prazo com ficções de contabilidade "mark to model" ao estilo Enron, os gestores agarram no dinheiro e fogem, deixando atrás de si os resíduos da bancarrota.

A alavancagem da dívida é encorajada tributando os lucros dos preços dos activos a taxas muito mais baixas do que os ganhos (salários e lucros) e permitindo que os juros sejam dedutíveis aos impostos. Este subsídio fiscal não é de modo algum uma característica inerente aos mercados. Reflecte a conquista da política de tributação pelo sector financeiro, juntamente com a conquista reguladora que impede a fiscalização do governo de modo a poder fazer fortunas através da desregulamentação, da privatização, e da popularização da ideia de que a economia pode enriquecer através do endividamento. A doutrina liberal demoniza o governo como o único poder capaz de regular e tributar receitas não ganhas e de agir contra fraudes. Isso inverte a ideia de mercados livres em relação ao significado clássico de mercados livres de rendas económicas não ganhas, para deixar a arena actual livre para os rentistas predatórios.

Esta estratégia é coroada pelo poder para censurar. A descrição enganosa e ilusória da economia apresentada pelos financeiros, especuladores do imobiliário e monopolistas é esconder cuidadosamente o seu próprio comportamento. É este o supremo poder da actual teoria económica dominante: moldar a imagem que as pessoas têm da economia. O ponto de partida é desviar o público de observar (e, portanto, regulamentar ou tributar) as estruturas de poder do mundo real em funcionamento. Preferem tornar-se invisíveis, acima de todo o poder financeiro, para endividarem a economia. Afinal de contas, foi através de meios financeiros que as finanças comutaram o planeamento económico das mãos do governo para a Wall Street e para centros bancários semelhantes no estrangeiro.

Os grupos de pressão a favor dos 1% popularizam a visão de que a economia actual é de facto um produto natural e inevitável da evolução darwiniana. Conforme Margaret Thatcher afirmou: Não Há Alternativa (TINA). Esta estreiteza de vistas é reforçada por uma política censória: "Se o olho te ofende, arranca-o". Häring e Douglas descrevem o processo académico de arrancar quaisquer olhos ofensivos que possam introduzir mais realismo quando se trata de comportamento predatório e de procura de rendas.

A principal directiva é descrever o planeamento financeiro como melhor do que o das instituições públicas. Em contraste com o aval da Era Progressista de manter baixos os custos das infra-estruturas, o sector financeiro procura privatizar as empresas públicas – a crédito, de preferência e a preços de aflição, para criar novas fortunas a partir dos privilégios da extorsão de rendas. A tarefa da actual teoria económica preponderante, conforme o autor a descreve, é desviar as atenções do carácter explorador e tecnologicamente desnecessário dessa procura de rendas. Balzac foi mais realista, ao observar que, por detrás de toda fortuna familiar existe um grande roubo, normalmente há muito esquecido.

Concentram-se no poder interno em vez de identificar a dimensão internacional de como é exercido o poder económico. O FMI, o governo dos EUA e a burocracia da União Europeia exercem a alavanca da dívida externa para impor o Consenso de Washington neoliberal. É assim que a "troika" europeia impõe a austeridade na Grécia ao substituir o governo democrático por "tecnocratas" cujas políticas servem os 1% na actual guerra de classes. Esta via leva, fatalmente, aos assassínios programados com que os Rapazes de Chicago impuseram o seu "mercado livre" cleptocrático no Chile com Pinochet, elaboraram através da Operação Condor os assassínios de líderes sindicais, reformadores agrários e padres e freiras da Teologia de Libertação em toda a América Latina e nos próprios Estados Unidos. Mas eu percebo que os autores tenham tido que traçar algures a linha entre economia e táctica militar, concentrando-se na teoria económica lixo do mercado livre.

A alta finança tornou-se o modo moderno da guerra. Depois de endividar os países, os credores pressionam para privatizar monopólios naturais e criar novos direitos monopolistas para si próprios. Têm como objectivo o que as forças militares tiveram em tempos passados, mas com um custo mais baixo. É mais barato apoderar-se de terras através de penhoras do que através da ocupação armada, e obter direitos às riquezas minerais e infra-estruturas públicas "tramando" as nações através da dívida. As populações submetidas não reagirão enquanto puderem ser convencidas a aceitar a ocupação como um acontecimento natural e até mesmo útil.

No final, chegamos à arrogância a nível internacional. As dívidas crescem a uma taxa exponencial (o Milagre do Juro Composto), tornando o êxito financeiro absorver tudo – de tal modo que os impérios avançam para a sua própria derrota. É esta a trágica debilidade tanto da alta finança como da conquista militar.

O exagero militar foi o que obrigou os agressores a mudar para o modo financeiro de conquista. Para os economistas que procuram o conforto baseando a sua disciplina na física, o paradigma relevante é a Terceira Lei do Movimento, de Newton, aplicada à política do poder internacional: Toda a acção cria uma reacção igual e oposta. As partes exploradas são impelidas a afastar-se – ou irem à falência.

A decadência propaga-se a partir do próprio núcleo financeiro imperialista à medida que os predadores usam o seu espólio financeiro estrangeiro para dominar a população interna, polarizando e empobrecendo a economia e destruindo assim o mercado interno. É esta a história do declínio e queda do Império Romano, e vai continuar a ser o modelo económico padrão. Um "mercado" assim é auto-destrutivo.
10/Dezembro/2012
 

[*] O livro The Bubble and Beyond resume as teorias económicas de Michael Hudson. O seu último livro é Finance Capitalism and its Discontents .

O original encontra-se em: http://www.counterpunch.org/2012/12/10/reality-economics/ . Tradução de Margarida Ferreira.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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