sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Dois marxismos?


por Greg Godels 
 
O Google sabe que tenho um interesse permanente no marxismo. Consequentemente, recebo links frequentes para artigos que os algoritmos do Google seleccionam como populares ou influentes. Sistematicamente, no topo da lista, estão artigos de ou sobre o irreprimível Slavoj Žižek. Žižek dominou os truques de um intelectual público – divertido, pomposo, escandaloso, calculadamente obscuro e amaneirado. A pose desalinhada e a barba desgrenhada somam-se a uma quase caricatura do professor europeu, a presentear o mundo com grandes ideias profundamente embebidas em camadas de obscurantismo – uma maneira infalível de parecer profundo. E uma maneira infalível de promover o valor comercial do entretenimento.

. Seguidores próximos do "mestre" até postam vídeos de Žižek a devorar hot dogs – um em cada mão ! Ele está actualmente a ganhar dinheiro com um debate público com um congénere de direita que é um saco vazio, o qual supostamente torna obscenos os preços dos ingressos. O marxismo como empreendedorismo.

Žižek é uma das mais recentes repetições de uma longa linhagem de académicos em grande parte europeus que constroem uma modesta celebridade pública a partir de uma identificação com o marxismo ou a tradição marxista. De Sartre e o existencialismo até o estruturalismo, pós-modernismo, pós-essencialismo, pós-fordismo e política identitária, académicos apropriaram-se de partes da tradição marxista e afirmaram repensar aquela tradição, enquanto mantinham uma distância segura e bem medida em relação a qualquer movimento marxista. Eles são marxistas quando isso lhes traz uma audiência, mas raramente respondem ao chamado à acção.

O curioso sobre este marxismo intelectual, de salão de conversa, o marxismo diletante, é que nunca é completo; é marxismo com reservas sérias. O marxismo é bom se for o do Marx "primitivo", do Marx "humanista", do Marx "hegeliano", do Marx dos Grundrisse, do Marx sem Engels, do Marx sem a classe trabalhadora, do Marx antes do bolchevismo, ou antes do comunismo. Compreensivelmente, se quiser ser o próximo grande domador de Marx, deve separar-se da manada, deve repensar o marxismo, redescobrir o Marx "real", mostrar onde Marx errou.

Gerações anteriores de estudantes universitários bem-intencionados, mas com confusão de classe, foram seduzidas por pensadores "radicais" que oferecem um gostinho de rebeldia num pacote académico sexy. Estudantes carregam montes de livros não lidos, mas livros de autores na moda como Marcuse, Althusser, Lacan, Deleuze, Laclau, Mouffe, Foucault, Derrida, Negri e Hardt – autores que compartilhavam características comuns com livros de títulos exóticos e provocativos e prosa impenetrável. Livros que prometiam muito, mas entregavam trevas.

Com uma nova geração de jovens de mentalidade radical em busca de alternativas ao capitalismo e curiosos acerca do socialismo, é inevitável que muitos estejam a olhar para Marx. E para onde se voltam?

Um professor de Yale desavergonhadamente apresenta na badalada Jacobin Magazine uma cartilha para iniciantes intitulada Como ser um marxista . O professor Samuel Moyn actualmente exerce na cadeira Henry R. Luce [1] de jurisprudência. Aparentemente, Moyn não se sente desconfortável em possuir uma cadeira dotada por um dos mais notórios editores anti-comunistas e anti-marxistas do país quando apresenta o seu guia para o marxismo.

A pretensão de Moyn de guiar os que não têm conhecimento do marxismo não se justifica nem se explica. No entanto, ele sente-se confiante para recomendar dois académicos recentemente falecidos, Moishe Postone e Erik Olin Wright (juntamente com o ainda vivo Perry Anderson), como representando os últimos da "…geração de grandes intelectuais cujas experiências da década de 1960 levaram-nos a dedicar a vida inteira a recuperar e re-imaginar o marxismo".

Confesso que a sua escolha de Moishe Postone deixou-me desconcertado. Deveria eu ficar embaraçado por dizer que nunca conheci o trabalho do professor Postone ou que não o conheci como marxista? Quando encontrei no YouTube uma entrevista com o estimado Professor Postone, descobri rapidamente que ele enfaticamente e sem reservas nega ser marxista. Além disso, Postone pretende que a maior parte do que chamamos de marxismo foi escrita por Frederick Engels. Postone admite que Engels era "realmente um bom rapaz", mas que Engels nunca entendeu Marx adequadamente. Postone, por outro lado, sim. E o seu Marx não "glorifica" a classe trabalhadora industrial.

Estou no entanto familiarizado com o outro alegado exemplar de uma devoção de "grande intelectual" ao marxismo, Erik Olin Wright. Wright foi um membro consagrado e proeminente da chamada escola do "Marxismo Analítico". Wright, como os demais membros desse movimento intelectual, tentou colocar o marxismo numa base "legítima", onde a legitimidade era obtida submetendo o marxismo aos rigores da ciência social anglo-americana convencional. O conceito de que a ciência social anglo-americana é sem viézes ou que nada tem a aprender com o método de Marx jamais é questionado com essa gente. Mas, para crédito de Wright, ele lutou com unhas e dentes para apreender o conceito de classe social.

A fim de "salvar a esquerda de se meter em vários becos sem saída", o professor Moyn oferece o último livro de seu "colega brilhante", Martin Hägglund. Moyn assegura-nos que "This Life: Secular Faith and Spiritual Freedom" ("Esta vida: Fé laica e libertação espiritual") é excelente para começar por aqueles que querem estimular a teoria do socialismo, ou mesmo construir a sua própria teoria de uma variante marxista dela".

Basta apenas um breve momento para verificar que Martin Hägglund e seu admirável colega estão a levar-nos a outros becos sem saída, alguns pisados por muitas gerações anteriores. A jornada de Hägglund revisitaria o existencialismo, Hegel e as tradições cristãs em busca do evasivo "sentido da vida". Embora muitos de nós pensassem que Marx oferecia uma análise profundamente informada da mudança social e da justiça social, Moyn / Hägglund, seguindo Postone, avançam com "as perguntas finais que todos devem fazer: que trabalho deveria eu fazer? Como deveria gastar meu tempo finito?" Acumular capital contrapõe-se, sugerem eles, a "maximizar... o tempo livre individual a despendê-lo como lhe agradar..."

Assim, a luta pela emancipação, neste repensar do marxismo, não é a emancipação da classe trabalhadora, mas o arrebatar de tempo livremente descartável das garras do trabalho. Os professores admitem que esta luta é muito mais fácil para académicos do que para os "miseráveis da terra".

"E finalmente", conclui Moyn, "há a proposta de Hägglund de que os marxistas podem abandonar o comunismo – que, em qualquer caso, Marx descreveu vagamente – em favor da democracia. Não está totalmente claro o que Hägglund quer dizer com democracia, algo que nem o próprio Marx nem muitos marxistas optaram por investigar teoricamente. Assim, Hägglund destila "marxismo" numa rejeição do comunismo e num abraço de uma vaga "democracia". Eu teria de concordar com Moyn quando ele diz: "Na verdade, é notável quão poucas pessoas pensaram que a teoria marxista tornara-se a tentativa de Hägglund de recomeçá-la no nosso tempo". Aparentemente, o segredo agora revelado de se tornar um marxista é descartar Marx

Tal como muitos auto-proclamados "marxistas", que antecederam Postone, Hägglund e Moyn, a intenção dos mesmos parece ser mais a de defraudar o marxismo do que a de promovê-lo.

Ideias perigosas

A verdade nua e crua é que o marxismo – desde a época da censura de Marx e das suas múltiplas expulsões de diferentes países – é uma ideia perigosa. A incapacidade de Marx de assegurar nomeações académicas e a sua constante vigilância e perseguição por parte das autoridades provou ser um precursor do destino de quase todos os intelectuais marxistas autênticos. O capitalismo não dá àqueles que defendem a destruição do capitalismo honra académica ou celebridade. E aqueles "marxistas" que se tornam aclamados por académicos, que obtêm lucrativos negócios de livros, que desfrutam de exposição nos media, raramente representam grande ameaça ao sistema.

É um facto revelador que, embora a história tenha produzido muitos marxistas "orgânicos", marxistas com raízes na classe trabalhadora e em movimentos que desafiam o capitalismo, suas contribuições raramente povoam as bibliografias de professores universitários, a menos que sejam para ridicularizá-las. O emprego universitário raramente está disponível para fornecedores de ideias perigosas ou para a defesa de uma versão de Marx que apele a mudanças revolucionárias.

Um historiador marxista como o falecido Herbert Aptheker – que fez mais do que qualquer outro intelectual para desafiar a representação distorcida, em Nascimento de uma nação / E tudo o vento levou, de um Sul benévolo e da sua heróica defesa de um nobre estilo de vida – não conseguiu encontrar trabalho em universidades dos EUA. Na verdade, até foi preciso um movimento pela liberdade de expressão para que lhe fosse permitido falar nos campi dos EUA. Seus livros desapareceram da circulação e poucos estudantes de história afro-americana têm acesso às suas contribuições.

Ninguém elaborou uma história do movimento trabalhista americano que rivalizasse com a do falecido marxita Phillip Foner , os 10 volumes de History of the Labor Movement. Os cinco volume de The Life and Writings of Frederick Douglass , também de Foner, restabeleceram Douglasse como uma figura proeminente na abolição da escravatura nos EUA. Uma universidade historicamente negra, a Lincoln University, corajosamente contratou Foner após anos de listas negras. Infelizmente, hoje, suas obras são amplamente ignoradas nos campos em que foi pioneiro.

As sérias contribuições de muitos outros intelectuais marxistas dos EUA podem ser encontradas em edições antigas de publicações como Science and Society , Political Affairs, Masses, Masses and Mainstream e Freedomways a descansarem em prateleiras recônditas e poeirentas, diminuídas pelo macarthismo, pelas listas negras, pela covardia académica e pelo anticomunismo grosseiro.

As portas e o discurso público da academia e dos mass media foram igualmente fechados aos marxistas da classe trabalhadora (a menos que renunciassem aos seus pontos de vista!). Apesar de sua liderança dos movimentos da classe trabalhadora e de escrever prolificamente, os trabalhos marxistas de William Z. Foster sobre organização, estratégia e tácticas trabalhistas e economia política estão em grande medida esquecidos, a menos que reapareçam como o pensamento de outra pessoa. A outras importantes figuras marxistas responsáveis por alguns dos melhores momentos da força de trabalho e pela sua interpretação, como Len De Caux e Wyndham Mortimer, é-lhes negada a entrada no clube.

Analogamente, pioneiros marxistas nos movimentos de igualdade dos negros e das mulheres, como Benjamin Davis, William Patterson e Claudia Jones, não são nem louvados como tais nem são apresentados como exemplos de "Como ser um marxista".

A obra do economista político marxista Victor Perlo na identificação dos limites superiores do capital financeiro e da teoria económica do racismo estão curiosamente ausentes de qualquer conversação académica relevante.

O que todos esses marxistas compartilham é uma vida política activista no Partido Comunista dos EUA, um distintivo orgulhoso, mas denegrido pela maior parte dos intelectuais americanos.

Os melhores escritos da venerável Monthly Review sofrem a mesma marginalização. Seus fundadores foram ameaçados o suficiente para serem vitimizados pelo Red scare . E o seu co-fundador Paul Sweezy, um sério economista político marxista, nunca foi entusiasticamente recebido nos círculos académicos.

Hoje, Michael Parenti é o mais perigoso intelectual marxista nos EUA. Sei disto porque apesar de incontáveis livros, vídeos e palestras, apesar de um compromisso intransigente com uma interpretação marxista da história e dos acontecimentos actuais, apesar de um profundo, mas fundamentado ódio ao capitalismo, e apesar de um estilo admiravelmente acessível e com grandes ideias, ele não tem emprego em universidades e é-lhe negado acesso a todos os media, excepto os mais à esquerda ou marginais.

Outro impressionante estudioso marxista dos EUA, Gerald Horne , embora desfrutando de estabilidade académica, merece ser estudado por todos os "esquerdistas" nos EUA pela integridade, acessibilidade e qualidade do seu trabalho.

O marxismo autêntico, em oposição ao marxismo da moda, do modismo, ou do marxismo caprichoso, é implacável, agressivo e inspirador de acção. Ele disseca diligentemente o funcionamento interno do sistema capitalista. É implacável e impiedoso na sua rejeição ao capitalismo. Ele desafia o pensamento convencional, fazendo poucos amigos na imprensa capitalista e abalando a gentileza e a colegialidade do liberalismo tranquilo da academia. O marxismo não é um avanço de carreira, mas um compromisso ingrato.

Os marxistas reais são necessariamente anómalos (outliers). Até as condições para mudanças revolucionárias amadurecerem, eles são frequentemente sujeitos a cepticismo, desinteresse, até escárnio e hostilidade. Os que posam como marxistas são alérgicos a organizações políticas, activismo e risco intelectual, ao passo que marxistas comprometidos são obrigados a buscar e unir movimentos pela mudança. Eles são levados a servir a muito citada tese de Marx e raramente atendida na décima primeira tese sobre Feurbach: "Os filósofos só interpretaram o mundo de várias maneiras; a questão no entanto é mudá-lo".
30/Abril/2019 
 
[1] Magnata da imprensa, en.wikipedia.org/wiki/Henry_Luce

O original encontra-se em https://mltoday.com/two-marxisms/

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Alucinações circulatórias da moeda e do capital fechando o ciclo


por José Martins [*]
 
Marx lembrava com satisfação, na Introdução à Crítica da Economia Política, a inspiradíssima frase de lorde Gladstone – o mais poderoso político e primeiro-ministro inglês da imperialista era vitoriana: "…nem mesmo o amor levou tanta gente à loucura como as cogitações sobre a essência da moeda…"

Acontece que, na última semana, mais de cento e cinquenta anos depois da morte do poderoso lorde britânico, sua frase reapareceu com cintilante atualidade nas cogitações dos economistas do sistema sobre estranhos movimentos ocorridos na variação dos "preços do dinheiro" (juros) na maior economia do planeta.

O foco do mercado saiu momentaneamente da política monetária e da popular taxa básica de juros do Federal Reserve Bank (Fed, banco central dos EUA). Ou mesmo das oscilações das principais moedas globais, do preço do ouro, etc.

Nesta semana aconteceram coisas mais preocupantes para a ordem e o progresso capitalista em todo o mundo. De repente, todas as atenções dos homens do mercado deslocaram-se para as curvas de juros (yelds) dos títulos de dívida dos governos nas principais economias do mundo; dos EUA, principalmente.

Da moeda para a quase-moeda. Ora, trata-se aqui justamente de um território da acumulação do capital como um todo (produção e circulação) em que a essência da moeda está mais longe do entendimento dos capitalistas e seus limitados economistas que em todas suas outras formas de aparecimento.

Muito mais distante ainda do entendimento das pessoas comuns em todo o mundo, que não têm a menor ideia nem do que sejam essas quase-moedas dos governos e outras misteriosas formas do valor.

Mesmo assim assistiram atônitos, no decorrer desta nesta semana, nos noticiários de televisão do horário nobre, os apresentadores informarem em tom grave de voz e testas franzidas de preocupação que estava ocorrendo uma inversão na curva de rendimentos dos títulos de 10 anos e de 2 anos do tesouro dos EUA !!!

Infelizmente, para o grande público da cidade global os movimentos materiais envelopados em categorias da economia política são muito mais difíceis de serem didaticamente esclarecidos que as encenações da política e de outras formas religiosas da civilização.

De todo modo, o mundo não para. Às vezes até acelera. Como nesta semana, quando aconteceu uma sucessão de fatos incríveis no processo de circulação do  dinheiro-capital para a definição da data e da profundidade da explosão da próxima crise de superprodução do capital global.

Observemos inicialmente a superficialidade dos fenômenos. Por volta das 14 horas de quinta feira (15) o rendimento da nota de 10 anos do Tesouro, que se move inversamente ao seu preço de venda, atingiu uma baixa de três anos na marca de 1,467%, abaixo do rendimento dos títulos a 2 anos de 1,475%, seu nível mais baixo desde outubro de 2017.

Ocorria então aquela incomum e perigosa inversão da curva de rendimentos de um título de longo prazo (10 anos) e de um de curto prazo (2 anos). Isto representa no fechado mundo da economia um paradoxo no fluxo natural do capital produtor de juros e, claro, uma grande preocupação no mercado.

Não é nem um pouco natural que os capitalistas passem a ser mais bem remunerados por emprestar ao governo dos EUA pelo prazo de 2 anos do que pelo prazo de 10 anos.

Essa inversão da curva de rendimentos não foi um fato isolado. Ocorreu simultaneamente a outra sinalização também muito importante para a definição do próximo choque periódico e crise do capital.

Além das peripécias dos títulos de 10 e de 2 anos, pela primeira vez na história os títulos de 30 anos do Tesouro dos EUA estavam pagando um rendimento abaixo de 2,0%, cravando 1,961%, após cair para até 1,941%. Veja no gráfico abaixo a evolução de longo prazo deste rendimento dos títulos de 30 anos.

Em 1989, os títulos de 30 anos do tesouro dos EUA pagava 10%. Na semana passada estava pagando menos de 2%. Essa queda histórica nos rendimentos dos títulos de longo prazo dos EUA é observada com muita preocupação pelos capitalistas. Por duas razões principais.

A primeira, porque a inversão dessa parte-chave da curva de juros tem sido historicamente um indicador que se repetiu e que antecipou a aproximação de todos (absolutamente todos) os choques cíclicos do pós-guerra, chamados de "recessão" pelos economistas vulgares.

A segunda preocupação é com o fato de que crescentes pressões cíclicas sobre o processo de produção e acumulação mundial levaram os capitalistas a tanto medo do seu futuro, no curto-prazo, que o estoque mundial dos títulos dos governos negociados a taxas negativas de rendimentos elevou-se exponencialmente em todo o mundo para um novo recorde dos últimos setenta anos.

O normal do mercado é que os capitalistas emprestem seu dinheiro ao governo com a promessa de ser pago de volta, acrescidos com juros, na data do vencimento. Juros positivos, portanto. Mas agora, à medida que os capitalistas se tornam cada vez mais desesperadas por um "porto seguro" para sua propriedade privada ameaçada pela próxima crise são os governos de grandes economias que são remunerados ao tomar dinheiro emprestado. Com juros negativos!

Essa história de juros negativos é muito menos normal do que aquela inversão da curva de rendimentos entre títulos de longo e de curto prazo observada acima.

Mesmo alguns bancos privados europeus já oferecem empréstimos aos seus fregueses com juros negativos. Você toma emprestado 10 euros agora e paga 9 euros daqui 10 anos. Dá para acreditar? Mesmo assim, pouca gente aparece para aproveitar essa "generosidade".

Assim, se aprofunda velozmente e se amplia neste final de ciclo econômico a clássica armadilha da liquidez  , na qual as taxas de juros cada vez mais baixas tornam-se, ao mesmo tempo, as maiores do mundo. O sistema de crédito desaparece.

Esse bizarro fenômeno ocorre na medida em que as pressões deflacionárias nos preços e lucros mundiais das mercadorias-capital dão o sinal de alerta aos capitalistas sobre uma nova e iminente interrupção da acumulação em todas as esferas da circulação capitalista.

A armadilha da liquidez, o desaparecimento do crédito e, finalmente, o derretimento da moeda, é resultado de um processo deflacionário de preços que se alastra por todo o mercado mundial.

Cerca de US$ 15 trilhões de títulos do governo em todo o mundo, ou 25% do mercado, já são negociados a taxas negativas, segundo o Deutsche Bank. Este número quase triplicou desde outubro do ano passado.

Acontece, neste exato momento, um processo inédito de armadilha da liquidez e deflação global no período pós-guerra. Nota-se no gráfico acima o importante fato que esse processo de entrada do capital produtor de juros no território dos rendimentos negativos inicia-se mundialmente no mês de agosto de 2014. Timidamente, até o início de 2016, acelerando-se nos anos seguintes. Finalmente, como já observado acima, o volume deste  entesouramento  é triplicado desde outubro do ano passado.

Deve ser devidamente registrado o seguinte: o fato de este fenômeno ser inédito nos últimos setenta e cinco anos ter ocorrido apenas recentemente, a partir de 2014, é muito importante para a análise da forma e magnitude específicas da iminente crise global.

Os bancos centrais globais têm afrouxado sua política monetária em níveis sem precedentes nos últimos setenta anos, com a dívida pública se expandindo descontroladamente na Europa e no Japão com taxas de juros zero ou negativas. Uma superprodução de moeda e de crédito para segurar os preços de produção das mercadorias-capital.

O montante da dívida global com rendimentos negativos continua a crescer e, à medida que os bancos centrais tentam reagir e se proteger da grande crise global que se aproxima eles contribuem para um declínio ainda maior nos rendimentos dos títulos.

Na Alemanha e sua poderosa economia industrial os títulos do governo de 30 anos foram negativos pela primeira vez na semana passada.

Agora, com a mais do que provável entrada dos títulos públicos estadunidenses nesta contabilidade da massa de títulos negociados com taxas de juros negativas, pode-se imaginar que essa bastarda massa de capital passaria a representar instantaneamente não mais apenas 25%, mas de 50 a 70% do total deste títulos públicos em todo o mundo.

Além desta gigantesca e inédita migração de massas de capital com taxas de juros negativas para os títulos públicos de longo prazo das principais economias vislumbra-se também a extensão e a violência da destruição de capital que deve ocorrer no período de crise que se aproxima. Uma massa de capital de aproximadamente US$ 30 trilhões a ponto de ser instantaneamente incinerada.

Em outras palavras, é bastante elevada a probabilidade da próxima reversão do período atual de expansão do ciclo para o próximo período de crise desembocar diretamente em uma crise geral ou catastrófica, como descrita por Rosa de Luxemburgo.

Uma crise catastrófica da economia mundial também seria inédita no período pós guerra dos últimos 75 anos. O mundo viraria de ponta-cabeça. Tudo se tornaria possível.

No mês passado, o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi botou mais lenha na fogueira. Sinalizou, do mesmo modo que o Fed vem sinalizando nas duas últimas semanas, que o BCE reduzirá ainda mais as taxas de juros antes do final do ano, já que "um grau significativo de estímulo monetário continua sendo necessário para garantir condições financeiras favoráveis e apoiar a expansão da zona do euro".

Ao tentar salvar as condições financeiras do sistema ameaçadas pela derrocada econômica na produção de valor e de mais-valia os capitalistas destroem antes o seu sistema monetário e de crédito público.

É por isso que todas as crises periódicas de superprodução de capital são abertas por uma crise financeira, antes mesmo de alcançar a esfera produtiva e comercial. Este roteiro da realização da crise mistifica ainda mais as suas causas. Para os economistas em geral a crise econômica será sempre apenas mais uma crise meramente financeira ou de crédito.

Na maneira mais sofisticada desta mistificação, no caso dos marxistas keynesianos, será sempre uma crise de sobre-acumulação, não de superprodução de capital. Tudo é um problema circulatório. Relembrando mais uma vez Rosa de Luxemburgo, estes "epígonos de Marx" estacionaram no livro 2 de O Capital (o Processo de Circulação do Capital) e esqueceram de ler a sequência no Livro 3 (Processo de Conjunto da Produção e Circulação do Capital).

Na raiz destas dificuldades teóricas (com danosas consequências práticas) encontra-se a confusão que todos esses economistas vulgares fazem da relação orgânica entre  dinheiro-capital, de um lado, e, de outro lado, capital-dinheiro. O primeiro é capital produtor de juro, o segundo é capital produtor de lucro. Daí todos esses revisionismos teóricos dos marxistas do século 21 como "financeirização do capital" e outras asneiras.

Acontece que na dinâmica econômica, estritamente delimitada pelo ciclo periódico de superprodução e crise do capital, a lei da gravidade (ou do valor) da economia sempre se impõe sobre a desmesurada superprodução de juros ocorrida no período de expansão. Como deflação dos preços mundiais e abrupta redução da autonomia relativa da esfera financeira, além da sagrada autonomia igualmente relativa da política econômica dos governos.

Em um ciclo econômico completo, a grande massa da superprodução de capital criada no período expansivo consiste deste dinheiro-capital ou (capital-fictício) que, nas fases finais de encerramento do ciclo, como agora, perde progressivamente sua autonomia relativa frente à produção de valor e de mais-valia e se desvaloriza abruptamente.

Antecipa-se assim, na forma de uma crise de crédito e de uma gigantesca queima de capital, que ora se avizinha, a paralização da produção e a depressão econômica propriamente dita.

A maior parte deste entesouramento de mais de US$ 15 trilhões detectado pelo Deutsche Bank é de dinheiro-capital, capital produtor de juros, que migra em quase sua totalidade de uma infinidade de ativos financeiros do mercado de capitais, sistema bancário, etc., para o "porto seguro" dos títulos públicos.

Neste mês de agosto de 2019, este corrosivo processo de superprodução do conjunto do capital se aproxima de seu desenlace na medida exata em que os rendimentos ainda positivos dos títulos públicos dos EUA também se aproximam, como vimos acima, das taxas negativas que já toma conta das principais economias mundiais.

Anuncia-se inédita e planetária queima de capital. É exatamente nesta tão esperada revelação que reside a grande importância dos fatos ocorridos nesta semana com os enlouquecedores e essenciais movimentos da moeda na maior potência econômica do planeta e no resto do mundo.
18/Agosto/2019
 
[*] Economista.

Ver também:
  • Capital fictício
  • A atualidade de Marx face à financeirização: capital fictício, divida e juro
  • Crise: algumas perguntas e respostas

  • La crisis global y el capital ficticio

    O original encontra-se em criticadaeconomia.com/...


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .  
  • quarta-feira, 14 de agosto de 2019

    O fracasso total da diplomacia de Washington


    por Strategic Culture Foundation
     
    Cartoon iraniano. Aparentemente já não há qualquer tentativa, ou simulacro, de diplomacia por parte de Washington. Sanções e agressões são exercidas com descaramento. A Rússia, a China e mesmo os supostos aliados europeus dos Estados Unidos são sujeitos a sanções por Washington – numa rejeição arrogante a qualquer diálogo para resolver alegados diferendos.

    O presidente dos EUA, Donald Trump, evoluiu para uma certa atitude maximalista estridente nas relações internacionais. Ela pode ser resumida assim: do meu modo ou de modo nenhum.

    Um exemplo recente é a imposição de sanções ao ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Mohammad Javad Zarif. Isto indica que os EUA amputaram qualquer possibilidade de uma desescalada negociada de tensões no Golfo Pérsico.

    Zarif, do Irão, revelou nesta semana que quando estava numa visita diplomática aos EUA no mês passado foi-lhe dito por autoridades que era aguardado na Casa Branca para uma reunião com o presidente Trump. Se Zarif recusasse a "oferta" ele seria então colocado numa lista de sanções, informaram-no. Sob estas circunstâncias de coerção aparente o principal diplomata iraniano declinou o convite, só para descobrir posteriormente que fora na verdade punido com sanções. Que espécie de diplomacia americana é esta? Soa como uma oferta do tipo máfia, que não pode ser recusada.

    Esta abordagem "diplomática" com mão pesada sugere que não há de facto diplomacia alguma proveniente de Washington. O presidente Trump twittou na semana passada que o seu governo estava a "ficar sem opções" em relação ao Irão quanto às crescentes tensões no Golfo Pérsico. Parece que a Casa Branca está a "oferecer" falsas tentativas de negociação, enquanto ao mesmo tempo monta opções militares para atacar o Irão.

    Outro exemplo de diplomacia fracassada foi a renúncia, esta semana, do embaixador dos EUA na Rússia, John Huntsman. Ele abandonou o cargo em parte por frustração com a inutilidade de seu dever diplomático de facilitar o diálogo bilateral com Moscovo. A tarefa de Huntsman tornou-se insustentável devido ao maníaco animo anti-russo agora entranhado em Washington, pelo qual qualquer tentativa de diálogo é retratada como uma espécie de "acto de traição".

    Outro exemplo de repúdio da diplomacia pelos EUA é a ordem executiva de Trump esta semana de impor um embargo comercial total à Venezuela. Aquele país sul-americano está efectivamente a ser submetido à fome para submeter-se a Washington e aceitar que o presidente eleito Nicolas Maduro se retire, de acordo com o ditame dos EUA, a fim de permitir que um duvidoso político da oposição apoiado pelos EUA tome as rédeas do poder em Caracas.

    Estes exemplos, entre muitos outros, demonstram que Washington não tem intenção de buscar um discurso diplomático com outras nações e está totalmente empenhado em emitir ditames – ou utilizar outros meios; a fim de alcançar seus objectivos geopolíticos.

    O mais chocante e perigoso é que Washington está a operar na base do ultimato da soma zero. As premissas para os seus ditames são invariavelmente infundadas ou irracionais. A Rússia é tratada como um Estado pária por alegações bizarras de interferência nas eleições dos EUA; o Irão é tratado como um estado pária sob alegações vazias acerca de uma agressão iraniana; a Venezuela é tratada como um Estado pária com alegações contra um presidente eleito. A China é caluniada com alegações de ser um "manipulador da divisa". A Europa supostamente estaria "a aproveitar" os termos comerciais dos EUA. E assim por diante. É a tirania enlouquecida.

    O padrão do direito internacional e as normas da diplomacia estão a ser jogados no lixo do modo mais deliberado e selvagem possível, puramente na base do capricho americano e na sua agenda em causa própria de dominação.

    Esta é uma situação global extremamente perigosa, pois o viés político americano e o preconceito irracional estão a ser tornados padrão ao invés dos princípios do direito internacional e da soberania das nações. Não há diplomacia absolutamente nenhuma. Só a notificação das exigências americanas de obediência ao ditame irracional de Washington para satisfazer seus anseios de hegemonia.

    Não há outro meio de descrever a presente ilegalidade global do assumido poder americano e do seu farisaísmo senão considerá-la como uma forma de fascismo de estado-pária com esteróides.

    Quando a diplomacia, as negociações, o diálogo e o respeito pela soberania são totalmente desrespeitados por Washington – cuja única resposta são as sanções e a agressão militar – então deveríamos saber que a presente descrição do poder americano não é uma hipérbole. É uma descrição da realidade lamentável de que a diplomacia americana não existe mais. Está a tornar-se passado a possibilidade de conduzir relações normais com esse regime paranóico e sem lei. Um estado pária nuclear, também, capaz de destruir o planeta num capricho ou num impulso paranóico do seu cérebro doentio.

    Poderão os cidadãos americanos controlar um regime tão errático e irracional? O tempo dirá. Mas uma coisa parece certa, a paz mundial é continuamente ameaçada pelo regime de Washington, o qual opera dentro do seu próprio reino de fantasia e megalomania criminal.

    Está claro que a diplomacia dos EUA é um fracasso absoluto. Porque, na tortuosa megalomania guerreira de Washington, a diplomacia parece ter-se tornado totalmente irrelevante. O que é isso senão fascismo?
    09/Agosto/2019 
     
    O original encontra-se em
    www.strategic-culture.org/news/2019/08/09/washingtons-utterly-failed-diplomacy/


    Este editorial encontra-se em http://resistir.info/


    aqui:https://www.resistir.info/eua/fracasso_09ago19.html 

    segunda-feira, 12 de agosto de 2019

    Assange na prisão é "tratado pior do que um assassino"


    por John Pilger
    O imperialismo quer crucificar Assange, cartoon de Fernão Campos Julian Assange está a sofrer de uma saúde fraca em consequência do mau tratamento na prisão, de acordo com o jornalista John Pilger que recentemente visitou o fundador da WikiLeaks.

    Ao descrever as condições "em deterioração" de Assange, Pilger afirmou que ele está a ser tratado "pior do que um assassino" no presídio de Belmarsh, em Londres.

    "Ele está isolado, medicado e são-lhe negadas as ferramentas para combater as falsas acusações relativas a uma extradição para os EUA. Agora temo por ele. Não o esqueçam", escreveu Pilger em mensagem no seu twitter .

    E acrescenta:   "Ao visitá-lo vislumbrei o tratamento bárbaro que lhe é aplicado, com isolamento, negação de exercício adequado, de acesso à biblioteca, ao computador portátil. Ele não pode preparar a sua defesa. Ele está mesmo impedido de efectuar telefonemas aos seus advogados nos EUA. Em 4 de Junho o seu advogado britânico escreveu ao governador. [A resposta foi] silêncio. Tudo fora da lei.

    Assange foi preso na Embaixada equatoriana em Londres no dia 11 de Abril e recebeu uma sentença de 50 semanas por fugir da liberdade condicional numa investigação sueca que envolvia um alegado assalto sexual.

    Agora com 48 anos, Assange enfrenta extradição para os Estados Unidos, onde é acusado de posse e disseminação de informação classificada. Se for considerado culpado pode receber uma sentença de até 175 anos de prisão.

    Assange tem estado na mira de Washington desde há anos, com a sua organização a ganhar notoriedade depois de publicar um vídeo que mostrava militares dos EUA a atacar jornalistas e civis no Iraque em Julho de 2007.
     

    Ver também:

  • 'Slow, cruel assassination': Assange's mother blasts US & UK for treatment of whistleblower ("Assassínio lento e cruel": a mãe de Assange amaldiçoa os EUA & Reino Unido pelo tratamento do denunciante)
  • Julian Assange faces 'TORTURE' if extradited to US – UN rapporteur warns (Julian Assange enfrenta tortura se extraditado para os EUA, adverte relator da ONU)

  • UN expert criticizes States for ‘ganging up’ on Wikileaks’ Assange; warns against extradition, fearing ‘serious’ rights violations (Perito da ONU critica Estados por conspirarem acerca de Assange; manifesta-se contra a extradição, temendo graves violações de direitos humanos)

    O original encontra-se em www.rt.com/news/466039-assange-pilger-prison-treatment-fear/


    Este texto encontra-se em http://resistir.info/ .
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