quarta-feira, 30 de julho de 2014

Apocalipto: Religião, Rituais, Morte em Massa e o Culto do Sacrifício Humano

Snowden revela que o líder do grupo terrorista Estado Islâmico foi formado pelo Mossad israelense

“Dez olhares sobre a Europa” - Gonçalo Tavares

Enquanto os índices bolsistas estavam na estratosfera, queimavam-se vacas na Europa. Hoje, todavia, o culto do valor apaga-se, em benefício do verdadeiro valor das coisas. Visão do escritor português Gonçalo M. Tavares.
Não foi a literatura que se aproximou da política, foi a política que invadiu o campo da linguagem – invadiu e aí ficou. E com a política da Europa, a economia. Já há muito que nestes campos não se trata de deslocar coisas materiais, de decidir sobre o reino vegetal (mandar ou não cortar árvores), animal ou humano – agora quase tudo se decide no campo dos signos – números e letras; e eis um regresso ao mundo infantil: na Europa acreditamos que traços num papel não são apenas traços, mas a diferença entre riqueza e pobreza.
A já velha separação entre o signo e a coisa. A célebre frase “a palavra CÃO não morde”: se pusermos os dedos no C no A ou no O não corremos qualquer risco, os nossos dedos ficarão intactos, o C e o A não mordem – velha lição de linguística. E foi esta separação que inaugurou a modernidade. Os primitivos não acreditavam nisso, não acreditavam em dois mundos separados. Para os primitivos o signo era já uma coisa. O desenho de veado não era o desenho de um veado, era o veado. Não havia diferença.
De certa maneira, a Europa – desde há décadas – que acentuou o seu lado primitivo. Voltou a acreditar na magia. Quase toda a economia está hoje instalada no mundo abstracto, no mundo das letras e dos números – e não no mundo das matérias com volume. Porque a velha economia era isto: duas vacas que se trocavam por mil galinhas; fábricas e máquinas, árvores que se vendiam ou compravam. Pouco a pouco, no entanto, os elementos vivos e os metros quadrados foram desaparecendo de cena. Ficaram papéis com signos e números e a Europa transformou-se assim num Novo Continente Primitivo, em que as pessoas assumem comportamentos idênticos aos das tribos da Amazónia que confundiam signos com o real e acreditavam que a letra A ou um desenho os podia esmagar ou amaldiçoar.
É que se escrevermos num papel a frase “este papel vale cem mil euros”, certamente não iremos acreditar que esse papel, essa folha que antes estava branca, passará a valer 100 mil euros. Mas se ganharmos uma certa distância, veremos que, em parte, toda a queda económica a que assistimos hoje se deve a um processo semelhante, a grande escala.
A economia abstracta instalou-se aí, precisamente, no campo da crença. Quem tem um papel formalizado com um certo símbolo ou selo (mais signos) de uma Instituição Financeira acredita que esse papel vale, se pensarmos nas acções, um certo dia 2 euros, no dia seguinte euro e meio, e na semana seguinte três euros. Estas subidas e descidas do valor das acções, para quem está de fora e não entende nada de nada, são algo ainda mais estranho. Não é apenas a crença fixa num signo, como era a dos Primitivos, agora é uma crença flutuante – que a cada dia muda o valor material que atribui ao signo.
O mais absurdo é que a crença no abstracto, este regresso ao pensamento primitivo que invadiu o mundo contemporâneo, foi acompanhado por uma destruição sem precedentes da matéria concreta. Foram abatidos na Europa vacas e barcos, campos de cultivo foram desactivados, máquinas destruídas ou impedidas de trabalhar, pois não se devia produzir mais do que uma certa quantidade. E ano após ano os dois processos foram avançando em paralelo: destruição das coisas que no mundo tinham volume e multiplicação dos papéis sem volume que simbolizavam riqueza. Acreditou-se, no fundo, que a riqueza estava nos signos e que as vacas, os barcos ou os metros quadrados eram uma riqueza, sim, mas antiga, ultrapassada, inadequada. Uma riqueza sem higiene, dir-se-ia.
E durante anos trocaram-se papéis de um lado para o outro. Pequenas folhas de tamanho A4, A5 ou A6 que rodavam de mão em mão; e, a cada passagem, por magia, essas folhas A4 pareciam aumentar de valor. Como uma passagem de testemunho mágica: o indivíduo A passava um papel ao indivíduo B, este ao indivíduo C, este ao D, e o último da fila, por fim, acreditava que o papel recebido valia já mil vezes o valor inicial.
Em suma, a crise na Europa resulta de inúmeras causas, sem dúvida, mas uma parte da questão é esta: estamos agora diante de uma mudança de crença. A Igreja do Abstracto, a crença no papel que vale dinheiro, parece ter chegado a um beco sem saída, e o número dos seus fiéis diminui – uns abandonam voluntariamente, outros contra vontade, muitos de forma trágica. E talvez com o fim desta crença se esteja a regressar, então, a uma outra. A moderna Igreja do Concreto parece, assim, a cada dia, recuperar a posição forte que já teve – a crença no que é matéria: a crença nas vacas, nos barcos, nos campos e nas máquinas – aí está ela, de volta. (E assistiremos nós, ainda, à destruição dos papéis?)
A Europa avançou muito, tecnologicamente e não só, mas para o europeu não se molhar ainda precisa de um elemento material entre o seu corpo e o céu. Não nos podemos abrigar no desenho de uma casa. E é por isso que a Europa parece avançar e recuar ao mesmo tempo. O que tenta não é fácil: quer deixar para trás o mundo primitivo, e regressar, de novo, à antiga modernidade. Trata-se de voltar a ser materialista, no sentido primeiro do termo. O velho materialismo de que as vacas são o bom exemplo, pesadas e calmas: o seu valor é o seu peso – e assim está bem.
 
Gonçalo M. Tavares

aqui:http://contra-faccao.blogspot.pt/2011/01/5-de-dez-olhares-sobre-europa-goncalo.html

segunda-feira, 28 de julho de 2014

O lucro ou as pessoas - Noam Chomski - parte 2 (excertos)




(...)
Mas os desvios mais importantes em relação à doutrina do livre mercado estão noutro lugar. Um dos elementos básicos da teoria do livre mercado é a proibição dos subsídios governamentais. Ao final da II Grande Guerra, porém, alguns líderes empresariais norte-americanos eram de opinião de que a economia marcharia de volta à depressão se não houvesse intervenção estatal. Insistiram também na tese de que a indústria avançada – especificamente a aeronáutica, embora a conclusão fosse mais geral “não pode existir satisfatoriamente, numa economia de ‘livre empresa’ pura, competitiva e não-subsidiada” e que “o governo é a única salvação”. Cito a grande imprensa de negócios, que também admitiu que o sistema do Pentágono era a melhor forma de transferir custos para a população. Eles compreendiam que os gastos sociais, ainda que possam desempenhar o mesmo papel estimulador, não constituem subsídio direto ao setor das grandes empresas, além de terem efeitos democratizantes e redistributivos. Os gastos militares não têm nenhum desses defeitos.

E também é fácil de vender. O Secretário da Força Aérea do governo Truman colocou a questão de maneira muito simples: “Não devemos usar a palavra subsídio; a palavra que devemos usar é garantia”. Ele assegurou que o orçamento militar “atenderia às necessidades da indústria aeronáutica”. Como conseqüência, a aviação civil é hoje o setor que lidera as exportações do país, e a gigantesca indústria de viagens e turismo, largamente baseada no transporte aéreo, é uma das mais lucrativas.

Foi, portanto, absolutamente apropriado da parte de Clinton escolher a Boeing como “modelo para as empresas de toda a América”, em sua pregação de “nova visão” do futuro do livre mercado na reunião de cúpula do Pacífico Asiático em 1993, sendo muito aclamado. Ótimo exemplo de mercado realmente existente, a aviação civil está quase toda nas mãos de duas companhias, a Boeing- McDonald e a Airbus, que devem sua existência e seu sucesso ao subsídio público em larga escala. O mesmo padrão se apresenta nas indústrias de computadores, de eletrônicos, de automação, de biotecnologia, de comunicações, na verdade em quase todos os setores dinâmicos da economia.

Não foi preciso explicar a doutrina do “capitalismo de livre mercado realmente existente” ao governo Reagan. Seus homens eram mestres na arte de exaltar ante os pobres as glórias do mercado e ao mesmo tempo ostentar com orgulho, perante o mundo dos negócios, que Reagan “havia ajudado a indústria norte-americana com mais restrições à importação do que qualquer antecessor seu nos últimos cinqüenta anos” – no que estavam sendo extremamente modestos; ele ultrapassou todos os antecessores juntos, uma vez que “conduziu a maior guinada protecionista desde a década de 1930”, observou Foreign Affairs numa resenha da década. Sem essas e outras medidas extremas de intromissão no mercado, é duvidoso que as indústrias siderúrgicas, automotivas, de máquinas, ferramentas e de semicondutores tivessem sobrevivido à concorrência japonesa ou sido capazes de tomar a dianteira em novas tecnologias, com amplas repercussões sobre toda a economia. Essa experiência ilustra uma vez mais que o “saber convencional” está “cheio de furos”, conforme assinala uma outra resenha dos anos Reagan em Foreign Affairs. Mas o saber convencional mantém seus méritos como arma ideológica para disciplinar os indefesos.

Os Estados Unidos e o Japão anunciaram, recentemente, a criação de importantes novos programas governamentais de financiamento de tecnologia avançada (aviação e semicondutores, respectivamente) para sustentar o setor industrial privado com subsídios públicos.

Para ilustrar a “teoria do livre mercado realmente existente” com uma outra dimensão nos reportaremos ao amplo estudo de Winfried Ruigrock e Rob van Tulder sobre os conglomerados transnacionais, o qual concluiu que “a posição estratégica e competitiva de praticamente todas as grandes empresas-mãe do mundo foi decisivamente influenciada por políticas governamentais e/ou barreiras comerciais” e que “pelo menos vinte das cem maiores empresas da revista Fortune em 1993 não teriam sobre vivido como empresas independentes se não fossem salvas por seus governos”, com a socialização de prejuízos ou o controle estatal direto em situações de crise. Uma delas é a Lockhead, a maior empregadora do distrito profundamente conservador de Gingrich, salva da ruína graças a vultosos empréstimos garantidos pelo governo. O mesmo estudo sublinha que a intervenção governamental, “regra e não exceção nos últimos duzentos anos..., desempenhou um papel-chave para o desenvolvimento e difusão de inovações em produtos e processos – especialmente em tecnologia aeroespacial, eletrônica, agrícola moderna, novos materiais, energia e transporte”, assim como nas telecomunicações e na informação em geral (Internet e World Wide Web são notáveis exemplos recentes) e, em épocas passadas, em produtos têxteis, siderurgia e, é claro, energia. As políticas governamentais “foram uma força avassaladora na construção da estratégia e da competitividade das maiores empresas do mundo”. Outros estudos técnicos apenas confirmam essa conclusão.

Há muito mais para ser dito sobre essa questão, mas uma conclusão parece bastante clara: as doutrinas aprovadas são construídas e aplicadas por motivos de poder e lucro. As “experiências” contemporâneas seguem um padrão conhecido ao assumirem a forma de “socialismo para os ricos” dentro de um sistema de mercantilismo empresarial global no qual o “comércio” consiste, em larga medida, de transações centralmente administradas no interior das próprias empresas, imensas instituições ligadas aos seus concorrentes por alianças estratégicas e dotadas de estruturas internas tirânicas projetadas para obstaculizar a tomada de decisões democráticas e para proteger seus donos da disciplina do mercado. Essa implacável disciplina é para ser ensinada somente aos pobres e indefesos.

Poderíamos também perguntar até que ponto a economia é realmente “global” e até que ponto pode estar sujeita ao controle popular e democrático. Em termos de comércio, fluxos financeiros e outros fatores, a economia não é hoje mais global do que em meados no século 20. Além disso, os conglomerados transnacionais se apóiam pesadamente nos subsídios públicos e nos mercados internos, e suas transações internacionais, incluindo aquelas indevidamente rotuladas como comércio, envolvem notadamente a Europa, o Japão e os Estados Unidos, onde se praticam medidas políticas sem temor de golpes militares e coisas do gênero. Há muito de novo e de significativo, mas a crença de que as coisas estão “fora do controle” não é digna de crédito, mesmo se nos ativermos aos mecanismos existentes.

Será uma lei da natureza que temos de aceitar esses mecanismos? Não, se levarmos a sério as doutrinas do liberalismo clássico. É bem conhecido o elogio da divisão do trabalho em Adam Smith, mas não a denúncia que fez dos seus efeitos desumanos, a transformação dos trabalhadores em objetos “estúpidos e ignorantes até onde é possível a uma criatura humana”, algo que deve ser evitado “em todas as sociedades desenvolvidas e civilizadas” por meio de uma ação governamental que domine a força destrutiva da “mão invisível”. Não muito divulgada também é a sua crença de que a regulação do governo “a favor dos trabalhadores é sempre justa e eqüitativa”, o mesmo não ocorrendo quando ele regula “a favor dos empregadores”. Igualmente desconhecida é a exigência de eqüidade de resultados, situada no coração de sua defesa dos mercados livres.

Outras personalidades que contribuíram para o cânone liberal clássico vão muito além. Wilhelm von Humboldt condenou o próprio trabalho assalariado: “Quando o trabalhador atua sob controle externo”, escreveu, “talvez admiremos o que ele faz, mas desprezamos o que ele é”. Alexis de Tocqueville observou que “a arte avança, o artífice retrocede”. Uma das figuras de proa do panteão liberal, Tocqueville pensava, como Smith e Jefferson, que a eqüidade de resultados é um aspecto importante de uma sociedade livre e justa. Há 160 anos, advertiu para os perigos de “uma permanente desigualdade de condições”, o fim mesmo da democracia caso “a aristocracia manufatureira que cresce debaixo de nossas vistas” nos Estados Unidos, “uma das mais agressivas que já existiram no mundo”, saia de suas fronteiras – como saiu mais tarde, para muito além de seus piores pesadelos.

Passo por alto alguns temas intrincados e fascinantes que indicam – creio – que os mais importantes princípios do liberalismo clássico encontram a sua expressão moderna natural não na “religião” neoliberal, mas nos movimentos independentes dos trabalhadores e nas idéias e práticas dos movimentos socialistas libertários, e também de algumas das maiores figuras do pensamento do século 20, como Bertrand Russell e John Dewey.

Deve-se avaliar com cautela as doutrinas que dominam o discurso intelectual, prestando cuidadosa atenção às discussões, aos fatos e às lições históricas do passado e do presente. Não tem sentido perguntar o que é “certo” para determinados países, como se fossem entidades com valores e interesses comuns. E o que pode ser certo para o povo dos Estados Unidos, com suas vantagens sem paralelo, pode ser errado em países onde o leque de opções é bem menor. É razoável supor, no entanto, que o que é certo para os povos do mundo somente por um acaso remoto há de estar de acordo com os planos dos “grandes arquitetos” das políticas governamentais. E não há hoje mais razão do que já houve um dia para permitir que eles moldem o futuro de acordo com os seus próprios interesses.

(...)

Uma versão deste artigo, traduzida para o português e o espanhol foi publicada pela primeira vez na América do Sul em 1996.




O lucro ou as pessoas - Noam Chomsky parte 1 (excertos)



(...)A historiografia econômica reconhece que a intervenção estatal desempenhou um papel crucial
no crescimento econômico. Mas seu impacto é subestimado devido a um enfoque limitado. Uma omissão importante, por exemplo, é o fato de que a revolução industrial baseou-se no algodão barato, oriundo principalmente dos Estados Unidos. E ele se manteve barato e disponível não pela ação das forças de mercado, mas graças à eliminação da população nativa e à escravidão. Havia, é claro, outros produtores, dentre os quais se destacava a Índia. Suas riquezas foram drenadas para a Inglaterra ao mesmo tempo em que sua avançada indústria têxtil foi destruída pelo protecionismo e pelo poder britânicos. O Egito também deu passos em direção ao desenvolvimento na mesma época que os Estados Unidos, mas foi bloqueado pela Inglaterra, pela razão absolutamente explícita de que a Grã Bretanha não podia tolerar nenhum desenvolvimento independente naquela região. A Nova Inglaterra, ao contrário, seguiu o caminho da pátria-mãe, barrando os têxteis britânicos mais baratos por meio de elevadas taxações, tal como a Grã-Bretanha havia feito com a Índia. Sem essas medidas, metade da emergente indústria têxtil da Nova Inglaterra teria sido destruída, segundo estimam historiadores econômicos, com amplas repercussões sobre o crescimento industrial norte-americano em geral.

Um análogo contemporâneo é a modalidade de energia que dá suporte às economias industriais avançadas. A “época de ouro” do desenvolvimento no pós-guerra baseou-se no petróleo barato e abundante, assim mantido por meio de ameaças e do uso efetivo da força. E assim continua. Boa parte do orçamento do Pentágono se destina a manter o preço do petróleo do Oriente Médio em níveis que os Estados Unidos e suas empresas de energia consideram apropriados. Conheço um único estudo técnico sobre o assunto e ele conclui dizendo que os gastos do Pentágono equivalem a um subsídio de 30 por cento sobre o preço de mercado do petróleo, demonstrando que “a idéia corrente de que o combustível fóssil é barato não passa de completa ficção”. As idéias sobre a pretensa eficiência do comércio e as conclusões sobre a saúde e o crescimento da economia possui limitada validez se ignoramos esses custos ocultos.

Um grupo de eminentes economistas japoneses publicou recentemente um estudo, em vários volumes, sobre os programas japoneses de desenvolvimento econômico desde a II Grande Guerra. Eles assinalam que o Japão rejeitou as doutrinas neoliberais de seus conselheiros norte-americanos, adotando em seu lugar uma política industrial que atribuía um papel preponderante ao Estado. Os mecanismos de mercado foram gradualmente introduzidos pela burocracia estatal e pelos conglomerados industrial financeiros à medida que cresciam as perspectivas de sucesso comercial. A rejeição dos preceitos da economia ortodoxa foi uma condição do “milagre japonês”, concluem os economistas. O êxito do país é impressionante. Virtualmente desprovido de uma base de recursos naturais, o Japão se tomou, na década de 1990, a maior economia industrial do mundo e a mais importante fonte mundial de investimento estrangeiro, além de responder por metade da poupança líquida mundial e financiar o déficit norte-americano.

Quanto às ex-colônias japonesas, um estudo altamente especializado da missão de ajuda externa dos EUA em Taiwan revelou que tanto os conselheiros norte-americanos quanto os planejadores chineses desconsideraram os princípios da “economia anglo-americana”, desenvolvendo uma “estratégia centrada no Estado”, que contou com “a ativa participação do governo nas atividades econômicas da ilha, um planejamento consciente com execução devidamente supervisionada”. Enquanto isso, funcionários do governo americano “alardeavam Taiwan como um caso bem-sucedido da iniciativa privada”.(...)


(...)A diferença entre o Leste Asiático e a América Latina é impressionante. A América Latina é campeã mundial de desigualdade social e o Leste Asiático está entre as regiões com os melhores índices. O mesmo se dá na educação, na saúde e na seguridade social. As importações da América Latina pendem fortemente para a satisfação do consumo dos ricos; na Ásia Oriental, para o investimento produtivo. A fuga de capitais atingiu, na América Latina, a escala da sua excruciante dívida externa; na Ásia Oriental, era até pouco tempo severamente controlada. Na América Latina, os ricos estão geralmente isentos de obrigações sociais, dentre elas o pagamento de impostos. O problema da América Latina não é o “populismo”, assinala o economista brasileiro Bresser Pereira, “mas a subordinação do Estado aos ricos”. A situação do Leste Asiático é muito diferente.

As economias latino-americanas também estiveram mais abertas ao investimento estrangeiro. Segundo analistas de comércio e desenvolvimento das Nações Unidas (UNCTAD), na América Latina, desde a década de 1950 as multinacionais estrangeiras “controlam uma parcela bem maior da produção industrial” do que no caso bem-sucedido do Leste Asiático. Até o Banco Mundial admite que o investimento estrangeiro e as privatizações que aclama “tenderam a substituir outros fluxos de capital” na América Latina, transferindo o controle e enviando lucros para o exterior. O Banco Mundial também reconhece que, no Japão, Coréia do Sul e Taiwan, os preços se desviaram mais dos preços de mercado do que na Índia, Brasil, México, Venezuela e outros países ditos intervencionistas, ao passo que a China, o país mais intervencionista e que mais distorce os preços de mercado, tornou-se o favorito do Banco Mundial e o que mais cresce como tomador de empréstimos. E, no caso do Chile, os estudos do Banco Mundial deixaram de mencionar que as minas de cobre nacionalizadas são a maior fonte de receitas de exportação do país, para citar apenas um exemplo.

Parece que a abertura para a economia internacional acarretou um custo significativo para a América Latina, que se soma à incapacidade de controlar o capital e os ricos, e não apenas o trabalho e os pobres. É claro que alguns setores da população saem lucrando, como no período colonial. O fato de eles serem tão devotos das doutrinas da “religião” quanto os investidores estrangeiros não deveria causar surpresa.
O papel da gestão e da iniciativa estatal nas economias bem sucedidas deveria ser uma história bem conhecida. Relacionada a essa está a questão de como o Terceiro Mundo se tornou o que é hoje.

Esse problema é discutido pelo eminente economista Paul Bairoch. Num importante estudo recente ele observa que “não resta dúvida de que o liberalismo compulsório do Terceiro Mundo no século 19 é um importante fator explicativo do atraso de sua industrialização” e, no caso bastante revelador da Índia, o “processo de desindustrialização”, que transformou o laboratório da indústria e centro de comércio do mundo numa sociedade agrícola profundamente empobrecida, que experimentou um agudo declínio dos salários reais, do consumo de alimentos e da disponibilidade de gêneros de primeira necessidade. “A Índia foi apenas a primeira de uma longa lista de vítimas” que inclui, diz Bairoch, “até mesmo países politicamente independentes do Terceiro Mundo [que] foram forçados a abrir seus mercados aos produtos ocidentais”. Enquanto isso, as sociedades ocidentais se protegiam da disciplina do mercado e prosperavam.

Noam Chomski - "O Lucro ou as Pessoas"

A metamorfose de Bachar el-Assad

por Thierry Meyssan

Após a retirada de Fidel Castro, a morte de Hugo Chavez e a interdição feita a Mahmoud Ahmadinejad de apresentar um candidato à eleição presidencial iraniana, o movimento revolucionário não tem mais líder mundial. Ou melhor já não tinha. No entanto, a incrível tenacidade e sangue-frio de Bachar el-Assad fez dele o único chefe de Estado, no mundo, que sobreviveu a um ataque concertado de uma vasta coligação colonial conduzida por Washington, e que foi amplamente reeleito pelo seu povo.

| Damasco

Bachar el-Assad não desejava entrar na política. Ele tinha-se destinado a ser oftalmologista. No entanto, aquando da morte do seu irmão Bassel ele regressou do Reino-Unido, onde prosseguia os seus estudos, e aceitou servir a sua pátria e o seu pai. À morte deste ele consentiu em suceder-lhe, para manter a unidade do país. Os seus primeiros anos de governo foram gastos numa tentativa de modificar a composição das classes sociais de modo a tornar possível um sistema democrático, que ninguém lhe exigia. Pacientemente, ele desmantelou o sistema autoritário do passado e começou a associar a população à vida pública.

Além disso, mal chegado ao poder, ele foi informado que os Estados Unidos tinham decidido destruir a Síria. Assim, a sua presidência foi, sobretudo, virada para o reforço do Exército árabe sírio, a conclusão de alianças externas, e tentativas de desarmar o complô. Desde 2005, com a comissão Mehlis, ele teve que enfrentar a oposição do mundo inteiro que o acusava do assassinato de Rafiq Hariri. Mas, foi apenas em 2011, que as potências coloniais se uniram em conjunto contra ele, pessoalmente, e contra a Síria.

Qual não foi a sua surpresa, no início dos acontecimentos, ao receber uma comissão do burgo sírio onde se tinha dado a principal manifestação e ouvir a mesma exigir- lhe, como única reivindicação, a expulsão dos alauítas da cidade. Revoltado ele pôs fim à reunião, e decidiu defender até às últimas a civilização síria da «vivência em conjunto».

Durante três anos o tímido médico transformou-se em cabo de guerra. Primeiro apoiado, quase exclusivamente, pelo seu exército, depois progressivamente envolvido pelo seu povo, ele foi eleito, em plena guerra, para um terceiro mandato por 88,7% dos sufrágios expressos, ou seja 65% do corpo eleitoral. O seu discurso de investidura mostra até que ponto ele mudou no decurso dos acontecimentos [1].

O ideal que ele aí exprimiu foi primeiro o do serviço da Pátria repúblicana. Ele bateu- se para defender aqueles homens, e aquelas mulheres, que destinavam a viver sob o castigo de uma ditadura religiosa ao serviço do imperialismo. E, por vezes, ele bateu- se por eles contra a sua vontade. Ele bateu-se por eles duvidando ser bem sucedido, preferindo morrer pela Justiça que aceitar o exílio dourado, mas vergonhoso, que lhe propunham os «Ocidentais».

Ora, pouco antes, os ditadores Zine el-Abidine Ben Ali e Hosni Moubarak tinham cedido às primeiras ordens de Washington e deixaram os seus países nas mãos dos Irmãos muçulmanos. Pior, o autocrata Hamad ben Khalifa Al Thani tinha abdicado, como uma criança dócil, ao primeiro franzir de sobrolho de Barack Obama, preferindo desfrutar a sua fortuna roubada que lutar.

Tratava-se, ao princípio, para Bachar el-Assad de resistir aos golpes do imperialismo. Mas quando se aproxima a vitória chegou-lhe o desejo de ir mais longe, de pôr em causa a desordem mundial. Ele descobriu-se como um verdadeiro líder revolucionário, exactamente como Hugo Chávez o tinha percebido, quando o mundo o tomava por um simples menino-do-paizinho (filhinho de papai-Br). E, a este título, qualquer que seja a perfídia de alguns politiqueiros, ele não pode deixar de tomar a defesa do povo palestiniano que os colonos israelitas massacram em Gaza.

A Revolução de Bachar el-Assad é primeiro uma luta(briga-Br) de libertação contra o obscurantismo religioso, que as monarquias wahabitas da Arábia Saudita e do Catar encarnam no mundo árabe. Ela pretende garantir a realização de cada um, qualquer que seja a sua religião, e afirma-se, pois, como laica, quer dizer que ela se opõe ao conformismo religioso. Ela afirma que Deus não apoia nenhuma religião em particular, mas sim a Justiça comum para todos. De facto, ela reenvia a fé em Deus para o âmbito da esfera privada, para disso fazer a fonte da força que permite a cada um lutar contra um inimigo superior, em força, e vencê-lo colectivamente.

Como todos os que atravessaram uma guerra, Bachar el-Assad não pôde admitir a ideia que os horrores cometidos o tenham sido por homens maus(ruíns-Br) colocando «os seus cravos no corpo sírio, semeando a morte e a destruição, devorando corações e fígados humanos, degolando e decapitando». Aceitá-lo teria sido perder toda a esperança na espécie humana. Assim, ele viu por trás das suas ações a influência do Diabo, manipulando-os através dos pretensamente denominados «Irmãos muçulmanos».

O nome do «Diabo» faz etimologicamente referência ao discurso dúplice que ele tem. O presidente el-Assad desmontou, pois, o slogan(eslogan-Br) de «primaveras árabes», imaginado pelo Departamento de Estado para colocar os Irmãos muçulmanos, por todo o lado, no poder no Magrebe, no Levante e no Golfo. Em todo o lado a sujeição ao imperialismo seguia as bandeiras coloniais, o da monarquia wahabita, dos Sénoussi na Líbia, o do mandato francês na Síria, ao mesmo tempo reclamando-se, paradoxalmente, da «Revolução» ao lado dos tiranos de Riade e de Doha.

A guerra foi para ele um processo pessoal longo. Ele viveu-a guiado pela sua moral: o «serviço do interesse público», o que os Romanos chamavam «a República», mas que os Britânicos consideram como uma quimera mascarando ambições autoritárias. Como Robespierre «o Incorruptível», ele compreendeu que este serviço não sofria nenhuma traição, portanto nenhuma corrupção. Seguindo o exemplo do seu pai, Hafez el-Assad, ele vive sobriamente e desconfia do luxo ostentatório de certos capitães do comércio e da indústria, mesmo que sejam das suas relações íntimas.

Ele tornou-se um líder revolucionário; o único chefe de executivo no mundo que sobreviveu a um ataque concertado de uma vasta coligação (coalizão-Br) colonial conduzida por Washington, e que foi amplamente reeleito pelo seu povo. Ao ter agido assim, ele entra na História.
Tradução
Alva
Fonte
Al-Watan (Síria)
 aqui:http://www.voltairenet.org/article184871.html

Aviões de guerra de Kiev derrubaram o avião MH71 Algumas questões a que KIEV e os EUA deveriam dar resposta

Médico norueguês voluntário em Gaza convida Obama a passar ali uma noite

quinta-feira, 17 de julho de 2014

A volta de George Orwell e a Guerra do “Grande Irmão”: Sobre Israel, Ucrânia e Verdade

por John Pilger

Outra noite, assisti a 1984, de George Orwell, apresentada num teatro em Londres. O grito de alerta de Orwell, embora em montagem divulgada como "adaptação contemporânea", apareceu-me como peça de época: remota, nada ameaçadora, quase tranquilizadora.

Foi como se Edward Snowden nada tivesse revelado; como se o "Grande Irmão" [orig. Big Brother; é personagem de 1984 que "vê tudo"] não fosse hoje um sistema gigante de vigilância digital; foi como se o próprio Orwell nunca tivesse dito que "Para ser corrompido pelo totalitarismo, não é preciso viver em país totalitário".

Aclamada pela crítica, a nova produção serve para avaliar nossos tempos culturais e políticos. Quando as luzes foram acesas, as pessoas já estavam de pé, andando para a saída. Não davam qualquer sinal de emoção, já pensando na noitada que continuaria. "Desentendi total", disse uma moça, ligando o celular.

Com as sociedades avançadas sendo despolitizadas, as mudanças são ao mesmo tempo sutis e espetaculares. No discurso diário, a linguagem política está de pés para cima, como Orwell profetizou em 1984. "Democracia" já não passa de recurso retórico. "Paz" é "guerra perpétua". "Global" é "imperial". O conceito de "reforma", do qual antes tanto se esperava, significa hoje regressão, até mesmo destruição. "Austeridade" significa impor aos pobres o capitalismo mais extremo, e doar o socialismo só aos ricos: sistema super engenhoso, segundo o qual a maioria paga as dívidas da elite.

Nas artes, hostilidade contra quem diga a verdade é artigo de fé para a burguesia. "A fase vermelha de Picasso" – diz uma manchete de Observer – e "por que política não dá boa arte". Imaginem! E, isso, num jornal que promoveu o banho de sangue no Iraque como se fosse cruzada liberal. A oposição de uma vida inteira, de Picasso, contra o fascismo, virou nota de rodapé; como o radicalismo de Orwell, completamente apagado do sucesso que se associou ao seu nome.

Há uns poucos anos, Terry Eagleton, então professor de Literatura Inglesa na Manchester University, observou que "pela primeira vez em duzentos anos, não há nenhum poeta, dramaturgo ou romancista britânico capacitado para fazer chacoalhar os pilares do modo de vida ocidental". Nenhum Shelley que fale pelos pobres, nenhum Blake que dê voz aos sonhos utópicos, nenhum Byron a detonar a corrupção da classe governante, nenhum Thomas Carlyle e John Ruskin para expor o desastre moral do capitalismo. William Morris, Oscar Wilde, HG Wells, George Bernard Shaw não têm equivalentes contemporâneos. Harold Pinter foi o último a levantar a voz. No coro insistente de consumo−feminismo, nenhuma voz responde à voz de Virginia Woolf, que denunciou "as artes de dominar outras pessoas, de mandar, de matar, de acumular terra e capital".

No National Theatre, uma nova peça, Great Britain, satiriza o escândalo da escuta clandestina de telefones que levou a julgamento e condenou jornalistas, inclusive um ex-editor do News of the World de Rupert Murdoch. Divulgada como "sátira com caninos afiados, [que] põe toda essa incestuosa cultura [midiática] no banco dos réus e a expõe sem piedade ao ridículo", a peça toma como alvos os "oficialmente engraçados" [orig. "blessedly funny" (??)] personagens da imprensa britânica de tabloides. Tudo muito bom, tudo muito bem, e mais do mesmo, e só. Mas... e que fim levou a mídia não tabloide que se autoproclama respeitabilíssima e confiabilíssima, embora seja só braço auxiliar ou de governos ou de anunciantes, e que se dedica incansavelmente a promover guerra ilegal?

O inquérito Leveson sobre escutas telefônicas ilegais tocou apenas a superfície desses indizíveis. Mas Tony Blair depunha, reclamando ao juiz que presidia a investigação, que tabloides haviam perseguido a mulher dele, quando foi interrompido por uma voz vinda das galerias. David Lawley-Wakelin, cineasta, exigiu que Blair fosse preso ali mesmo e processado por crimes de guerra. Fez-se um longo silêncio na sala: o choque da simples verdade. Até que Lord Leveson ergueu-se de um salto, ordenou que a voz da verdade fosse expulsa do tribunal e pediu desculpas ao criminoso de guerra. Lawley-Wakelin foi processado. Blair continua em liberdade.

Os cúmplices de Blair que continuam no poder são ainda mais respeitáveis que os escutadores clandestinos de telefones. Quando a apresentadora da BBC, Kirsty Wark, entrevistou Blair, no 10º aniversário de sua invasão contra o Iraque, ela deu a Blair um momento com o qual nem Blair jamais sonhara; deu-lhe oportunidade para sofrer ao vivo, em cena, lastimando-se do quanto fora "difícil" a decisão sobre o Iraque. Poderia tê-lo acusado da prática daquele crime histórico, mas só o ajudou a "explicar-se". Faz lembrar a procissão de jornalistas da BBC que, em 2003, declararam que Blair podia sentir-se "vingado"; e da série subsequente, dita "seminal", The Blair Years [Os Anos Blair], da qua lDavid Aaronovitch foi roteirista, apresentador e entrevistador. Quadro assalariado de Murdoch, que fez campanha a favor dos ataques contra Iraque, Líbia e Síria, Aaronovitch fez de Blair praticamente um herói da paz universal.

Desde a invasão do Iraque – caso exemplar de agressão internacional não provocada, crime que, para Robert Jackson, promotor de justiça no Tribunal de Nuremberg, define-se como o maior e mais grave de todos os crimes de guerra − "porque contém em si o mal de todos os demais crimes de guerra" – Blair e seu porta-voz e principal cúmplice, Alastair Campbell, ganharam vastos espaços nas páginas do The Guardian para reabilitar as respectivas reputações. Descrito como "estrela" do Labour Party, Campbell procurou ganhar a simpatia dos leitores mostrando-se deprimido; falou das próprias preocupações pessoais, mas não falou de já ter sido contratado, com Blair, para trabalharem como conselheiros dos militares neoditadores egípcios.

Com o Iraque sendo devastado, consequência da invasão inventada por Blair/Bush, manchete do The Guardian declara: "Derrubar Saddam foi ação acertada. Mas saímos de lá cedo demais". Lá estava, publicado na página, da edição de 13/6/2014, em que se lia coluna assinada por John McTernan, ex-funcionário do governo Blair, que também serviu ao ditador Iyad Allawi que a CIA instalou no Iraque. Clama por repetir a invasão a um país que seu patrão ajudou a destruir; e nem uma palavra sobre os pelo menos 700 mil mortos, além dos 4 milhões de refugiados e dos tumultos sectários, numa nação que, antes de Blair-Bush-McTernan et allii, orgulhava-se da tolerância que reinava em suas comunidades.

"Blair é corrupção e guerra encarnadas" – escreveu o colunista Seumas Milne em inspirada coluna no The Guardian. É o que o comércio da notícia chama de "equilíbrio". Dia seguinte, o jornal publicou anúncio de página inteira de um bombardeiro Stealth norte-americano. Sob a imagem ameaçadora do bombardeiro, as palavras "The F-35. GREAT For Britain" [O F-35. ÓTIMO para a Grã-Bretanha]. Essa outra encarnação [alada] "da corrupção e da guerra" custará aos contribuintes britânicos £1,3 bilhão, os modelos "F" anteriores massacraram gente em todo o mundo em desenvolvimento.

Numa vila no Afeganistão, habitada pelos mais pobres dos pobres, filmei Orifa, ajoelhada ao lado dos túmulos do marido, Gul Ahmed, tecelão de tapetes, de sete membros de sua família, inclusive seis filhos seus, e duas crianças mortas na casa ao lado. Uma bomba de "precisão" de 500 pounds (libra-peso) caiu diretamente sobre a pequena casa, de paredes de pedra, barro e palha, abrindo uma cratera de quase dois metros de largura. A empresa Lockheed Martin, que fabrica o avião, vangloria-se da precisão dos tiros, no anúncio que o The Guardian publicou.

A ex-secretária de Estado e aspirante a presidente dos EUA, Hillary Clinton, estava recentemente no programa "Hora das Mulheres" [Women's Hour] da BBC, quintessência da respeitabilidade "midiática". A apresentadora, Jenni Murray, apresentou Clinton como farol máximo da mulher realizada. Não cuidou de lembrar às suas ouvintes a profanação, a monstruosidade, que a Clinton enunciou ao mundo: que o Afeganistão foi invadido para "libertar" mulheres como Orifa. A jornalista nada perguntou à Clinton sobre a campanha pró-terrorismo comandada pelo governo dela, que usa drones para matar à distância mulheres, homens e crianças, indiscriminadamente. Nem uma palavra sobre a ameaça de que Clinton, que está em campanha eleitoral para a presidência dos EUA, pode tentar ser também "a primeira mulher" a tentar "eliminar" Iraque e Irã, e justamente ela, e mulher, que defende a vigilância ilegal em massa e prisão para os vazadores!

Mas a jornalista Murray, da BBC, perguntou, sim, a pergunta−farsa, a pergunta−espetáculo: se a Clinton perdoara Monica Lewinsky... por ter tido um caso com o marido Clinton dela. "Perdão é escolha" – respondeu la Clinton. – "Para mim, foi absolutamente a escolha certa". Fez lembrar os anos 1990s, e os anos consumidos no "escândalo Lewinsky" [que a imprensa−empresa JAMAIS chamou de "escândalo Clinton(s)" (NTs)].

Naquele momento, o presidente Bill Clinton estava invadindo o Haiti, bombardeando os Bálcãs, a África e o Iraque. Estava também matando e destruindo vidas de crianças no Iraque. A UNICEF noticiou a morte de meio milhão de crianças iraquianas com menos de cinco anos de idade, como resultado do embargo imposto pelos EUA e Grã-Bretanha.

As crianças não contam, para essa imprensa−empresa, assim como tampouco contam as vítimas de Hillary Clinton nas invasões que ela apoiou e promoveu: Afeganistão, Iraque, Iêmen, Somália, só até aqui. Todos são subpovo, ou não−povo, para esse jornalismo. Então, a jornalista Murray não falou delas e deles. Quem queira ver, encontra foto da jornalista e da entrevistada, luminosamente sorridentes, na webpage da BBC.

Na política, como no jornalismo e nas artes, parece que o "outro lado", que antigamente ainda era tolerado pela imprensa−empresa dominante, passou agora a ser tratado como pequeno grupo de extremistas pirados sem importância: uma espécie de underground metafórico.

Quando comecei a trabalhar na Rua Fleet britânica, nos anos 1960s, ainda se aceitavam críticas ao poder ocidental, apresentado como agente de saque e roubo. Leiam as reportagens justamente celebradas de James Cameron, sobre a explosão da bomba de hidrogênio no atol de Bikini; sobre a guerra bárbara dos EUA contra a Coreia; contra o bombardeio dos EUA contra o Vietnã do Norte.

A grande ilusão contemporânea é que viveríamos numa "era da informação", quando, na verdade, vivemos numa "era do jornalismo−empresa", quando já não há fato nem notícia nem informação, mas, só, incessante, propaganda & marketing de empresas e negócios: e o "jornalismo" é só, só, propaganda & marketing insidioso, contagioso, efetivo e liberal.

Em seu ensaio de 1859 "Sobre a Liberdade", de que tanto falam os liberais modernos, John Stuart Mill escreveu:

O despotismo é modo legítimo de governar se se tem de enfrentar bárbaros, desde que a meta seja fazê-los melhorar, e os meios resultam justificados se essa meta é alcançada.

"Bárbaros" eram vastas porções da humanidade dos quais se exigia "obediência implícita".

É mito simpático e conveniente, que os liberais seriam pacificadores e os conservadores seriam fazedores de guerras – escreveu em 2001 o historiador Hywel Williams − mas o imperialismo da via liberal pode ser ainda mais perigoso, porque sua natureza não conhece limites: os imperialistas liberais vivem convencidos de que o imperialismo liberal seria uma forma superior de vida.

Williams tinha em mente, então, um discurso de Blair, no qual o então primeiro-ministro prometeu "reorganizar o mundo à nossa volta" e segundo os seus [de Blair] "valores morais".
Richard Falk, autoridade respeitada em lei internacional e Relator Especial da ONU para a Palestina, falou, certa vez de uma cena

(...) de autoelogio eterno, de mão única, só com imagens positivas de valores ocidentais e de cenas de inocência ameaçada, para validar uma campanha a favor de violência política irrestrita. E [cena] que é tão amplamente aceita, que resulta virtualmente incriticável e inatacável.

Patrocínio, empregos e anúncios recompensam os jornais, jornalistas e "jornalismos". Na Rádio 4 da BBC, Razia Iqbal entrevistou Toni Morrison, a novelista afro-norte-americana e Prêmio Nobel. Morrison mostrou-se surpresa: por que as pessoas "zangam-se" com Barack Obama, presidente "tão ótimo", e que queria construir uma "economia forte e assistência médica" [orig. "who was "cool" and wished to build a "strong economy and health care"]. Morrison estava orgulhosíssima por ter falado ao telefone com seu herói, que lera um dos livros dela e convidou-a para a posse.

Nem a novelista premiada nem a jornalista mencionaram as sete guerras de Obama, incluída sua campanha terrorista dos drones, que assassinam famílias inteiras, os que venham socorrer as vítimas e também quem se ajoelhe para chorar os mortos. A única 'notícia' era que um negro letrado e excelente orador alcançara os píncaros do poder.

Em Os Condenados da Terra, Frantz Fanon escreveu que a "missão histórica" do colonizado foi servir como "correia de transmissão" a serviço dos que governavam e oprimiam. Na era moderna, usar a diferença étnica nos sistemas de poder de propaganda ocidentais passou a ser visto como essencial. Obama leva isso às alturas, embora o gabinete de George W. Bush – uma vasta claque pró-guerra – tenha sido o mais multirracial de toda a história presidencial dos EUA.

Quando a cidade iraquiana de Mosul foi tomada pelos jihadistas do ISIL, Obama disse:

O povo norte-americano fez investimentos e sacrifícios gigantescos para dar aos iraquianos a oportunidade de abraçar melhor destino.

Que mentira "tão ótima", não é mesmo?!

E o que haveria de "excelente orador" no Obama que discursou na Academia Militar de West Point naquele 28 de maio/2014? No seu discurso sobre "o estado do mundo", na cerimônia de formatura daqueles que "assumirão a liderança nos EUA" em todo o planeta... Obama disse:

Os EUA usarão força militar unilateralmente se necessário, quando nossos interesses centrais o exigirem. A opinião internacional conta, mas os EUA jamais pedirão permissão...

Obama, aí, repudiou a lei internacional e os direitos das nações independentes. O presidente dos EUA declarou a própria divindade, baseado na força da "nação indispensável". Essa é uma mensagem velha conhecida da impunidade imperial. Evocando o nascimento do fascismo nos anos 1930s, Obama disse que:

Creio no excepcionalismo dos EUA com cada fibra do meu ser.

Como escreveu o historiador Norman Pollack:

Marchadores do passo−de−ganso, com substituição pela aparentemente mais inócua militarização total da cultura. E em lugar do líder bombástico, temos o reformador fracassado, despreocupadamente em ação, planejando e executando assassinatos, e sem parar de sorrir.

Em fevereiro, os EUA montaram mais um dos seus golpes "coloridos" contra governo eleito na Ucrânia, explorando protestos genuínos contra corrupção em Kiev. A conselheira de Obama para assuntos de Segurança Nacional, Victoria Nuland, escolheu pessoalmente o líder de um "governo de transição". Trata-o com intimidade, pelo apelido "Yats". O vice-presidente Joe Biden foi a Kiev, e para lá foi também o diretor da CIA, John Brennan. A tropa de choque do golpe de que todos esses participaram eram fascistas ucranianos.

Pela primeira vez desde 1945, um partido neonazista, declaradamente antissemita, controla áreas chaves do poder do estado numa capital europeia. NENHUM líder político na Europa Ocidental condenou esse renascimento do fascismo, exatamente na fronteira pela qual as tropas nazistas de Hitler invadiram, para roubar milhões de vidas de russos. Os nazistas foram apoiados por um exército de insurgentes ucranianos [UPA] responsável pelo massacre de judeus e de russos (que chamam de "vermes"). Esse UPA é a fonte de inspiração do atual Partido Svoboda e de seu aliado, o Setor Direita (Pravy Sektor). O líder do Svoboda, Oleh Tyahnybok, exige expurgo de toda a "máfia judaico−moscovita e o resto do lixo", que inclui gays, feministas e a esquerda política.

Desde o colapso da União Soviética, os EUA cercaram a Rússia com um "colar" de bases militares, aviões e mísseis nucleares, como parte de seu Projeto Ampliação da OTAN [orig. NATO Enlargement Project]. Traindo o compromisso assumido com o presidente soviético Mikhail Gorbachev em 1990, de que a OTAN não seria expandida "nem uma polegada na direção leste", a OTAN, de fato, ocupou militarmente toda a Europa Oriental. No ex-Cáucaso Soviético, a expansão da OTAN é o maior acúmulo de força bélica numa só região, desde a IIª Guerra Mundial.

O prêmio que Washington dará ao governo golpista de Kiev é um plano de ação pró inclusão na OTAN. Em agosto, uma "Operação Tridente Rápido" [orig. Operation Rapid Trident] porá soldados dos EUA e Grã-Bretanha na fronteira entre Ucrânia e Rússia; e uma "Operação Brisa Marinha" [orig. Operation Sea Breeze] enviará navios de guerra dos EUA para pontos dos quais sejam acessíveis portos russos. Imaginem só a resposta, se tais atos de provocação e de intimidação acontecessem contra fronteiras dos EUA!

Ao aceitarem a reintegração da Crimeia à Federação Russa – que Nikita Krustchev destacou ilegalmente da Rússia em 1954 – os russos defenderam-se, exatamente como fizeram sempre por quase um século. Mais de 90% da população da Crimeia votou a favor de o território ser reintegrado à Rússia. Na Crimeia está ancora da Frota da Rússia no Mar Negro, e manter a Crimeia era questão de vida ou morte para a Marinha Russa; ganhar a Crimeia seria como maná caído do céu para a OTAN. Para grande confusão dos partidos da guerra em Washington e Kiev, Vladimir Putin retirou tropas da fronteira da Ucrânia e conclamou russos étnicos no leste da Ucrânia a abandonar o separatismo.

Em tradução orwelliana, tudo isso foi invertido e transformado em "ameaça russa" no ocidente. Hillary Clinton disse que Putin seria igual a Hitler. Sem ironia: comentaristas de direita alemães disseram exatamente a mesma coisa. Na imprensa−empresa, os neonazistas ucranianos foram desinfetados e apresentados como "nacionalistas" ou "ultranacionalistas". O que mais temem é que Putin está procurando, muito habilmente, construir solução diplomática, e pode ser bem sucedido.

Dia 27/6/2014, respondendo à mais recente acomodação oferecida por Putin – encaminhou ao Parlamento a rescisão da lei que lhe dava poder para intervir a favor dos russos étnicos – o secretário de Estado dos EUA John Kerry lançou mais um dos seus "ultimatos"! A Rússia teria de "agir imediatamente, dentro de poucas horas literalmente"... para por fim à revolta no leste da Ucrânia.

É fato que Kerry é mundialmente famoso como bufão. O objetivo importante dos tais "ultimatos" é impor à Rússia o status de pária; com isso, a imprensa−empresa passa automaticamente a suprimir todas as notícias da violência da guerra que o regime de Kiev está fazendo contra o próprio povo.

Um terço da população da Ucrânia é falante de russo e bilíngue. Há muito tempo buscam uma federação democrática que reflita a diversidade étnica da Ucrânia e seja autônoma e independente da Rússia. A maioria não é nem "separatista" nem "rebeldes", mas cidadãos que querem viver em sua própria terra e em segurança. O separatismo é reação aos ataques da Junta de Kiev contra eles, que já causaram onda de mais de 110 mil pessoas (estimativa feita pela ONU), que fogem para o outro lado da fronteira com a Rússia. Tipicamente, são mulheres e crianças traumatizadas.

Como as crianças iraquianas vítimas de sanções e do embargo, e as mulheres e meninas afegãs "libertadas" ao mesmo tempo em que aterrorizadas pelos senhores−da−guerra da CIA, esses grupos étnicos ucranianos são "não−povo" para a imprensa−empresa ocidental; os seus padecimentos, as atrocidades que se cometem contra eles são minimizadas ou suprimidas do noticiário; é como se não acontecessem. A imprensa−empresa ocidental absolutamente não informa sobre a escala do ataque, pelo regime em Kiev, contra a população. Não que jamais antes tenha acontecido.

Relendo a obra-prima de Phillip Knightley, The First Casualty: the war correspondent as hero, propagandist and mythmaker [A primeira baixa: correspondente de guerra como herói, propagandista e inventador de mitos], renovei minha admiração por Morgan Philips Price, do [jornal] Manchester Guardian, único repórter ocidental a permanecer na Rússia durante a revolução de 1917 e a reportar a verdade de uma desastrosa invasão pelos aliados ocidentais. Valente e de ideias progressistas, Philips Price foi a única voz a perturbar o que Knightley chama de "escuro silêncio" anti−Rússia em todo o ocidente.

Dia 21 de maio/2014, em Odessa, 41 russos étnicos foram queimados vivos na sede do sindicato; a polícia apenas assistiu ao crime. Há vídeos horrendos, que são prova. O líder do Setor Direita (Pravy Sektor), Dmytro Yarosh, saudou o massacre como "mais um dia luminoso em nossa história nacional". A imprensa−empresa norte-americana e britânica noticiou o crime como "trágico incidente" resultante de "confrontos" entre "nacionalistas" (são os neonazistas) e "separatistas" (gente que recolhia assinaturas para um abaixo assinado a favor de um referendo que decida sobre a federalização da Ucrânia).

O New York Times apagou do mundo todo o evento, depois de noticiar informes de propaganda a favor de políticas fascistas e antissemitas dos novos clientes−aliados de Washington. O Wall Street Journal condenou as vítimas, como únicos culpados – "Fogo mortal na Ucrânia provocado pelos rebeldes, informa Kiev". Obama congratulou-se com a Junta neonazista pela "moderação".

Dia 28 de junho/2014, o The Guardian devotou quase uma página inteira a declarações feitas pelo "presidente" do regime de Kiev, o oligarca Petro Poroshenko. Mais uma vez, prevaleceu a regra orwelliana da inversão da verdade. Não houve golpe; não houve [nem continua a haver] guerra contra minorias na Ucrânia; a culpa de tudo seria, toda, dos russos. "Queremos modernizar meu país" – disse Poroshenko. – "Queremos introduzir liberdade, democracia e valores europeus. Há quem não queira isso. Há quem não nos ame por isso".

Pelo que se lê no jornal, o jornalista do The Guardian, Luke Harding, não contestou esses "ditos". Não falou dos massacres de Odessa. Nada disse sobre os ataques por terra e ar contra bairros residenciais. Nada perguntou sobre sequestro e matança de jornalistas. Não perguntou sobre o ataque a bomba contra um jornal da oposição. Nem uma pergunta, nem quando Poroshenko falou de "livrar a Ucrânia da sujeira e dos parasitas". O inimigo são "rebeldes", "militantes", "insurgentes", "terroristas" e fantoches do Kremlin.

É como ouvir, do fundo da história, a voz dos fantasmas do Vietnã, do Chile, do Timor Leste, do sul da África, do Iraque: são as mesmas tags.

A Palestina é como um ímã para esse movimento "midiático" de enganação universal que nunca muda. Dia 11 de julho/2014, na sequência do mais recente ataque israelense com armamento norte-americano contra os habitantes de Gaza – no qual morreram 80, incluindo seis crianças de uma mesma família – o The Guardian publicou declarações de um general israelense. A manchete dizia: "Indispensável manifestação de força".

Nos anos 1970s, entrevistei Leni Riefenstahl e perguntei-lhe sobre os filmes que fez de glorificação dos nazistas. Com técnicas revolucionárias de câmera e iluminação, ela produziu uma forma de cinema, documental, que hipnotizou os alemães. Há quem diga que seu Triumph of the Will [Triunfo da Vontade] foi o que teria inventado o "fascínio" que Hitler exerceu sobre as massas. Perguntei-lhe sobre propaganda em sociedades que se imaginem superiores. Ela respondeu que as "mensagens" em seus filmes nunca dependeram de "ordem superior"; que havia um "vácuo submissivo" na população alemã. "E esse vácuo submissivo incluía a burguesia liberal letrada?" – perguntei. "Incluía todos" – disse ela, – "também a inteligência, é claro".

aqui:http://www.diarioliberdade.org/opiniom/outras-vozes/49948-a-volta-de-george-orwell-e-a-guerra-do-%E2%80%9Cgrande-irm%C3%A3o%E2%80%9D-sobre-israel,-ucr%C3%A2nia-e-verdade.html







segunda-feira, 7 de julho de 2014

Trabalho sem colectivo

por Sandra Monteiro

Desgraçadamente, a crise iniciada em 2008 já dura há tempo suficiente para a investigação científica poder disponibilizar evidência empírica reveladora das consequências de uma ideologia poderosa em acção. O neoliberalismo austeritário, em particular o exercido sobre fundo dos constrangimentos da União Europeia e do euro, tem vindo a reconfigurar de alto a baixo as sociedades que, apesar de todos os defeitos, se estruturavam a partir de valores democráticos e igualitários e dependiam, para os defender, da forma como cuidavam dos seus serviços públicos e das suas protecções sociais e laborais. Neste sentido, a transformação em curso tem um pendor totalizante, sobre toda a sociedade, mas, ao apoiar-se sobretudo numa desvalorização interna, salarial, ganha em ser observada pelo prisma do mundo do trabalho e das relações laborais.

No mês de Junho, o Observatório das Crises e das Alternativas do Centro de Estudos Sociais reuniu, no colóquio intitulado «A Transferência de Rendimentos do Trabalho para o Capital», um conjunto de investigadores que partilharam conclusões sobre a desvalorização do trabalho e sobre a perda de instrumentos na relação laboral que permitiriam contrariar essa desvalorização. Entre muitas outras informações, assustadoras mas não surpreendentes, ficou-se a saber que o peso do trabalho (por conta própria e por conta de outrem) diminuiu de 53,2% do produto interno bruto (PIB), em 2007, para 52,2% do PIB, em 2013, ao passo que o excedente de exploração (indicador que reflecte a remuneração do capital) aumentou, no mesmo período, de 27,8% para 29,7% do PIB (sendo este último valor, aliás, o mais elevado desde 1995). Estes dados, apresentados pelo economista Pedro Ramos, foram depois objecto do seguinte cálculo por parte do «Dinheiro Vivo»: a «crise tirou 3,6 mil milhões aos salários e deu 2,6 mil milhões ao capital» [1].

É certo que a narrativa de quem defende a austeridade diz que todos estes «ajustamentos» e «sacrifícios» são para «consolidar as contas do país» e «resolver o problema da dívida». Mas, passados tantos anos de chumbo, cumprir as metas orçamentais dos tratados europeus continua a ser uma miragem (ou uma tragédia incalculável, se feita, como é previsível, à custa de cortes inimagináveis no trabalho e no Estado social); e a dívida continua a crescer a um ritmo galopante e totalmente insustentável. Para que serviu e serve a crise, portanto? Justamente para concretizar esta transferência de rendimentos do trabalho para o capital, onde cada vez se acumula mais riqueza para gáudio dos grandes accionistas, a pretexto de um «estado de necessidade» que teria apenas a ver com «maus comportamentos» adoptados em Portugal, e não com as regras da arquitectura europeia e monetária.

Como bem lembrou naquela iniciativa o economista Eugénio Rosa, esta expropriação em massa dos rendimentos do trabalho resulta da actuação conjunta de políticas e mecanismos variados, desde a criação de um desemprego estrutural e de uma generalização da precariedade até à redução das remunerações nominais, ao congelamento das carreiras, ao aumento do horário e da carga de trabalho, à subida da carga fiscal e à diminuição das protecções sociais (no emprego, no desemprego, no despedimento, na pobreza, na doença, etc.). Todos estes instrumentos têm em comum o aprofundamento da assimetria de poder entre os trabalhadores e patrões, com o Estado, já não apenas a eximir-se de proteger o lado mais vulnerável, mas a ser parte activa na sua fragilização, no curto e no longo prazo.

Peça essencial deste projecto austeritário, e desde o início central à ideologia neoliberal, é o estilhaçar de todos os instrumentos socioeconómicos públicos de combate às desigualdades, substituindo-os por residuais iniciativas de natureza assistencialista e caritativa. No cerne desta concepção está a vontade de atacar as estruturas colectivas que protejam e dêem força ao lado mais fraco das relações económicas e sociais, substituindo-as por relações puramente individuais, atomizadas, idealmente sem instrumentos de intermediação e negociação (sindicais, associativos, etc.).

Neste projecto, a individualização das relações laborais enfraquece o trabalhador e, através da deterioração das suas condições de vida, prejudica a recuperação da economia, que precisa do aumento da procura interna. Mas degrada também as estruturas onde estes trabalhadores se inserem, sejam elas administrações públicas ou empresas, porque só mesmo os neoliberais acreditam que o «factor trabalho» é substituível e se molda tanto aos seus desejos como os «outros factores».

A individualização das relações de trabalho expulsa o colectivo, mas não em tudo: este continua a estar presente nos «despedimentos colectivos», na «precariedade colectiva», nos «salários de miséria colectivos», na «exploração colectiva». De facto, o neoliberalismo é uma ideologia individualista, mas isso só significa que opera no sentido de substituir os colectivos que protegiam os trabalhadores e os mais desfavorecidos por colectivos orientados para os explorar cada vez mais. A mesma «flexibilidade», que nunca esquece que o essencial é a relação de forças, está presente, por exemplo, na forma como os neoliberais criticam os poderes públicos mas nunca deixam de se servir do Estado, em benefício dos poderosos.

Tornar cada vez mais instável, individual e temporária a vida de quem vive, ou precisa de viver, do seu trabalho, tem o seu exemplo mais terrível em algo que a coligação entre o governo português e a Troika impuseram nos últimos anos para destruir as relações laborais (ou, em neoliberalês, para «tornar o mercado de trabalho flexível e competitivo »): a brutal diminuição do contratos colectivos de trabalho, tanto em número de contratos como de trabalhadores envolvidos. Como recordou a socióloga Maria da Paz Lima no mesmo colóquio, em 2008 havia em Portugal 1,9 milhões de trabalhadores abrangidos por uma convenção colectiva, enquanto em 2011 eram apenas 1,24 milhões e em 2013 já só 242 mil. E o governo prevê reduzir ainda mais o prazo de sobrevigência destes contratos. É certo, como também lembrou o especialista em direito do trabalho Jorge Leite, que desde 2003 vinham já sendo introduzidas no Código do Trabalho alterações que permitiam desvirtuar as convenções colectivas, permitindo cláusulas mais prejudiciais do que as que vigoravam na lei geral. Mas o salto para o abismo que estes números mostram não tem precedentes.

Este ataque ao trabalho – ao seu valor e às regulações que equilibravam um pouco mais uma relação muito assimétrica – é a outra face do mesmo projecto ideológico que repete os apelos à «participação cidadã» na exacta medida em que despoja os cidadãos das condições necessárias ao seu exercício. Mobilizando associações, sindicatos e outras estruturas, a negociação colectiva é um elemento fundamental de uma democracia participativa moderna. Ela faz parte dos instrumentos que encontramos nas sociedades que funcionam melhor e que tendem a ser mais igualitárias. Como os neoliberais bem sabem, a alavanca para alterar esta situação passa por um novo reequilíbrio das relações de forças. E ele terá de vir de baixo para cima, em colaboração com todas as estruturas de intermediação que estão realmente do lado dos trabalhadores, do trabalho com colectivo.

sábado 5 de Julho de 2014

Notas

[1] 21 de Junho de 2014, disponível em http://m.dinheirovivo.pt/m/article?....

aqui:http://pt.mondediplo.com/spip.php?article1002

Carta aberta sobre Cuba

quinta-feira, 3 de julho de 2014

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a Limpeza Étnica da Palestina

O Financiamento da CIA ao PS: O inicio da escravatura ao capitalismo.

Washington prepara-se para a guerra

A fruta na árvore

por VIRIATO SOROMENHO-MARQUES

Comentando a situação económica do País, um amigo empresário dizia-me: "Muitas das pequenas e médias empresas nacionais já estão falidas. Contudo, tal como a fruta que apodrece na árvore, é capaz de permanecer pendurada durante muito tempo, assim está a acontecer com uma parte do nosso tecido empresarial. Está apodrecido, mas ainda simulando existir." O apodrecimento, todavia, generaliza-se. O professor de Física da Universidade de Coimbra Carlos Fiolhais acusava, com inteira razão, a Fundação para a Ciência e Tecnologia, tutelada por Nuno Crato, de ter "ensandecido". Depois de mais um controverso processo de avaliação de mais de três centenas de centros de investigação científica (onde o discutível recurso a avaliadores externos completamente incompetentes em língua e cultura portuguesas continuou a ser o método prevalecente), soube-se que 71 ficaram privados de qualquer financiamento para os próximos cinco anos, existindo, aliás, discrepâncias no sentido da baixa generalizada, entre pontuações de avaliadores e notas finais, numa exibição de opaca arbitrariedade por parte da FCT. Em qualquer domínio para onde nos voltemos, o País está cada vez mais parecido com um holograma. Os corpos das instituições, sejam escolas, hospitais, tribunais ou Forças Armadas, transformaram-se em frágeis películas revestindo massas de tecidos cada vez mais exangues e vazias. Mas o auge da decomposição foi protagonizado pelo discurso do Presidente da República, perante o homólogo alemão, ao afirmar que "Portugal aprendeu a lição". A letal combinação do dito e da sua circunstância deveria ser considerada como um perigo para a saúde pública.

aqui:http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4005465&seccao=Viriato%20Soromenho%20Marques&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco 

Publicação em destaque

Marionetas russas

por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...