segunda-feira, 28 de julho de 2014

O lucro ou as pessoas - Noam Chomski - parte 2 (excertos)




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Mas os desvios mais importantes em relação à doutrina do livre mercado estão noutro lugar. Um dos elementos básicos da teoria do livre mercado é a proibição dos subsídios governamentais. Ao final da II Grande Guerra, porém, alguns líderes empresariais norte-americanos eram de opinião de que a economia marcharia de volta à depressão se não houvesse intervenção estatal. Insistiram também na tese de que a indústria avançada – especificamente a aeronáutica, embora a conclusão fosse mais geral “não pode existir satisfatoriamente, numa economia de ‘livre empresa’ pura, competitiva e não-subsidiada” e que “o governo é a única salvação”. Cito a grande imprensa de negócios, que também admitiu que o sistema do Pentágono era a melhor forma de transferir custos para a população. Eles compreendiam que os gastos sociais, ainda que possam desempenhar o mesmo papel estimulador, não constituem subsídio direto ao setor das grandes empresas, além de terem efeitos democratizantes e redistributivos. Os gastos militares não têm nenhum desses defeitos.

E também é fácil de vender. O Secretário da Força Aérea do governo Truman colocou a questão de maneira muito simples: “Não devemos usar a palavra subsídio; a palavra que devemos usar é garantia”. Ele assegurou que o orçamento militar “atenderia às necessidades da indústria aeronáutica”. Como conseqüência, a aviação civil é hoje o setor que lidera as exportações do país, e a gigantesca indústria de viagens e turismo, largamente baseada no transporte aéreo, é uma das mais lucrativas.

Foi, portanto, absolutamente apropriado da parte de Clinton escolher a Boeing como “modelo para as empresas de toda a América”, em sua pregação de “nova visão” do futuro do livre mercado na reunião de cúpula do Pacífico Asiático em 1993, sendo muito aclamado. Ótimo exemplo de mercado realmente existente, a aviação civil está quase toda nas mãos de duas companhias, a Boeing- McDonald e a Airbus, que devem sua existência e seu sucesso ao subsídio público em larga escala. O mesmo padrão se apresenta nas indústrias de computadores, de eletrônicos, de automação, de biotecnologia, de comunicações, na verdade em quase todos os setores dinâmicos da economia.

Não foi preciso explicar a doutrina do “capitalismo de livre mercado realmente existente” ao governo Reagan. Seus homens eram mestres na arte de exaltar ante os pobres as glórias do mercado e ao mesmo tempo ostentar com orgulho, perante o mundo dos negócios, que Reagan “havia ajudado a indústria norte-americana com mais restrições à importação do que qualquer antecessor seu nos últimos cinqüenta anos” – no que estavam sendo extremamente modestos; ele ultrapassou todos os antecessores juntos, uma vez que “conduziu a maior guinada protecionista desde a década de 1930”, observou Foreign Affairs numa resenha da década. Sem essas e outras medidas extremas de intromissão no mercado, é duvidoso que as indústrias siderúrgicas, automotivas, de máquinas, ferramentas e de semicondutores tivessem sobrevivido à concorrência japonesa ou sido capazes de tomar a dianteira em novas tecnologias, com amplas repercussões sobre toda a economia. Essa experiência ilustra uma vez mais que o “saber convencional” está “cheio de furos”, conforme assinala uma outra resenha dos anos Reagan em Foreign Affairs. Mas o saber convencional mantém seus méritos como arma ideológica para disciplinar os indefesos.

Os Estados Unidos e o Japão anunciaram, recentemente, a criação de importantes novos programas governamentais de financiamento de tecnologia avançada (aviação e semicondutores, respectivamente) para sustentar o setor industrial privado com subsídios públicos.

Para ilustrar a “teoria do livre mercado realmente existente” com uma outra dimensão nos reportaremos ao amplo estudo de Winfried Ruigrock e Rob van Tulder sobre os conglomerados transnacionais, o qual concluiu que “a posição estratégica e competitiva de praticamente todas as grandes empresas-mãe do mundo foi decisivamente influenciada por políticas governamentais e/ou barreiras comerciais” e que “pelo menos vinte das cem maiores empresas da revista Fortune em 1993 não teriam sobre vivido como empresas independentes se não fossem salvas por seus governos”, com a socialização de prejuízos ou o controle estatal direto em situações de crise. Uma delas é a Lockhead, a maior empregadora do distrito profundamente conservador de Gingrich, salva da ruína graças a vultosos empréstimos garantidos pelo governo. O mesmo estudo sublinha que a intervenção governamental, “regra e não exceção nos últimos duzentos anos..., desempenhou um papel-chave para o desenvolvimento e difusão de inovações em produtos e processos – especialmente em tecnologia aeroespacial, eletrônica, agrícola moderna, novos materiais, energia e transporte”, assim como nas telecomunicações e na informação em geral (Internet e World Wide Web são notáveis exemplos recentes) e, em épocas passadas, em produtos têxteis, siderurgia e, é claro, energia. As políticas governamentais “foram uma força avassaladora na construção da estratégia e da competitividade das maiores empresas do mundo”. Outros estudos técnicos apenas confirmam essa conclusão.

Há muito mais para ser dito sobre essa questão, mas uma conclusão parece bastante clara: as doutrinas aprovadas são construídas e aplicadas por motivos de poder e lucro. As “experiências” contemporâneas seguem um padrão conhecido ao assumirem a forma de “socialismo para os ricos” dentro de um sistema de mercantilismo empresarial global no qual o “comércio” consiste, em larga medida, de transações centralmente administradas no interior das próprias empresas, imensas instituições ligadas aos seus concorrentes por alianças estratégicas e dotadas de estruturas internas tirânicas projetadas para obstaculizar a tomada de decisões democráticas e para proteger seus donos da disciplina do mercado. Essa implacável disciplina é para ser ensinada somente aos pobres e indefesos.

Poderíamos também perguntar até que ponto a economia é realmente “global” e até que ponto pode estar sujeita ao controle popular e democrático. Em termos de comércio, fluxos financeiros e outros fatores, a economia não é hoje mais global do que em meados no século 20. Além disso, os conglomerados transnacionais se apóiam pesadamente nos subsídios públicos e nos mercados internos, e suas transações internacionais, incluindo aquelas indevidamente rotuladas como comércio, envolvem notadamente a Europa, o Japão e os Estados Unidos, onde se praticam medidas políticas sem temor de golpes militares e coisas do gênero. Há muito de novo e de significativo, mas a crença de que as coisas estão “fora do controle” não é digna de crédito, mesmo se nos ativermos aos mecanismos existentes.

Será uma lei da natureza que temos de aceitar esses mecanismos? Não, se levarmos a sério as doutrinas do liberalismo clássico. É bem conhecido o elogio da divisão do trabalho em Adam Smith, mas não a denúncia que fez dos seus efeitos desumanos, a transformação dos trabalhadores em objetos “estúpidos e ignorantes até onde é possível a uma criatura humana”, algo que deve ser evitado “em todas as sociedades desenvolvidas e civilizadas” por meio de uma ação governamental que domine a força destrutiva da “mão invisível”. Não muito divulgada também é a sua crença de que a regulação do governo “a favor dos trabalhadores é sempre justa e eqüitativa”, o mesmo não ocorrendo quando ele regula “a favor dos empregadores”. Igualmente desconhecida é a exigência de eqüidade de resultados, situada no coração de sua defesa dos mercados livres.

Outras personalidades que contribuíram para o cânone liberal clássico vão muito além. Wilhelm von Humboldt condenou o próprio trabalho assalariado: “Quando o trabalhador atua sob controle externo”, escreveu, “talvez admiremos o que ele faz, mas desprezamos o que ele é”. Alexis de Tocqueville observou que “a arte avança, o artífice retrocede”. Uma das figuras de proa do panteão liberal, Tocqueville pensava, como Smith e Jefferson, que a eqüidade de resultados é um aspecto importante de uma sociedade livre e justa. Há 160 anos, advertiu para os perigos de “uma permanente desigualdade de condições”, o fim mesmo da democracia caso “a aristocracia manufatureira que cresce debaixo de nossas vistas” nos Estados Unidos, “uma das mais agressivas que já existiram no mundo”, saia de suas fronteiras – como saiu mais tarde, para muito além de seus piores pesadelos.

Passo por alto alguns temas intrincados e fascinantes que indicam – creio – que os mais importantes princípios do liberalismo clássico encontram a sua expressão moderna natural não na “religião” neoliberal, mas nos movimentos independentes dos trabalhadores e nas idéias e práticas dos movimentos socialistas libertários, e também de algumas das maiores figuras do pensamento do século 20, como Bertrand Russell e John Dewey.

Deve-se avaliar com cautela as doutrinas que dominam o discurso intelectual, prestando cuidadosa atenção às discussões, aos fatos e às lições históricas do passado e do presente. Não tem sentido perguntar o que é “certo” para determinados países, como se fossem entidades com valores e interesses comuns. E o que pode ser certo para o povo dos Estados Unidos, com suas vantagens sem paralelo, pode ser errado em países onde o leque de opções é bem menor. É razoável supor, no entanto, que o que é certo para os povos do mundo somente por um acaso remoto há de estar de acordo com os planos dos “grandes arquitetos” das políticas governamentais. E não há hoje mais razão do que já houve um dia para permitir que eles moldem o futuro de acordo com os seus próprios interesses.

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Uma versão deste artigo, traduzida para o português e o espanhol foi publicada pela primeira vez na América do Sul em 1996.




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