sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Como a brutalidade em França continua a ser invisível


por George Galloway [*]
 
Embora utilizem coletes de alta visibilidade, os que protestam em França têm sido quase invisíveis nos chamados media "de referência", provocando também um silêncio ensurdecedor do movimento trabalhista e sindical e até mesmo da assim chamada "esquerda" no seu bojo.

Se bem que uma cabeça quebrada ou mesmo uma vidraça partida em Hong Kong ou na Venezuela muitas vezes lidere os noticiários, mais de um ano de sublevação semanal e de movimentos de massa de trabalhadores que se deparam com a extrema violência do estado francês e o seu dolorosamente liberal presidente Macron têm sido ignorados pela imprensa ocidental e pelos jornalistas da rádio e TV com estudada arrogância.

Não pode haver justificação racional para isto. Hong Kong está a quase 10.000 km da Inglaterra, Caracas a quase 8.000 km. A França está a 50 km de distância. Não é barato enviar e manter equipes de jornalistas no outro extremo da terra. Proliferam viagens baratas para Paris.

Nenhum critério noticioso poderia justificar a quase total ausência de cobertura da desordem generalizada e as multidões maciças no nosso vizinho europeu mais próximo ao longo de um ano inteiro. Na verdade, é tamanha a antipatia entre a elite inglesa e a francesa (e vice-versa) que, tomando emprestada uma palavra alemã, seria expectável que uma sensação de schadenfreude conduzisse a cobertura britânica, à velocidade máxima! Mas não houve nada disso.

Já não são só os coletes amarelos. Obviamente, o que aconteceu agora é que toda a classe trabalhadora organizada da França entrou no campo de batalha. Grandes centrais sindicais – como o moderado CFDT, bem como a militante CGT – com milhões de membros estão agora a confrontar fisicamente o poder do estado francês.

A causa imediata deste novo desenvolvimento é a "reforma" das pensões de Macron. Nos dias de hoje, reformas são coisas más, enquanto antigamente eram boas – essencialmente fazendo os trabalhadores franceses trabalharem mais por menos pensões após a aposentadoria.

Mas, tal como com os coletes amarelos – cujo casus belli original era um imposto sobre combustíveis – agora trata-se muito mais do que pensões.

A classe trabalhadora francesa está cansada da austeridade, cansada da corrupção e dos excessos de trono de pavão do presidente Macron, cansada da UE, cansada de toda a classe política. Precisamente a fórmula que levou à vitória do Brexit do nosso lado da Mancha.

Tradicionalmente, os franceses – predispostos ao longo de séculos à revolução – estão longe de serem conciliadores que se arrastam nos protestos. Por outro lado, a "polícia de choque" francesa não faz prisioneiros. Uma força irresistível depara-se com um objecto inamovível.

Mas uma coisa é a polícia agredir estudantes ou mesmo trabalhadores comuns. Outra coisa é ver a polícia com couraças a investir com toda a força – equipamento de protecção – como tem acontecido nas últimas duas semanas. Jamais se viu dois disciplinados serviços uniformizados chocarem-se um contra o outro nas ruas de Paris desde... bem, desde sempre.

A crise parece estar a fugir do controle do estado francês; o Natal poderia literalmente ter de ser cancelado. O turismo foi duramente atingido, conheço pessoalmente três casais que cancelaram férias românticas de Natal na capital francesa. As viagens aéreas, de autocarro e de comboio ameaçam parar. Ficaríamos menos surpresos ao acordar com a notícia de que a Assembleia Nacional havia sido saqueada do que Louis Bourbon ao saber do assalto à Bastilha.

Dado o desafio quase existencial que está a ser escalado contra um dos pilares gémeos da UE, pode-se começar a entender o silêncio quase universal nas capitais ocidentais – principalmente o seu medo do poder do exemplo.

Mas por que o silêncio da "esquerda"?

Em parte, é uma sensação de vergonha pelo facto de os trabalhadores franceses estarem a avançar a espécie de combate que ela nunca sonharia contemplar. Mas em parte é a ausência de liberalismo entre fileiras compactas de trabalhadores franceses. Eles rejeitaram com desprezo a política de identidade que tanto infesta o que passa como esquerda na maioria dos países ocidentais.

Não se trata de direitos dos gays, de emancipação negra, de modismos de gênero neutro. Não se trata de requerentes de asilo ou contra o racismo em defesa de imigrantes ou sobre a Bolívia ou Venezuela ou contra o triste registo colonial da França nas actuais guerras em África. Trata-se da classe trabalhadora francesa que confronta o sistema capitalista de frente e com sangue vermelho nas ruas. Trabalhadores franceses negros e (predominantemente) brancos, gays e (predominantemente) heterossexuais, homens e mulheres, que se auto-identificam apenas como trabalhadores cansados de serem roubados. Isto tudo é um tanto demasiado... proletário para aquilo que se tornou a "esquerda".

E tal como Nelson na Batalha de Copenhaga, eles levantam o telescópio até o seu olho cego e declaram: "Não vejo navios". A esquerda não vê os franceses em guerra, mas os trabalhadores franceses podem vê-los. E não é uma visão bela.
18/Dezembro/2019
 
[*] Director de cinema, escritor e orador. Foi membro do Parlamento britânico durante 30 ano. É apresentador de shows na TV e na rádio.

O original encontra-se em www.rt.com/op-ed/476161-pension-reform-protests-france/


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Nunca vi o mundo tão fragmentado!


por Andre Vltchek [*]
 
É impressionante a facilidade com que o império ocidental está a conseguir destruir os países "rebeldes" que estão no seu caminho, sem que haja resistência.

Trabalho em todos os cantos do planeta, onde "conflitos" kafkianos forem desencadeados por Washington, Londres ou Paris.

O que vejo e descrevo, não são apenas aqueles horrores que estão a acontecer à minha volta; horrores que estão a arruinar vidas humanas, a destruir aldeias, cidades e países inteiros. O que tento perceber é que, nas telas da televisão e nas páginas dos jornais e da Internet, os crimes monstruosos contra a Humanidade são descritos até certo ponto, mas as informações são distorcidas e manipuladas de tal forma que os leitores e os espectadores de todas as partes do mundo, acabam por não saber quase nada sobre o seu próprio sofrimento e/ou o sofrimento dos outros.

Por exemplo, em 2015 e em 2019, tentei reunir-me e argumentar com manifestantes de Hong Kong. Foi uma experiência verdadeiramente reveladora! Eles não sabiam nada, absolutamente nada sobre os crimes que o Ocidente cometeu em lugares como o Afeganistão, Síria ou Líbia. Quando tentei explicar-lhes quantas democracias latino-americanas Washington havia derrubado, pensaram que eu era um lunático. Como é que o Ocidente, bom, terno e "democrático", tinha matado milhões de pessoas e mergulhado continentes inteiros em sangue? Não foi o que nos ensinaram nas universidades. Não foi o que a BBC, a CNN ou mesmo o que o China Morning Post disseram e escreveram.

Olhem, estou a falar a sério. Mostrei-lhes fotografias do Afeganistão e da Síria; fotos armazenadas no meu telefone. Eles deviam ter de compreender que era algo genuíno, em primeira mão. Ainda assim, eles observavam, mas os seus cérebros não eram capazes de processar o que lhes estava a ser mostrado. Imagens e palavras; essas pessoas estavam condicionadas a não compreender certos tipos de informações.

Mas isto não está a acontecer só em Hong Kong, uma antiga colónia britânica.

Talvez considerem difícil de acreditar, mas mesmo num país comunista como o Vietname; um país orgulhoso, um país que sofreu enormemente com o colonialismo francês e o imperialismo louco e brutal dos EUA, as pessoas com quem me relacionei (e morei em Hanói durante dois anos) não sabiam quase nada sobre os crimes horríveis cometidos pelos EUA e pelos seus aliados durante a chamada "Guerra Secreta" contra os pobres e indefesos habitantes do país vizinho, o Laos; crimes que incluíam o bombardeio de camponeses e búfalos de água, dia e noite, por bombardeiros estratégicos B-52. E no Laos, onde fiz uma reportagem sobre os trabalhos de desminagem, as pessoas não sabiam nada sobre as mesmas monstruosidades que o Ocidente tinha cometido no Camboja; onde haviam assassinado centenas de milhares de pessoas através de atentados à bomba e desalojado milhões de camponeses das suas casas, provocando a fome e abrindo as portas para o domínio do Khmer Vermelho.

Quando falo dessa falta de conhecimento chocante no Vietname, sobre a região e sobre o que esse povo foi forçado a suportar, não falo apenas de vendedores ou de fabricantes de vestuário. Aplica-se a intelectuais, artistas, professores vietnamitas. É uma amnésia total e surgiu com a chamada 'abertura' para o mundo, o que significa com o consumo da comunicação mediática ocidental e, mais tarde, com a infiltração das redes sociais.

Pelo menos, o Vietname partilha fronteiras com o Laos e o Camboja, além de uma história turbulenta.

Mas imaginem dois grandes países só com fronteiras marítimas, como as Filipinas e a Indonésia. Alguns moradores de Manilha que conheci, pensavam que a Indonésia se situava na Europa.

Agora, adivinhem, quantos indonésios têm conhecimento dos massacres que os Estados Unidos efectuaram nas Filipinas há um século, ou como as pessoas nas Filipinas foram doutrinadas pela propaganda ocidental sobre todo o Sudeste Asiático? Ou quantos filipinos têm conhecimento do golpe militar de 1965, desencadeado pelos EUA, que depôs o Presidente Sukarno, matando entre 2 a 3 milhões de intelectuais, professores, comunistas e sindicalistas na "vizinha" Indonésia?

Consultem as secções estrangeiras dos jornais indonésios ou filipinos e o que verão? As mesmas notícias da Reuters, AP, AFP. De facto, também verão os mesmos relatórios nas agências de notícias do Quénia, da Índia, do Uganda, do Bangladesh, dos Emirados Árabes Unidos, do Brasil, da Guatemala e a lista continua. Este esquema foi planeado para produzir um único resultado: a fragmentação completa!


A fragmentação do mundo é incrível e está a aumentar com o passar do tempo. Aqueles que esperavam que a Internet melhorasse a situação, pensaram erradamente.

Com a falta de conhecimento, a solidariedade também desapareceu.

Neste momento, em todo o mundo, decorrem tumultos e revoluções. Estou a noticiar as mais significativas; no Médio Oriente, na América Latina e em Hong Kong.

Deixem-me ser franco: não há absolutamente nenhuma percepção no Líbano sobre o que está a acontecer em Hong Kong, ou na Bolívia, no Chile ou na Colômbia.

A propaganda ocidental joga tudo no mesmo saco.

Em Hong Kong, os manifestantes doutrinados pelo Ocidente são apresentados como "manifestantes pró-democracia". Eles matam, queimam, espancam pessoas, mas ainda são os favoritos do Ocidente. Porque estão a antagonizar a República Popular da China, considerada agora, o maior inimigo de Washington. E porque esses manifestantes foram criados e apoiados pelo Ocidente.

Na Bolívia, o Presidente anti-imperialista foi derrubado por um golpe orquestrado por Washington, mas a maioria da população indígena, que exige o seu regresso, é citada como um bando de arruaceiros.

No Líbano, assim como no Iraque, os amotinados são tratados gentilmente pela Europa e pelos Estados Unidos, principalmente porque o Ocidente espera que o Hezbollah pró-iraniano e outros grupos e partidos xiitas, possam vir a ser enfraquecidos pelos protestos.

A revolução, visivelmente anti-capitalista e anti-neoliberal no Chile, bem como os protestos legítimos na Colômbia, são relatados como uma espécie de combinação de explosão de queixas genuínas e hooliganismo e saques. Mike Pompeo alertou, recentemente, que os Estados Unidos apoiarão os governos de direita da América do Sul, na tentativa de manter a ordem.

Todas essas reportagens são um absurdo. De facto, têm um único objectivo: confundir os espectadores e os leitores. A fim de assegurar que eles não saibam nada ou que percebam muito pouco. E que, no final do dia, aterrem nos sofás com suspiros profundos, exclamando: "Oh, o mundo está um caos!"



Também conduz à tremenda fragmentação dos países em cada continente e em todo o hemisfério sul do globo.

Os países asiáticos conhecem muito pouco uns dos outros. O mesmo acontece com a África e com o Médio Oriente. Na América Latina, são a Rússia, a China e o Irão que estão, literalmente, a salvar a vida da Venezuela. Os outros países latino-americanos, com a excepção brilhante de Cuba, não fazem nada para ajudar. Todas as revoluções latino-americanas estão fragmentadas. Todos os golpes produzidos pelos EUA, basicamente, não têm oposição.

A mesma situação está a acontecer em todo o Médio Oriente e na Ásia. Não há brigadas internacionalistas que defendam os países destruídos pelo Ocidente. O grande predador vem e ataca a sua presa. É uma visão horrível, como um país morre perante o mundo, em terrível agonia. Ninguém interfere. As pessoas apenas vêem.

Um após o outro, os países estão a render-se.

Não é assim que, no século XXI, os Estados devem comportar-se. Esta é a lei da atracção da selva. Quando eu morava em África, fazia documentários no Quénia, no Ruanda e no Congo, conduzindo através do deserto; era assim que os animais se comportavam, não as pessoas. Os grandes felinos a encontrarem a sua vítima. Uma zebra ou uma gazela. E a caça começava: uma ocorrência terrível. Depois, a morte lenta – comendo a vítima viva.

Muito semelhante à designada Doutrina Monroe

O Império tem de matar. Periodicamente. Com regularidade previsível.

E ninguém faz nada. O mundo está a assistir. Fingindo que nada de extraordinário está a acontecer.

Perguntem a si mesmos: A revolução legítima pode ser bem sucedida em tais condições? Qualquer governo socialista eleito democraticamente poderá sobreviver? Ou tudo que é decente, esperançoso e optimista acaba sempre vítima de um império degenerado, brutal e vulgar?

Se for esse caso, qual é o sentido de seguir regras? Obviamente, as regras estão podres. Existem só para manter o status quo. Protegem os colonizadores e castigam as vítimas das rebeliões.

Mas não é este assunto que eu queria discutir aqui, hoje.

O que quero dizer é que as vítimas estão divididas. Sabem muito pouco umas das outras. As lutas pela verdadeira liberdade estão fragmentadas. Aqueles que lutam e sangram, mas que mesmo assim lutam, muitas vezes são hostilizados pelos seus companheiros que são mártires menos ousados.

Eu nunca vi o mundo tão dividido. Afinal, o Império está a vencer?

Sim e não.

A Rússia, a China, o Irão, a Venezuela – já acordaram. Ergueram-se. Estão a adquirir conhecimento sobre os outros, uns com os outros.

Sem solidariedade, não pode haver vitória.

Sem conhecimento, não pode haver solidariedade.

Nitidamente, a coragem intelectual vem agora da Ásia, do "Oriente". Para mudar o mundo, a comunicação mediática de destaque ocidental precisa de ser marginalizada, confrontada. Todos os conceitos ocidentais, incluindo a "democracia", a "paz" e os "direitos humanos" devem ser questionados e redefinidos.

E naturalmente, o conhecimento.

Precisamos de um mundo novo, não de um mundo melhorado.

O mundo não precisa de Londres, Nova York e Paris para ensiná-lo sobre si mesmo.

A fragmentação tem de terminar. As nações precisam de aprender, directamente, umas sobre as outras. Se o fizerem, dentro em breve, as verdadeiras revoluções serão bem sucedidas, enquanto os tumultos e as falsas revoluções coloridas, como as de Hong Kong, da Bolívia e de todo o Médio Oriente, serão confrontadas regionalmente e impedidas de arruinar milhões de vidas humanas.

 
[*] Filósofo, romancista, cineasta e jornalista investigativo. É o criador de Vltchek's World in Word and Images . Escreve especialmente para a revista online New Eastern Outlook .

O original encontra-se em journal-neo.org/2019/12/10/i-never-saw-a-world-so-fragmented/ e a versão em português em nowarnonato.blogspot.com/2019/12/pt-andre-vltchek-nunca-vi-o-mundo-tao.html . Tradução de Maria Luísa de Vasconcellos,   luisavasconcellos2012@gmail.com


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

"A revolução (real) nos assuntos militares" – Novo livro de Andrei Martyanov


por The Saker 
 
. No ano passado resenhei o livro de Andrei Martyanov [*] " Losing Military Supremacy: the Myopia of American Strategic Planning " na Unz Review . Naquele livro, Martyanov explicou porque a era das vitórias fáceis dos EUA sobre países quase indefesos estava acabada e o que isso significava para os planeadores das forças dos EUA. Este ano, é com imenso prazer que faço a resenha do seu último livro " The (real) Revolution in Military Affairs " ("A revolução (real) nos assuntos militares"). Deixem-me dizer de imediato que não é preciso ler o primeiro livro para aproveitar muito o segundo, mas ainda penso que a melhor combinação para obter um quadro completo seria ler ambos os livros na ordem em que foram publicados. Mas hoje vou rever apenas o segundo livro.

Primeiro, desmascarar as muitas ficções da ciência política nos EUA

Martyanov começa seu livro desmascarando a chamada "armadilha de Tucídides", a qual a revista Foreign Policy resumiu assim: " Quando uma grande potência ameaça deslocar outra, o resultado é quase sempre a guerra – mas não tem de ser assim" (com uma ênfase clara na primeira parte do subtítulo). Martyanov classifica correctamente este cliché (tipicamente de "geeks da ciência política") como muito perigoso e enganoso. Ele a seguir continua a desmascarar uma lista de clichés da ciência política dos EUA, incluindo o mais recente, o da chamada "guerra híbrida". Ele fala de "confusão desnecessária e pseudo-escolástica" e acrescenta que a actual "redoma dos think tank ocidentais" está "totalmente despreparada" para as realidades da guerra moderna. Como alguém que trabalhou (durante meus anos de faculdade) em vários think tanks dos EUA em Washington DC, só posso concordar. Também sei que a maioria dos think tanks escreverá qualquer coisa, não importa quão falsa, apenas para garantir mais financiamento (até tive um colega que trabalhou em think tanks "respeitáveis" que ria das asneiras que escreviam só para obterem mais financiamento).

Além disso, na maioria dos países da Europa Ocidental, o que os think tanks americanos escrevem é considerado como um evangelho, inclusive por pessoas em posições importantes nos serviços militares e de inteligência. Assim, quando o mais recente boato falso (canard) dos EUA sai cá para fora, digamos "guerra híbrida", todo a gente na Europa sente-se obrigada a utilizar tal expressão para parecer semi-educado em assuntos militares. O que eu também já vi por mim próprio, muitas vezes.

Tese-chave: os líderes ocidentais, especialmente os decisores dos EUA, estão fora de contacto com a realidade

Segundo Martyanov, os líderes políticos ocidentais estão a viver numa pseudo-realidade completamente ilusória que não tem qualquer conexão com o mundo real. Eu recordaria aos que acusarão Martyanov de ser demasiado severo na sua crítica que Karl Rove, o super-guru político dos EUA, admitiu candidamente que "agora somos um império e, quando agimos, criamos nossa própria realidade. E enquanto você estuda essa realidade – criteriosamente, como quiser –, actuaremos outra vez, criando outras novas realidades, as quais você também pode estudar, e é assim que as coisas decorrerão. Nós somos actores da história ... e vocês, todos vocês, serão relegados apenas a estudar o que fazemos".

Seria possível dizer que todo o esforço de Martyanov visa um objectivo específico: despertar aqueles americanos que ainda se importam e que ainda têm um resto de inteligência crítica, apresentando-lhes a realidade da guerra moderna no século XXI, inclusive contra adversários quase iguais, iguais e até superiores (em 2019 este seria apenas a Rússia, mas isto também está a mudar muito, muito rapidamente, e a China tem feito um imenso progresso nas suas capacidades militares).

Ele começa por mostrar porque os modelos de ciência política, os quais pretendem avaliar o poder agregado global de uma sociedade, os EUA, são profundamente falhos e dão aos políticos e ao público ocidentais um sentimento completamente erróneo de confiança, poder e segurança. A seguir passa a contrastar estes modelos com algo que eu não ouvia desde meus anos de faculdade: as chamadas "Leis de Osipov-Lanchester" (bem, como eu estava numa faculdade nos EUA, chamávamos isso apenas de "equações de Lanchester" porque aqui quase nunca se mencionam autores ou cientistas não ocidentais). Não vou resumir agora a natureza destas equações, pois a Wikipedia fez um trabalho decente aqui , mas mencionarei que nas nossas aulas de planeamento de forças militares usávamos estas (e outras) equações para criar todo tipo de modelos numéricos para desgastes, movimentos frontais e mesmo intercâmbios nucleares entre superpotências (as quais, é claro, não usavam directamente as equações de Osipov-Lanchester do início do século XX, mas utilizavam equações modernas que foram desenvolvidas pela comunidade de planeamento de forças dos EUA, as quais eram pelo menos inspiradas pelo tipo de metodologia utilizada por Osipov e Lanchester).

Permitam-me tranquilizar de imediato os leitores avessos à matemática: os escritos de Martyanov não arrastam o leitor através de equações complicadas, ele apenas usa uma versão simplificada destas equações de Osipov-Lanchester para mostrar que a guerra moderna é uma ciência que exige um mínimo de perícia técnica/tecnológica para entender e que realmente nada tem a ver com palavras da moda sem sentido da ciência política e conceitos exagerados como "A2/AD" ou "guerra híbrida", "guerra centrada em rede" ou mesmo "Revolução nos Assuntos Militares". A verdade é que nenhum destes conceitos é novo. Eles existem há décadas e são todos os chavões cuja função principal é fazer uma pessoa despistada parecer "bem versada na terminologia complexa da ciência política moderna" ou algum outro objectivo igualmente insípido, como convencer políticos despistados a gastarem mais dinheiro em "defesa", possibilitando assim aos proponentes desta espécie de tolice da ciência política encherem seus bolsos com dinheiro ganho com facilidade.

A seguir, um curso rápido de guerra moderna para principiantes

O resto do livro é o que eu chamaria de um "curso rápido de guerra moderna para principiantes": Martyanov faz um trabalho absolutamente soberbo ao explicar algumas (não todas, é claro!) características da guerra moderna a um leitor que se supõe ser apenas um amador curioso cujo intelecto pode ser persuadido por argumentos lógicos e baseados em factos (em oposição à arrogância ilusória e imperial e à sensação de bem-estar de tremular a bandeira e a auto-adoração). Como matéria de facto, o livro de Martyanov poderia ser uma "introdução à análise militar" ideal ou um curso de "planeamento de forças militares para principiantes".

Martyanov mostra-se profundamente frustrado com a ignorância deliberada exibida por muitos académicos, políticos e outras pessoas dos EUA e atribui a culpa ao sistema educacional dos EUA. Este, segundo Martyanov, ensina teorias sem sentido que são não só inúteis, mas na verdade auto-enganosas e absolutamente perigosas. Fazendo justiça às faculdades e academias dos EUA, penso que Martyanov é um tanto injusto: apesar de ser verdade que a maioria das escolas de "ciência política" e outras de "estudos de conflitos e paz" ensinarem principalmente tolices, existem outras faculdades e academias nos EUA – civis e militares – que, pelo menos nas décadas de 80 e 90 – ensinavam análises e planeamento de forças militares reais. Aqueles cursos eram tipicamente ministrados por professores adjuntos retirado de pessoal militar que davam aulas à noite enquanto ainda trabalhavam nas suas posições regulares no Departamento de Defesa. Além disso, muitos estudantes tinham uma patente militar (geralmente Primeiros Tenentes e Capitães). Não sei até que ponto são boas as escolas agora, mas nas décadas de 1980 a 1990 algumas destas escolas possuíam currículos excelentes, "pesados" em análise técnica e modelação por computador. Também posso dizer que a maior parte dos oficiais americanos com os quais estudei eram especialistas muito competentes e homens honrados, todos agudamente conscientes de que ser oficial das forças armadas de uma superpotência impunha-lhes um duplo fardo: o de proteger o seu país pela dissuasão, mas também evitar um conflito a quase qualquer custo, porque esta é a única maneira de realmente proteger o seu país!

A propósito, naquele tempo, um oficial sénior do Office of Net Assessment do Departamento de Defesa disse-nos abertamente: " nenhum presidente dos EUA alguma vez sacrificará Boston ou Chicago por causa de Berlim ou Paris; mas nunca admitiremos isso publicamente". Na minha experiência, os oficiais da Guerra Fria dos EUA eram muito competentes, cautelosos e conscientes da imensa responsabilidade colocada sobre seus ombros. Além disso, direi o seguinte: durante a Guerra Fria, tanto a URSS quanto os EUA actuavam com responsabilidade, mesmo durante grandes crises. Finalmente, apesar da ideia (natimorta) de Reagan da "Guerra nas Estrelas", também conhecida como "SDI" – nunca conheci um único oficial dos EUA que acreditasse, mesmo por um segundo, que os EUA pudessem travar um segundo ataque de retaliação soviético (muito menos o primeiro!).

Durante a Guerra Fria – a dissuasão funcionou e os dois lados jogavam pelo mesmo livro de regras. Este não é mais o caso e isto é muito assustador.

Da mesma forma, a postura oficial da US Navy era que precisava de 600 navios para "avançar" e "levar a guerra aos soviéticos" (atingindo, por exemplo, a Península de Kola). No entanto, todos os oficiais da USN que conheci e que serviram em porta-aviões americanos nos disseram que tudo isso era propaganda e que, devido à ameaça "extrema" de mísseis dos ursos soviéticos, contra-ataques e submarinos com mísseis nucleares (SSGNs) da classe Oscar, a marinha recuaria imediatamente para o sul do chamado GIUK Gap . Lembre-se de que isso foi muito antes do advento dos mísseis anti-navio hipersônicos de longo alcance!

Naquela época (final dos anos 80), o que eu via normalmente nas escolas orientadas para militares dos EUA eram especialistas militares muito competentes que na verdade se prestavam à retórica (lip-service) obrigatória da propaganda oficial, mas que nunca, nem por um segundo, levavam a sério toda aquela palermice. Nenhum. Quanto aos sujeitos que esses especialistas militares tipicamente chamavam de "geeks da ciência política" – ninguém os levava a sério e havia uma grande aversão entre departamentos de ciência política e as escolas de "estudos de segurança" ou de "estudos de segurança nacional" (muitos proto-neocons entre estes sabichões da ciência política, a propósito).

Será que isto ainda é verdade hoje? Não sei, mas meu medo é que os Neocons tenham estripado o Departamento de Defesa dos seus especialistas mais competentes, deixando apenas "generais políticos" (palhaços realmente políticos à la General "Betrayus" a quem o almirante Fallon chamou abertamente de "Beija cu covarde"). E, francamente, o rumor (bastante crível) de que o general Jim Mattis, também conhecido como "Maddog", era a voz (solitária) da razão na Primavera de 2017 paredes meias com o Gabinete Neocon de Trump, é absolutamente assustador. Especialmente porque acabaram por mostrar a porta a Mattis…

Mas a realidade pode ser ainda pior.

O que acontece quando o "terceiro A" desaparece

Durante um desses cursos, não me lembro qual, recordo de um oficial nos dizer que o processo de inteligência pode ser resumido pelo que ele chamou de "três As": aquisição, análise e aceitação. O primeiro 'a' é simplesmente obter os dados brutos por qualquer meio, técnico ou "humano". O 'a' seguinte é a análise dos dados obtidos por gente especializada que supostamente seriam peritos em analisar e avaliar tais dados e sua fonte e, em seguida, redigir um resumo legível a ser apresentado aos tomadores de decisão. O terceiro 'a' é simplesmente a aceitação, ou a falta dela, pelos tomadores de decisão dos relatórios apresentados. A julgar pelo tipo de linguagem agora usado por quase todos os políticos dos EUA (excepto Ron Paul e Tulsi Gabbard e talvez muito poucos outros), o processo de inteligência nos EUA parece estar completamente rompido, se no nível do primeiro, segundo ou terceiro 'a' faz muito pouca diferença. Por quê?

Porque falar a verdade acerca da guerra moderna ou acerca do estado sombrio das forças armadas dos EUA é um "assassino de carreira" instantâneo no moderno contexto político dos EUA. Quem rompe esse tabu está instantaneamente a destruir a sua perspectiva de ser ouvido, quanto mais de ser prestada atenção. Na cultura política moderna, a resposta automática a qualquer "crime de pensamento" é uma combinação típica de acusação de "antiamericanismo" ou "falta de patriotismo" ou alguma outra acusação ad hominem que habilmente evita qualquer discussão sobre a realidade real do tópico discutido. Assim, deixem-me abordar essa atitude frontalmente e declarar o seguinte:

Acredito fortemente que qualquer americano que ame seu país deve ler cuidadosamente AMBOS os livros de Martyanov !

Além disso, longe de serem antiamericanos, os livros de Martyanov representam um esforço hercúleo para tentar despertar o público americano da sua coma sobre a realidade da guerra moderna e mostrar que uma continuação da ilusória arrogância imperial que é tão generalizada no discurso da política americana poderia levar a um desastre absoluto: uma guerra em plena escala entre a Rússia e os EUA, a China e os EUA ou, pior ainda, a Rússia e a China contra os EUA. E é uma guerra que, pela primeira vez na história, devastará o continente americano tanto com armas convencionais como nucleares.

Por fim, se você nunca conseguiu entender as novas armas russas anunciadas por Putin no seu discurso agora famoso, também pode pensar no livro de Martyanov como um guia de estudo para civis curiosos, no qual ele explicará não apenas o que essas armas podem fazer mas o que sua introdução nas forças armadas russas realmente significa para os EUA.

Com este livro, você obterá seu terceiro 'a'

O maior benefício dos dois livros de Martyanov é que dão ao leitor todos os três As: Será apresentado aos dados "concretos" do mundo real acerca dos novos sistemas e tácticas de armas do século XXI. A seguir, Martyanov apresenta a uma análise simples, mas extremamente convincente, do significado de todos esses dados. Finalmente, Martyanov explica por que tudo isso é crucial para todos os cidadãos dos EUA que desejam que seu país seja pacífico e próspero. Assim, só posso repetir que considero ambos os livros de Martyanov uma leitura obrigatória para qualquer membro da Comunidade Saker ou para qualquer pessoa que queira entender a verdadeira natureza da actual Revolução nos Assuntos Militares que se desenrola diante dos nossos olhos.

O livro é muito bem escrito e bastante curto (193 páginas). Meu único lamento é o índice muito fraco no final (um livro tão seminal como este deveria realmente ter um índice completo).

Trata-se de uma óptima leitura e insto todos a que obtenham um exemplar deste livro. 

Martyanov em resistir.info:
  • A supremacia militar perdida dos EUA , Jorge Figueiredo
  • A perda da supremacia militar e a miopia do planeamento estratégico dos EUA (I) , Daniel Vaz de Carvalho
  • A perda da supremacia militar e a miopia do planeamento estratégico dos EUA (II) , Daniel Vaz de Carvalho
  • Como Putin virou o jogo: a paz através força , Andrei Martyanov
  • O gato e o cozinheiro , Andrei Martyanov

  • As implicações dos novos sistemas de armas da Rússia , Andrei Martyanov

    [*] Andrei Martyanov: Perito em questões militares e navais. Nasceu em Baku, URSS, em 1963. Formou-se na Academia Naval Bandeira Vermelha de Kirov e serviu como oficial em navios e em posições de staff da Guarda Costeira Soviética até 1990. Participou dos eventos no Cáucaso que levaram ao colapso da União Soviética. Em meados dos anos 90, mudou-se para os Estados Unidos, onde actualmente trabalha como Director de Laboratório num grupo aeroespacial comercial. Colabora frequentemente no US Naval Institute Blog dos EUA. Também escreve em Reminiscence of the Future…

    O original encontra-se em thesaker.is/...


    Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
  • Publicação em destaque

    Marionetas russas

    por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...