domingo, 31 de maio de 2015

O Califado desejado pelos Estados Unidos

por Manlio Dinucci

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Enquanto o Estado Islâmico ocupa Ramadi, a segunda cidade do Iraque, e no dia seguinte Palmira, na região central da Síria, assassinando milhares de civis e obrigando dezenas de milhares à fuga, a Casa Branca declara: “Não podemos arrancar os cabelos toda vez que surge uma dificuldade na campanha contra o Isis”.

A campanha militar “Inherent Resolve” foi lançada no Iraque e na Síria há nove meses, em 8 de agosto de 2014, pelos EUA e seus aliados: França, Reino Unido, Canadá, Austrália, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e outros. Se tivessem usado os seus caças-bombardeiros como fizeram contra a Líbia, em 2011, as forças do Isis, movendo-se em espaços abertos, seriam alvo fácil. No entanto, elas foram capazes de atacar Ramadi com colunas de carros blindados cheios de homens e explosivos.

Os Estados Unidos se tornaram militarmente impotentes? Não. Se o Isis está avançando no Iraque e na Síria, é porque é exatamente isto o que querem em Washington. Confirma isto um documento oficial da Agência de Inteligência do Pentágono, datado de 12 de agosto de 2012, desarquivado em 18 de maio de 2015 por iniciativa do grupo conservador “Judicial Watch” em meio à corrida presidencial [1]. O documento informa que “os países ocidentais, os Estados do Golfo e a Turquia apoiam na Síria as forças de oposição que tentam controlar as áreas orientais, adjacentes às províncias iraquianas ocidentais”, ajudando-as a “criar refúgios seguros sob proteção internacional”.

Existe a “possibilidade de estabelecer um principado salafita na Síria oriental, e isto é exatamente o que desejam as potências que apoiam a oposição, para isolar o regime sírio, retaguarda estratégica da expansão xiita (Iraque e Irã)”. O documento de 2012 confirma que o Isis, cujos primeiros núcleos vêm da guerra na Líbia, foi formado na Síria, recrutando sobretudo militantes salafitas e sunitas que, financiados pela Arábia Saudita e outras monarquias, foram armados através de uma rede da CIA [2]. Isto explica o encontro em maio de 2013 (documentado fotograficamente) entre o senador estadunidense John McCain, em missão na Síria por conta da Casa Branca, e Ibrahim al-Badri, o “califa” chefe do Isis [3].

Explica também por que o Isis desencadeou a ofensiva no Iraque no momento em que o governo do xiita Al-Maliki tomava distância de Washington, aproximando-se de Pequim e Moscou. Washington, descarregando a responsabilidade pela queda de Ramadi sobre o exército iraquiano, anuncia agora que quer acelerar no Iraque o adestramento e o armamento das “tribos sunitas”.

O Iraque está caminhando no mesmo rumo que a Iugoslávia, para a desagregação, comenta o ex-secretário da Defesa, Robert Gates. O mesmo ocorre na Síria, onde os EUA e seus aliados continuam a adestrar e armar milicianos para derrubar o governo de Damasco. Com a política de “dividir para dominar”, Washington continua assim a alimentar a guerra que, em 25 anos, provocou tragédia, êxodo, pobreza, tanto que muitos jovens transformaram as armas em sua profissão.

Um terreno social onde as potências ocidentais fazem sua presa as monarquias a elas aliadas, os “califas”, que instrumentalizam o Islã e a divisão entre sunitas e xiitas. Uma frente da guerra, em cujo interior existem divergências táticas (por exemplo, sobre quando e como atacar o Irã), mas não divergências estratégicas. Frente de guerra armada pelos EUA, que anunciam a venda (por 4 bilhões de dólares) à Arábia Saudita de outros 19 helicópteros para a guerra no Iêmen, e a Israel de mais 7.400 mísseis e bombas, entre os quais os anti-bunker para atacar o Irã.
 
Tradução
José Reinaldo Carvalho
Editor do site Vermelho
Fonte
Il Manifesto (Itália)

aqui:http://www.voltairenet.org/article187732.html

sábado, 30 de maio de 2015

Muita força para pouco dinheiro?



Sente-se cansado, triste, isolado e fraco? Então é possível que sofra do síndroma PS-PSD, uma doença crónica que causa fadiga extrema, mais horas de trabalho, menos horas de lazer e violentas reduções salariais.

Se sente algum destes sintomas, é possível que viva cada vez pior e sofra alucinações em que o governo lhe diz que tudo está melhor. Outros sintomas comuns incluem perdões fiscais à banca, benesses para os grandes grupos económicos e sensações de impotência política.

Em qualquer um destes casos, é extremamente importante que pare imediatamente de votar PS e PSD, com ou sem CDS-PP. Existe cura para a exploração e para o empobrecimento e a luta dos trabalhadores portugueses é o tratamento indicado para governos que apenas servem os interesses dos mais ricos.

O tratamento inclui a renegociação da dívida, o aumento da carga fiscal sobre os mais ricos, a nacionalização a banca e dos sectores-chave da economia, bem como a reposição de todos os direitos roubados. Caso considere que não há nada a fazer, que isto é mesmo assim, ou que os partidos são todos a mesma merda, é possível que tenha desenvolvido preconceitos rotativistas e esteja viciado em PS-PSD, pelo deverá consultar urgentemente os militantes da CDU, que lhe poderão explicar as alternativas para além da alternância. Não se deixe vencer pelo síndrome PS-PSD.

PS, PSD e CDS-PP têm os 1% mais ricos do lado deles, os outros 99% têm a CDU: dia 6, todos à marcha. 
 
aqui:http://manifesto74.blogspot.pt/2015/05/muita-forca-para-pouco-dinheiro.html#more

domingo, 24 de maio de 2015

QUE FUTURO PARA OS DIREITOS HUMANOS?

por José Goulão


 

O meu querido amigo Assírio Bacelar convidou-me a reflectir um pouco para a chancela “Nova Vega” sobre o estado universal dos direitos humanos, já que tanto deles se fala, fazendo parte do menu obrigatório dos discursos dos dirigentes mundiais. Uma reflexão com olhos postos no futuro, pelo que me pareceu óbvio tomar como base uma enumeração dos direitos humanos reconhecidos universalmente como tal, observar o que em torno deles se passa na actualidade e, a partir daí, de acordo com as relações de força dominantes no mundo, tentar antever a sua evolução. Nada de feitiçaria ou adivinhação mas apenas, e tão só, um assentamento de pistas para reflexão com base em dados sobre de onde se partiu e onde estamos. Exercício aterrador, acreditem
Comecei por ir à fonte natural, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o primeiro documento do género estabelecido à escala planetária, onde foram apostas as assinaturas dos países então existentes e cuja aceitação passou a ser uma condição para que cada novo Estado independente seja admitido nas Nações Unidas. Uma leitura elucidativa: como se o tempo estivesse à espera de poder mover-se, preso num magma de ideias e conceitos que os mais relevantes dirigentes mundiais aceitam e dizem aplicar, embora muitos deles se recusam a passa-los à prática, considerando-se a si mesmos os mais respeitadores dessas normas. Capazes até de fazer guerras e matar seres humanos em nome dos direitos humanos.
Sabem que o direito à vida é um direito humano, talvez o mais sagrado de todos eles? Que o direito à saúde universal e à educação, gratuita pelo menos nos primeiros quatro anos de escolaridade, são direitos humanos? Que o direito ao trabalho, à segurança social, a uma habitação decente, a um salário razoável capaz de garantir a subsistência digna das famílias são direitos humanos? Que a liberdade de expressão, mas também a de informar e ser informado e o acesso à cultura são direitos humanos? Que a comunicação quotidiana na língua materna, o acesso a uma pátria, a igualdade absoluta de direitos independentemente do género, opção sexual, raça, religião (ou não), etnia, lugar de nascimento e bens pessoais são direitos humanos? Que a preservação da privacidade pessoal e familiar são direitos humanos? São direitos humanos reconhecidos há quase 70 anos e que, na sua maioria e em muitos lugares do mundo, nunca saíram do papel. Sendo que, em circunstâncias que infelizmente não são raras, alguns que ganharam vida logo começaram a sofrer ataques para baterem em retirada.
Pois é, estes e outros direitos fundamentais têm as raízes na necessidade de garantir a dignidade de Ser Humano. No entanto, olhando em volta o que vemos? Todos os direitos humanos elencados na Declaração se tornaram subsidiários de um único, também aí citado: o direito à propriedade. Continuando ainda a olhar em volta, observando o drama que atinge os pequenos e médios empresários, os milhões de “empreendedores” que lutam pelo sustento em todo o mundo, o que vemos? Que todos os direitos humanos, incluindo os destes últimos, se vergam ao direito de uns quantos à grande propriedade. Fazem-se guerras para impor que assim seja, matam-se milhões de pessoas para que a especulação seja livre, condenam-se centenas de milhões de seres humanos à fome eterna, ao analfabetismo e a todas as velhas e novas doenças para que o mercado seja soberano, enfim livre.
No estado actual, os direitos humanos emanentes do Ser devem, pois, obediência aos direitos emanentes do Ter. E quando o Ser se submete ao Ter, o Ser Humano torna-se um actor secundário – um servidor - perante a arbitrariedade do lucro.
Os mais influentes dirigentes mundiais evocam e invocam os direitos humanos a todo o momento enquanto os desrespeitam; recorrem também a um descomunal e censório aparelho de propaganda capaz de encobrir e manipular actos que representam uma devastação dos direitos humanos fundamentais cometida, de facto, em favor do mais hipócrita de todos eles, o direito à especulação e à exploração.
Destas ideias nasceu um pequeno livro: O Futuro dos Direitos Humanos. Escrevi-o com o intuito de abrir pistas de reflexão e já está nas livrarias. Porém, se ficaram interessados/as convém pedi-lo expressamente – lê-se depressa e tem um preço módico – porque o tema é daqueles que “não vende” e por isso está condenado a ficar soterrado nas prateleiras e escaparates onde impera à lei do lucro. Ignorado, afinal, como os direitos humanos. Sinais do regime.

aqui:http://mundocaohoje.blogspot.pt/2015/05/que-futuro-para-os-direitos-humanos.html

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Concepções erradas acerca do neoliberalismo


por Prabhat Patnaik [*]
 
O neoliberalismo muitas vezes é encarado apenas como uma política económica. Isto por si pode não importar, uma vez que um conjunto específico de medidas económicas cai, sem dúvida, sob a categoria de neoliberalismo. Mas ao reduzir o neoliberalismo apenas a um conjunto de medidas económicas por vezes é transmitida a impressão enganosa de que tais medidas são uma questão de escolha por parte da formação política burguesa dominante, isto é, que um conjunto "não neoliberal" de medidas também poderia ser seguido, mesmo nas condições do capitalismo contemporâneo, bastando apenas que a formação política burguesa instalada no governo assim o decidisse.

Reduzir o neoliberalismo a uma mera política económica abre caminho para esta concepção errada. Na verdade, o neoliberalismo é de facto uma mera descrição (e bastante má) de todo um conjunto de medidas que estão necessariamente associadas à hegemonia da finança globalizada. Estas medidas não são uma matéria de escolha por parte de alguma formação política burguesa particular; elas teriam de ser adoptadas na época contemporânea por qualquer formação política burguesa, isto é, desde que o país permaneça dentro da órbita capitalista, de onde se segue que qualquer formação política que pretenda seriamente anular estas medidas teria necessariamente de estar preparada para transcender o capitalismo. Ela pode ter de fazer isso, sem dúvida através de toda espécie de complexos passos tácticos, mas não pode tranquilizar-se fazendo vista grossa para a necessidade de assim fazer. Este ponto adquire particular significância no contexto da Grécia de hoje e de outros países europeus que no futuro possam vir a ter governos de esquerda anti-"austeritários".

O ponto a destacar aqui é análogo àquele que Lenine apontou contra Karl Kautsky na questão do imperialismo. Ele acusou Kautsky de pensar acerca do imperialismo como uma política e dessa forma sugerir que uma política não imperialista também seria possível naquele tempo, ou na base do próprio capitalismo monopolista ou através de uma regressão do monopolismo outra vez à "livre competição", da qual havia emergido. Mas tais possibilidades, argumentou ele, eram absolutamente irreais e representavam uma absoluta lavagem cerebral, ou uma fantasia "pequeno-burguesa".

Para sublinhar que não se pode destacar o imperialismo do capitalismo monopolista desta maneira, que não se tratava de uma "política" que pudesse ou não ser adoptada conforme a vontade do governo dominante sob o capitalismo monopolista, ele definiu o imperialismo como a fase monopolista do capitalismo. A réplica de Kautsky a isto, nomeadamente de que se alguém definiu imperialismo como capitalismo monopolista, então esse alguém não provou a "necessidade" do imperialismo para o capitalismo mas simplesmente avançou-a como definição, também emergia naturalmente da sua posição. Eles apenas exprimiu a sua percepção de que a necessidade do imperialismo era um assunto independente o qual tinha de ser tratado separadamente, de onde se seguia como uma possibilidade manter o capitalismo monopolista mas abolir esta necessidade, isto é, que uma política não imperialista seria possível naquele tempo mesmo sem transcender o capitalismo.

De modo exactamente análogo, o neoliberalismo não é uma coisa separada e destacável do capitalismo contemporâneo. Ele é o capitalismo contemporâneo, uma manifestação deste capitalismo contemporâneo, caracterizado pela hegemonia do globalizado, isto é, do capital financeiro, internacional.

Frequentemente encontramos uma imagem espelhada deste argumento da "separabilidade" quanto à "globalização", a qual predomina em círculos de esquerda, especialmente na Europa. Este argumento sustenta que a "globalização" que hoje se verifica é uma coisa "boa", muito embora o capitalismo contemporâneo seja "mau", de modo que deveríamos de algum modo reter esta "globalização" mesmo enquanto tentamos transcender o capitalismo contemporâneo. O que faz esta argumentação é destacar a "globalização" contemporânea do capitalismo contemporâneo e sugerir que deveríamos reter uma mas não o outro. Mas a "globalização" que se está hoje a verificar não é menos manifestação do capitalismo contemporâneo do que as medidas económicas abrangidas pelo termo neoliberalismo. Assim como não podemos nos livrar do neoliberalismo e ao mesmo tempo reter o capitalismo contemporâneo, da mesma forma não podemos nos livrar do capitalismo contemporâneo e ao mesmo tempo reter a globalização contemporânea. Eles em conjunto constituem uma unidade integral que tem de ser transcendida. Através de que passos tácticos particulares se faz isto é uma questão separada, mas imaginar que um componente disto pode ser retido enquanto o outro é descartado é ignorar esta unidade. Isto equivale a lavagem cerebral.

CAPITALISMO DESENFREADO

A questão que se levanta é:   quais são os traços característicos desta unidade que constitui o capitalismo contemporâneo? Obviamente aqui só se pode aflorar alguns deles, mas todos eles decorrem do facto de que o capitalismo de hoje é um "capitalismo desenfreado". A restrição que o capitalismo enfrentava quando estava empenhado numa luta contra a aristocracia (a qual havia entre outras coisas forçado a aprovação de legislações fabris na Inglaterra); a restrição que o capitalismo enfrentava quando estava empenhado numa luta contra a ascensão do proletariado, quando o encarava como se o socialismo estivesse prestes a conquistar o mundo; e a restrição que o capitalismo enfrentava quando estava organizado em linhas "nacionais", quando o capital financeiro "nacional" tentava impor-se sobre o Estado-nação contra a resistência dos trabalhadores, especialmente no período pós segunda guerra quando esta resistência forçou a instituição da democracia eleitoral nos países capitalistas avançados:  esta conjuntura de restrições parece por agora tem sido suspensa. O desafio socialista diminuiu por enquanto; e a "globalização" do capital forçou Estados-nação, mesmo aqueles cujos governos obtêm apoio da classe trabalhadora, a aceder às exigências deste capital. As características do capitalismo contemporâneo portanto decorrem de certo modo desta conjuntura de "capital desenfreado". O que são estas características que são imanentes ao capitalismo, mas estão agora a serem exprimidas com uma "liberdade" sem precedentes?

Uma é o propagar da mercantilização (commoditisation) numa escala até agora nunca vista. De particular relevância aqui é a mercantilização de sectores como educação e saúde. No país capitalista mais velho do mundo, a Inglaterra, mais de dois séculos decorreram desde a revolução industrial, antes de a esfera da educação superior ficar aberta à obtenção de lucro privado. A mercantilização da educação superior tem duas implicações. Uma é que aqueles que são os produtos desta também são meras mercadorias com pouca sensibilidade social e o que é verdade para os países capitalistas avançados verifica-se com muito maior força nos chamados países capitalistas "emergentes". A destruição da sensibilidade social entre os produtos da educação superior é executada aqui com muito maior extensão. Os outro é uma tentativa de mercantilizar seja o que for que reste da resistência intelectual ao capitalismo e portanto enfraquecê-la.

A segunda característica é uma destruição implacável da pequena produção . Historicamente o capitalismo subjugou a pequena produção (ou, mais geralmente, a produção pré capitalista) para os seus próprio objectivos através do colonialismo, sem necessariamente suplantá-la (excepto nas regiões temperadas de colonização branca onde a terra dos "nativos" foi tomada pelos imigrantes das metrópoles); mas contra tal subjugação também houve resistência maciça dos pequenos produtores. Na nossa própria história, a cadeia de revoltas, desde a revolta do Indigo ao levantamento de 1857, culminando num apoio do campesinato em grande escala à luta de libertação anti-colonial, são exemplos óbvios de tal resistência. A descolonização trouxe restrição a esta subjugação, mas o capitalismo contemporâneo, negando os regimes económicos dirigistas pós coloniais e integrando as oligarquias corporativo-financeiras das nações ex-coloniais no corpus do capital financeiro internacional, não só ressuscitou este processo implacável de subjugação de pequenos produtores como está agora a embarcar num processo maciço de expropriação (dispossession) de tais produtores, de "acumulação primitiva de capital" nua, da qual a "Lei de tomada da terra" (" Land Grab Bill ") actualmente no parlamento indiano é um exemplo óbvio. O fenómeno de 200 mil camponeses cometerem suicídio após a assimilação da Índia dentro do mundo hegemonizado pelo capital financeiro internacional revela a severidade deste processo.

O terceiro é um enorme aumento da desigualdade económica , não só em riqueza mas também em rendimentos e não só globalmente, entre os trabalhadores do mundo e as oligarquias corporativo-financeiras mundiais, mas também dentro de cada país, entre estes dois pólos dentro de cada país. Este problema tornou-se tão significativo que o livro de Thomas Piketty se tornou um best-seller instantâneo. E mesmo a cimeira económica de Davos dos líderes mundiais do capital listou-a como uma das três principais questões que confrontam a "espécie humana". A razão para este aumento da desigualdade é que enquanto o exército de reserva mundial do trabalho permanece grande e em toda plenitude, suas consequências destrutivas, de não permitir que as taxas de salário reais aumentem, agora não estão confinadas apenas aos países do terceiro mundo onde existem grandes reservas de trabalho. Elas estendem-se aos países capitalistas avançados cujos trabalhadores também têm de evitar reivindicações de aumentos salariais, temendo que o capital, agora "globalizado", se mude para países do terceiro mundo com salários mais baixos. Portanto, com salários reais por toda a parte a não aumentarem, todos os aumentos na produtividade do trabalho aumentam a fatia do excedente no produto e em consequência a desigualdade do rendimento. Isto ocorre globalmente bem como dentro de cada país.

CRESCIMENTO DA FOME MUNDIAL

Um aspecto deste fenómeno é o crescimento da fome mundial. Sugerimos acima que salários reais permanecem ligados a algum nível de subsistência em países do terceiro mundo. Mas mesmo isto não acontece. A privatização da educação, saúde e outros serviços essenciais aumenta os seus custos enormemente, o que corrói o poder de compra dos trabalhadores e realmente reduz sua despesa real per capita com alimentos. Quando acrescentamos a isto, que basicamente afecta os trabalhadores empregados ou "exército do trabalho na activa", o facto de que a expropriação de pequenos produtores também incha o exército de reserva, a escala de aumento na magnitude da fome mundial torna-se entendível.

A quarta característica está ligada a este aumento na desigualdade. Um tal aumento produz ao nível mundial uma tendência rumo à super-produção (uma vez que uma mudança de distribuição do rendimento dos trabalhadores para os grandes capitalistas tem como efeito deprimir a procura). Numa situação em que os Estados-nação que confrontam o capital internacional têm pouca opção a não ser obedecer ao seu diktat, o capital utiliza este facto para extorquir novas concessões do Estado com o fundamento de que tais concessões, ao melhorarem o estado de confiança dos "investidores", superariam a crise de super-produção. Em suma, foi construída na conjuntura contemporânea uma dialéctica de crescente desigualdade de rendimento, persistindo ou mesmo acentuando a crise económica e o crescente poder de classe do capital – que realmente agrava tanto a desigualdade como a crise mas que paradoxalmente é defendida como um caminho de saída da crise.

A quinta característica decorre da anterior. As instituições democráticas tais como existem em países capitalistas resultaram de lutas dos trabalhadores. Uma vez que esta "restrição" da militância de trabalhadores foi levantada, a tendência natural do capitalismo seria afundar tais instituições (também, inter alia, mercantilizando-as). Entretanto, além da persistente dialéctica mencionada acima, de desigualdade crescente, crises persistentes e aumento do poder de classe do capital, a qual é justificada em nome da superação da crise que no entanto persiste, aumenta o temor do capitalismo, e a sua hostilidade, a instituições democráticas. Desde financiar grupos fascistas, dividir o povo de acordo com linhas étnicas e religiosas, o flagrante recurso à mentira (como no caso da guerra do Iraque), à supressão absoluta de instituições democráticas, todo um conjunto de métodos é empregue para assegurar que tais instituições sejam adequadamente enfraquecidas. Ao mesmo tempo, a tentativa de manter o povo dividido cria uma situação de desintegração social. O recurso ao autoritarismo político e a desintegração social tornam-se então a marca inconfundível do capitalismo contemporâneo.
17/Maio/2015 
 
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2015/0517_pd/misconceptions-about-neo-liberalism


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

sábado, 16 de maio de 2015

Privatizações: a Distopia do Capital (2014)

O novo filme de Silvio Tendler ilumina e esclarece a lógica da política em tempos marcados pelo crescente desmonte do Estado brasileiro. A visão do Estado mínimo; a venda de ativos públicos ao setor privado; o ônus decorrente das políticas de desestatização traduzidos em fatos e imagens que emocionam e se constituem em uma verdadeira aula sobre a história recente do Brasil. Assim é Privatizações: a Distopia do Capital. Realização do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ) e da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), com o apoio da CUT Nacional, o filme traz a assinatura da produtora Caliban e a força da filmografia de um dos mais respeitados nomes do cinema brasileiro.

Em 56 minutos de projeção, intelectuais, políticos, técnicos e educadores traçam, desde a era Vargas, o percurso de sentimentos e momentos dramáticos da vida nacional. A perspectiva da produtora e dos realizadores é promover o debate em todas as regiões do país como forma de avançar “na construção da consciência política e denunciar as verdades que se escondem por trás dos discursos hegemônicos”, afirma Silvio Tendler.

Vale registrar, ainda, o fato dos patrocinadores deste trabalho, fruto de ampla pesquisa, serem as entidades de classe dos engenheiros. Movido pelo permanente combate à perda da soberania em espaços estratégicos da economia, o movimento sindical tem a clareza de que “o processo de privatizações da década de 90 é a negação das premissas do projeto de desenvolvimento que sempre defendemos”.


aqui:https://www.youtube.com/watch?v=A8As8mFaRGU

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Comando e controle


por Jorge Figueiredo 
 
"Command and control", de Eric Schlosser [1] , é uma obra ciclópica pela quantidade de documentação que o autor coligiu, pelas número de entrevistas que fez e pela abrangência dos temas que aborda. As 632 páginas deste livro condensam dez anos de esforços do seu autor. A sua ambição é grande. O livro trata da história das armas nucleares, da ilusão de segurança que proporcionam, da política em relação a elas, das questões de comando e controle das mesmas, do "risco aceitável", de questões estratégicas e de questões de segurança quanto às ogivas. Apesar de o tema parecer árido e rebarbativo a sua leitura não é. Pode ser lido como um thriller, mas os factos e as situações que descreve são bem reais.

Em primeiro lugar deve-se destacar a estarrecedora quantidade de acidentes com ogivas, asneiras no seu manuseamento, inépcias, displicências de responsáveis militares e políticos dos EUA (e europeus também) com as armas nucleares e os seus vectores, bem como os sistemáticos encobrimentos verificados. A maior parte do enorme número de acidentes que ocorreu foi cuidadosamente ocultada e nunca chegou à opinião pública. Só quando era inevitável as autoridades estado-unidenses os reconheciam, como no caso de Palomar, aldeia no Sul da Espanha onde a USAF perdeu ogivas nucleares que contaminaram com plutónio uma vasta área agrícola. Mas nunca ninguém soube, por exemplo, que uma bomba nuclear esteve prestes a explodir numa base americana no Marrocos. E poucos deram atenção ao desastre que vitimou um B-52 com cargas termonucleares na Gronelândia e espalhou o seu núcleo de plutónio.

Ter conseguido descobrir tamanha quantidade de casos já é uma façanha do autor, mas ele vai mais além com a discussão de questões relativas à segurança nuclear. Ao contrário do que as autoridades sempre asseguraram, o risco de uma explosão nuclear por acidente nunca foi irrelevante. Houve numerosos casos em que isso poderia ter acontecido. Impressiona o facto de quase sempre as ogivas nucleares serem manuseadas por rapazes de pouco mais de 18 anos aos quais apenas foi dada uma breve instrução preparatória. Muitos deles drogam-se habitualmente. Por sua vez, os famosos bombardeiros B-52 da antiga SAC, que durante anos voaram permanentemente com bombas termonucleares sobre as nossas cabeças, muitas vezes tinham mais idade do que as suas tripulações. Eram aparelhos com mais de 25 anos de idade e o número de incêndios e acidentes com eles foi espantoso. Em tais condições parece um milagre não ter chegado a haver qualquer explosão nuclear ou termonuclear – "só" acidentes com muitas perdas de vida e derramamento de plutónio venenoso. No fim da década de 1980 os EUA tinham cerca de 14 mil ogivas e bombas nucleares, espalhadas por todo o mundo (Turquia, Japão, Coreia do Sul, Grã-Bretanha, Alemanha, Marrocos, etc).

O autor debruça-se sobre o desastre ocorrido na localidade de Damascus, Arkansas, com um míssil Titan II, um ICBM movido a combustível líquido hipergólico [2] . Além dos seus aspectos técnicos, analisados com minúcia, o autor mostra a cadeia de comando e controle em que estava inserido. As lutas intestinas dentro das forças armadas (US Army, US Navy, US Air Force e o antigo SAC) pelo controle das ogivas foram sempre constantes ao longo de toda a sua história. Além disso, a princípio (anos 50) houve uma luta pelo controle das ogivas entre o poder civil e os militares – mas esta acabou por ser perdida pelos primeiros. É uma mentira que o presidente dos EUA tenha a última palavra, final e decisiva, no desencadeamento de uma guerra termonuclear. Este poder acabou por ficar com os militares, a princípio por uma "delegação secreta" do presidente dos EUA. Actualmente, até um simples comandante da NATO tem o poder de utilizar uma arma nuclear.

Apesar do anti-sovietismo que transparece no livro, este é rico em elementos factuais que permitem um entendimento razoável dos mecanismos de poder – que na prática se traduzem naquilo que os militares chamam a cadeia de "comando e controle". O preconceito do autor manifesta-se sobretudo por aceitar como bom o pressuposto central da política estado-unidense de que a URSS seria capaz de iniciar um ataque nuclear. Manifesta-se igualmente na afirmação absurda de que o Boeing 747 coreano derrubado sobre a Sibéria ter-se-ia afastado da sua rota "por acidente" (como se um Boeing pudesse desviar-se em mais de dois mil quilómetros "por acidente"). No entanto, apesar destes viéses, a leitura do livro é altamente instrutiva.

Alguns poderão dizer que tudo isso é apenas história, que é passado. Não é. Os temas que levanta permanecem actuais e mais ainda agora, desde o primeiro semestre de 2014, quando a classe dominante estado-unidense inverteu a sua política e passou à confrontação aberta com a Rússia. O putsch em Kiev e a instalação de um governo nazi na Ucrânia, promovidos pelo governo dos EUA, deram início a uma nova escalada militar. Além de mercenários americanos e polacos que já infestavam a Ucrânia, o envio recente de 300 homens do US Army a fim de treinarem batalhões nazis ucranianos dá um cunho oficial à intervenção militar estado-unidense. Os EUA ignoram os governos servis da União Europeia e o acordo Minsk II, além de fazerem provocações militares desde o Báltico até o Mar Negro. Trata-se de uma escalada militar que pode resultar numa confrontação. E esta confrontação pode ser nuclear.
 

[1] Eric Schlosser, Command and control , Penguin Books, 2013, 632 p., ISBN 978-9-141-03791-2
[2] Hipergólico: que se inflama expontaneamente quando em contacto com um oxidante.


Esta resenha encontra-se em http://resistir.info/


aqui:http://resistir.info/jf/resenha_c_controle.html 

terça-feira, 5 de maio de 2015

Ser de esquerda


por Daniel Vaz de Carvalho

 
Um socialista é mais do que nunca um charlatão social que quer, usando um conjunto de panaceias e todos os tipos de remendos, suprimir as misérias sociais, sem fazer o menor dano ao capital e ao lucro.
Engels 
 
1 - A demanda do "Graal" capitalista por certa "esquerda" [1]

A veemência de Engels ganha maior relevo nos tempos atuais. Uma primeira evidência é designar-se como "esquerda" ideias e partidos que exibindo-se como "esquerda" não passam de máscaras para o neoliberalismo e uma intransigente defesa do sistema capitalista, em suma políticas de direita.

Segundo Engels, "os chamados socialistas dividem-se em três categorias". Os reacionários, que, pese embora a fingida compaixão pela miséria do proletariado, esforçam-se por restabelecer os privilégios e o domínio da aristocracia (atualmente financeira) e os donos da grande indústria. Os comunistas lutarão sempre contra esta categoria, pois não oferecem a menor perspectiva de libertação dos trabalhadores. Mostram os seus verdadeiros sentimentos cada vez que o proletariado se torna revolucionário, aliando-se à burguesia contra o proletariado. A segunda categoria, os socialistas burgueses, são partidários da sociedade atual. Para suprimir os seus males propõem grandiosos planos de reformas mantendo todas as bases dessa mesma sociedade. Trabalham de facto para os inimigos dos comunistas. A terceira categoria os social-democráticos, propõem em parte medidas comuns aos comunistas, não como forma de transição para a sociedade comunista, mas apenas como meio que seria suficiente para acabar com a miséria e males da sociedade atual. Os comunistas entender-se-ão com eles nos momentos de ação e no possível para ter uma política comum sempre que não se coloquem ao serviço da burguesia. [2]

Encontramos evidência das duas primeiras categorias no PS. A terceira categoria corresponde, parece-nos, ao Bloco de Esquerda. A social-democracia/socialismo reformista, intitula-se de esquerda, mas apenas pretende gerir um modelo de capitalismo idealizado, sem antagonismos, economicamente racional, moralmente humanitário, ignorando e querendo que se ignore que a racionalidade capitalista reside exclusivamente na maximização do lucro e a sua moral social esvai-se na concorrência, na anarquia da produção, nas necessidades de recapitalização originadas pelas crises provocadas pelo capital monopolista e financeiro.

Efetivamente, o "capitalista pode ser um cidadão exemplar, mas enquanto capitalista é capital personificado. A sua alma é a alma do capital e tem um único impulso vital, o de se valorizar, de criar mais-valia, de sugar a maior parte possível de sobretrabalho. [3]

O PS é um partido democrático, porém a sua democracia radica numa "idílica abstração dos antagonismos de classe" (Marx, A Luta de Classes em França ). O PS prossegue a miragem de um "bom capitalismo", uma tese que o arrasta para toda a espécie de conservadorismos. As críticas ao governo PSD-CDS limitam-se ao circunstancial, considerando-se capaz de fazer funcionar melhor o capitalismo. Esquece que a sua miragem dos anos 60, foi o resultado de duras lutas de classe, organizadas na base de sentimentos revolucionários, após a derrota do nazi-fascismo e, claro, também da exploração imperialista e neocolonial sobre os países dependentes. O Syriza é o mais recente exemplo do fracasso da social-democracia na demanda de um "bom capitalismo". [4]

2 - A social-democracia esteio da política de direita

Se se chegou ao descalabro em que o país e a UE se encontram foi porque, como Engels salientou, nos momentos decisivos da luta de classes a social-democracia/socialismo reformista se colocou ao lado do capital e do divisionismo das camadas trabalhadoras (como foi evidente no Portugal pós-25 de Abril) até alinhar com o neoliberalismo, mascarando-o de "socialismo do século XXI". Nuns casos preparou o caminho para a direita, noutros prosseguiu e aprofundou essas políticas, como T. Blair relativamente a Thatcher, Hollande relativamente a Sarkozy ou o PS relativamente ao PSD-CDS.

Os partidos ditos socialistas, sociais em palavras, neoliberais na realidade, aliaram-se à direita para entregar a soberania nacional aos ditames da UE e apoiam esse verdadeiro golpe de estado que é a TTIP. [5] Para além das diatribes parlamentares, o PS alheia-se ou mesmo combate as lutas populares. As suas cedências permitiram que a direita avançasse para uma ofensiva fascizante, com que metodicamente procura destruir a Constituição de Abril.

A austeridade foi a forma de colocar os povos a pagar as consequências de um sistema em crise, com a arrogância antidemocrática de que não há alternativa ao aumento das desigualdades e da pobreza, à entrega da riqueza criada à especulação financeira, aos monopólios, às privatizações, etc. Uma moral que se limita a "espoliar a classe trabalhadora e dar alguma coisa aos pobres" (Jane Rockfeller). O resto são remendos orçamentais.

Para manter uma ficção de pluralismo a oligarquia precisa de um partido que nas vésperas eleitorais se exiba como de esquerda. Na realidade, a missão que lhe é confiada é a permanente divisão das camadas trabalhadoras, de forma a impor uma política de direita com o mínimo de sobressaltos. Foi assim que se estabeleceu o conceito de "partidos do arco da governação", eufemismo que designa o partido único neoliberal, prioritariamente ao serviço da oligarquia, em conformidade com a ideologia do grupo de Bildelberg, onde dirigentes e propagandistas do "arco da governação" vão receber o "crisma" da religião neoliberal.

3 - Romper com a política de direita

De forma simples, uma política de esquerda deve consistir em romper com a política de direita no que ela tem de desigualdades, privilégios ao capital monopolista e financeiro, leis antilaborais, liquidação das funções sociais e económicas do Estado, etc. No entanto, tudo isto é posto em prática por partidos que se designam de socialistas e de "esquerda". Dizer que o governo PSD-CDS tem um programa de fundamentalismo ideológico, é apenas dizer que criticando o fundamentalismo mantêm a mesma ideologia.

O PS apresentou um "cenário macroeconómico". A palavra "cenário" é adequada à farsa do "arco da governação". Os partidos à esquerda do PS fizeram consistentes análises que não cabe aqui reproduzir. Salientamos contudo alguns aspetos.

Em primeiro lugar, as escolhas que passam por económicas na realidade são políticas e ideológicas. A visão da sociedade, os critérios políticos são os mesmos do PSD-CDS: a aceitação acrítica dos dogmas da UE, do euro, do neoliberalismo. Porém, aceitar os critérios da UE e pretender crescimento económico e justiça social é querer escrever direito por linhas tortas. Claro que a desregulação do mercado financeiro, a recusa do planeamento e da soberania económica e monetária impede que as previsões possam ter qualquer grau de rigor.

O "cenário" do PS ignora completamente o chamado triângulo das impossibilidades em política orçamental. "O Estado português terá de escolher duas das três seguintes opções: (1) cumprir o Tratado Orçamental; (2) pagar a dívida pública nos termos atualmente previstos; (3) preservar um Estado Social típico de uma sociedade desenvolvida." [6]

A renegociação da dívida, a questão do euro como moeda única, são tabu para o PS. A fiscalidade para o grande capital permanece intocável, a austeridade mantém-se "sobre os mesmos": o que dá agora, tira depois, o que é tirado agora permanece. Declamando sobre a dignidade do trabalho, propõe-se rever (novamente!) a lei laboral para facilitar os despedimentos…sempre em nome do "crescimento e do emprego".

Não vai tão longe como o P-M francês que apela à "unidade da esquerda", mas apresenta a lei Macron, em França a lei mais reacionária desde há 70 anos, que sobrepõe a negociação individual entre trabalhador e patronato à contratação coletiva. É como que o reestabelecer da famigerada Lei Chappelier, anulada em 1861 graças à abnegada luta dos trabalhadores.

Os economistas ortodoxos – que o "cenário" segue – veem o mundo como uma máquina complexa, mas que pode ser orientada conforme pretendido atuando sobre uma ou outra alavanca, conduzindo a um hipotético "equilíbrio geral". [7] Ora, o que cientificamente se sabe, é que a aplicação de um determinado modelo em sistemas complexos – mesmo semelhantes – pode dar origem a comportamentos muito diferentes, dependendo das condições iniciais. Simplificações que ignoram estes factos servem de argumento aos "incentivos ao capital", à austeridade, às sucessivas revisões da legislação laboral, a redução dos impostos ao grande capital, etc.

A política de direita praticada pelo PS, PSD e CDS, é defendida como "realismo". Ser "realista" é então não questionar essa mesma realidade, um conformismo reacionário para deixar intocáveis os privilégios da oligarquia. Compreende-se esta atitude por parte de propagandistas e dos que se amesendam em conselhos de administração e sociedades de advogados consultoras, ora do governo ora de concessionárias, mas não de quem se pretende de "esquerda".

4 – Visão de uma política de esquerda

O neoliberalismo é uma aberração em termos intelectuais: pretende aplicar critérios do liberalismo, estabelecidos para um universo de MPME, a uma economia dominada por megaempresas e monopólios. Para fazer passar a sua agenda ideológica os propagandistas do neoliberalismo dizem que não faz sentido falar em "esquerda" e "direita". Claro que se referem ao "arco da governação"!

Não deixa também de ser curioso ver certos grupos que argumentando com a "unidade da esquerda" se fragmentam, evidenciando alguma retórica, mas pouca capacidade de organização. No essencial, dão a ideia de querer converter o PS à "boa nova" de um capitalismo minorado. Definem um conjunto de boas intenções, mas não soluções para as suas causas.

Frederic Lordon dá-nos uma visão de requisitos duma esquerda consequente. Ser de esquerda, diz, é uma posição em relação ao capital. Não permitir o domínio do capital sobre a sociedade. É a relação com o capital que assinala uma posição de esquerda, é portanto uma posição política de poder, uma relação que afirma a soberania de uma sociedade não capitalista. Não permitir que um grupo social seja autorizado a converter o interesse geral no seu próprio interesse existencial. [8]

Ser de esquerda não é certamente fomentar a precariedade: "uma massa desprotegida, em total impotência, oferecida ao despotismo do capital – como se isto representasse "eficiência". Não é também, subordinar a sociedade ao excessivo poder da finança de tal forma que a expõe à alternativa de a salvar ou perecer com ela. Ser de esquerda é portanto reconhecer e lutar pela necessidade imperiosa de mudar as estruturas financeiras e passa inicialmente pelo controlo público da banca. O escândalo não foi salvar os bancos, foi terem sido salvos sem a menor contrapartida dando-lhes carta-branca para retomarem os seus tráficos. [8]

Não será política de esquerda defender a "democracia liberal", que sempre consistiu na da repressão das classes trabalhadoras e na desigualdade. Não será ser de esquerda, destruir, pelas privatizações, a economia mista definida na Constituição. Ser de esquerda, não é certamente enfraquecer o Estado, tornar inútil ou ineficiente o controlo público sobre as grandes empresas e a finança e dizer que isto é democracia. Tal como não é chamar totalitarismo à participação popular, ao combate às desigualdades, á subordinação do poder económico ao poder político.

Não será política de esquerda, considerar que as contradições antagónicas do capitalismo podem ser resolvidas por uma reforma fiscal. Hemingway dá-nos em Por Quem os Sinos Dobram uma clara imagem do falhanço do reformismo, quando um combatente republicano responde a Jordan, internacionalista norte-americano: " Esses impostos parecem-me revolucionários. Eles (os grandes proprietários) vão-se revoltar contra o governo quando se virem ameaçados, exatamente como os fascistas fizeram aqui". Eis a raiz do neoliberalismo.

O que pode distinguir uma esquerda consequente de meros palradores ou oportunistas é a definição do papel do Estado: o que controla, a favor de quem e de quê. É bater-se pela soberania como forma de defender os interesses nacionais e populares. É defender o planeamento democrático e a análise económica baseada na avaliação de custos e benefícios sociais.

Pode-se ser de esquerda sem se assumir como marxista. O que não se pode, na nossa opinião, é pretender ser-se de esquerda e simultaneamente antimarxista. Sem o marxismo não é possível entender cabalmente o funcionamento do capitalismo nem a dinâmica das suas crises.

Ser de esquerda será também lutar pela unidade patriótica e popular contra o neoliberalismo fascizante, impulsionado pelas estruturas da UE. Será também, garantir a iniciativa popular dentro e fora do parlamento, e lutar para que o socialismo seja uma realidade numa Republica democrática.
 

Notas
[1] Na tradição medieval a procura do "Santo Graal" – cálice que teria recolhido sangue de Cristo – representava a tentativa de alcançar a perfeição cristã e devolver a paz e a grandeza ao decadente reino do mítico rei Artur.
[2] Engels, Princípios do comunismo, Obras escogidas, Ed. Progreso, Moscovo, 1973, p. 96-97
[3] Marx, O Capital, Livro 1, Tomo I, Ed. Avante, p. 265-266.
[4] Ver Acerca de negociações: lições do caso Syriza , Vaz de Carvalho
[5] O tratado de comércio livre EUA-UE: a grande golpada , Vaz de Carvalho,
[6] Ricardo Pais Mamede, O triângulo das impossibilidades da política orçamental ,
[7] Paul Ormerod, The Death of Economics, Ed. Faber and Faber, London, p. 36 e 41
[8] Frederic Lordon, A esquerda não pode morrer, Le Monde Diplomatique (ed. portuguesa), setembro 2014.


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