Enquanto
os índices bolsistas estavam na estratosfera, queimavam-se vacas na
Europa. Hoje, todavia, o culto do valor apaga-se, em benefício do
verdadeiro valor das coisas. Visão do escritor português Gonçalo M. Tavares.
Não foi
a literatura que se aproximou da política, foi a política que invadiu o
campo da linguagem – invadiu e aí ficou. E com a política da Europa, a
economia. Já há muito que nestes campos não se trata de deslocar coisas
materiais, de decidir sobre o reino vegetal (mandar ou não cortar
árvores), animal ou humano – agora quase tudo se decide no campo dos
signos – números e letras; e eis um regresso ao mundo infantil: na
Europa acreditamos que traços num papel não são apenas traços, mas a
diferença entre riqueza e pobreza.
A já velha separação entre o signo e a coisa. A célebre frase “a palavra CÃO não morde”:
se pusermos os dedos no C no A ou no O não corremos qualquer risco, os
nossos dedos ficarão intactos, o C e o A não mordem – velha lição de
linguística. E foi esta separação que inaugurou a modernidade. Os
primitivos não acreditavam nisso, não acreditavam em dois mundos
separados. Para os primitivos o signo era já uma coisa. O desenho de
veado não era o desenho de um veado, era o veado. Não havia diferença.
De
certa maneira, a Europa – desde há décadas – que acentuou o seu lado
primitivo. Voltou a acreditar na magia. Quase toda a economia está hoje
instalada no mundo abstracto, no mundo das letras e dos números – e não
no mundo das matérias com volume. Porque a velha economia era isto: duas
vacas que se trocavam por mil galinhas; fábricas e máquinas, árvores
que se vendiam ou compravam. Pouco a pouco, no entanto, os elementos
vivos e os metros quadrados foram desaparecendo de cena. Ficaram papéis
com signos e números e a Europa transformou-se assim num Novo Continente
Primitivo, em que as pessoas assumem comportamentos idênticos aos das
tribos da Amazónia que confundiam signos com o real e acreditavam que a
letra A ou um desenho os podia esmagar ou amaldiçoar.
É que se escrevermos num papel a frase “este papel vale cem mil euros”,
certamente não iremos acreditar que esse papel, essa folha que antes
estava branca, passará a valer 100 mil euros. Mas se ganharmos uma certa
distância, veremos que, em parte, toda a queda económica a que
assistimos hoje se deve a um processo semelhante, a grande escala.
A
economia abstracta instalou-se aí, precisamente, no campo da crença.
Quem tem um papel formalizado com um certo símbolo ou selo (mais signos)
de uma Instituição Financeira acredita que esse papel vale, se
pensarmos nas acções, um certo dia 2 euros, no dia seguinte euro e meio,
e na semana seguinte três euros. Estas subidas e descidas do valor das
acções, para quem está de fora e não entende nada de nada, são algo
ainda mais estranho. Não é apenas a crença fixa num signo, como era a
dos Primitivos, agora é uma crença flutuante – que a cada dia muda o
valor material que atribui ao signo.
O mais
absurdo é que a crença no abstracto, este regresso ao pensamento
primitivo que invadiu o mundo contemporâneo, foi acompanhado por uma
destruição sem precedentes da matéria concreta. Foram abatidos na Europa
vacas e barcos, campos de cultivo foram desactivados, máquinas
destruídas ou impedidas de trabalhar, pois não se devia produzir mais do
que uma certa quantidade. E ano após ano os dois processos foram
avançando em paralelo: destruição das coisas que no mundo tinham volume e
multiplicação dos papéis sem volume que simbolizavam riqueza.
Acreditou-se, no fundo, que a riqueza estava nos signos e que as vacas,
os barcos ou os metros quadrados eram uma riqueza, sim, mas antiga,
ultrapassada, inadequada. Uma riqueza sem higiene, dir-se-ia.
E
durante anos trocaram-se papéis de um lado para o outro. Pequenas folhas
de tamanho A4, A5 ou A6 que rodavam de mão em mão; e, a cada passagem,
por magia, essas folhas A4 pareciam aumentar de valor. Como uma passagem
de testemunho mágica: o indivíduo A passava um papel ao indivíduo B,
este ao indivíduo C, este ao D, e o último da fila, por fim, acreditava
que o papel recebido valia já mil vezes o valor inicial.
Em
suma, a crise na Europa resulta de inúmeras causas, sem dúvida, mas uma
parte da questão é esta: estamos agora diante de uma mudança de crença. A
Igreja do Abstracto, a crença no papel que vale dinheiro, parece ter
chegado a um beco sem saída, e o número dos seus fiéis diminui – uns
abandonam voluntariamente, outros contra vontade, muitos de forma
trágica. E talvez com o fim desta crença se esteja a regressar, então, a
uma outra. A moderna Igreja do Concreto parece, assim, a cada dia,
recuperar a posição forte que já teve – a crença no que é matéria: a
crença nas vacas, nos barcos, nos campos e nas máquinas – aí está ela,
de volta. (E assistiremos nós, ainda, à destruição dos papéis?)
A
Europa avançou muito, tecnologicamente e não só, mas para o europeu não
se molhar ainda precisa de um elemento material entre o seu corpo e o
céu. Não nos podemos abrigar no desenho de uma casa. E é por isso que a
Europa parece avançar e recuar ao mesmo tempo. O que tenta não é fácil:
quer deixar para trás o mundo primitivo, e regressar, de novo, à antiga
modernidade. Trata-se de voltar a ser materialista, no sentido primeiro
do termo. O velho materialismo de que as vacas são o bom exemplo,
pesadas e calmas: o seu valor é o seu peso – e assim está bem.
Gonçalo M. Tavares
aqui:http://contra-faccao.blogspot.pt/2011/01/5-de-dez-olhares-sobre-europa-goncalo.html