segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Neoliberalismo: Um Estado refém

por Sandra Monteiro

Houve um tempo em que o neoliberalismo actuou como se acreditasse que a população era desperdiçada no Estado. Estávamos na década de 1980 e as primeiras experiências neoliberais, indissociáveis dos governos de Aníbal Cavaco Silva, sonhavam com a constituição de um mercado privado que canalizasse os recursos dos cidadãos. Estes haviam acedido à liberdade e à democracia constitucional há pouco tempo, mas criações como o Estado social já melhoravam as condições de vida. Uma arquitectura assente na fiscalidade progressiva e em serviços públicos universais e gratuitos, e na protecção social e laboral, era, no entanto, bastante perturbadora. Como levar os cidadãos a pagar no privado o que recebiam no público, com qualidade e «gratuitamente»?

Era central para o neoliberalismo português ultrapassar este obstáculo, num país pobre e pouco integrado na globalização comercial e financeira. Como os sectores que prometiam lucros mais seguros, além dos ligados aos monopólios naturais, eram os da educação, saúde, segurança social, esse período foi marcado por fortes ataques ideológicos ao público, com campanhas intensas sobre os seus desempenhos e com os primeiros incentivos à dualização dos sistemas, traduzidos na eliminação progressiva da gratuitidade (propinas, taxas) e depois com as tentativas de plafonamentos.

O projecto que levaria ao aprofundamento das desigualdades e ao empobrecimento do país começou aqui. Mas começaram também as resistências sociais de vários sectores, reprimidas como o foi a acção sindical, numa fantasia adiada de desregular totalmente os direitos laborais e acabar com a contratação colectiva. Foi também o tempo dos primeiros sinais do elogio da juventude, antecipando o incitamento à quebra das solidariedades inter-geracionais, outra pedra angular do sistema social que incomodava as seguradoras privadas. A Constituição da República sofria várias revisões e a Europa «aproximava-se», prometendo modernidade e coesão entre os povos mas realizando projectos de liberalização das trocas, desregulação financeira, destruição de aparelhos produtivos a troco de subsídios e construção mal escrutinada de infra-estruturas. Com a adesão à União Europeia, e depois à zona euro, acentuaram-se as desigualdades entre um centro excedentário e uma periferia deficitária. Mas, em todos os países aderentes, os povos viram os rendimentos do seu trabalho, os seus ganhos de produtividade, serem cada vez mais canalizados pelo poder político em benefício do poder económico e de interesses privados.

Em países como Portugal, os neoliberais cedo aprenderam que as simples privatizações eram negócios muito arriscados. As novas universidades privadas faliam umas atrás das outras, os doentes continuavam a confiar mais nos hospitais públicos, a opção pelos seguros de pensões permanecia aquém do desejável para os negócios prosperarem. Enquanto isto, a social-democracia europeia enredava-se em adaptações ideológicas que, mesmo mantendo princípios e valores de justiça social, degradavam as condições materiais para os sustentar. Apanhada entre a desconfiança em relação a perspectivas sistémicas, proporcionada pelo fim do mundo bipolar, e os desafios que a globalização económica colocou à autonomia do poder político, deixou-se seduzir por «terceiras vias» que desprotegeram as políticas públicas orientadas para o combate às desigualdades. Em Portugal não foi diferente, e as elites económico-financeiras marcadamente neoliberais agradeceram – tal como agradeceram que as restantes forças políticas e sociais, à esquerda, não tivessem assumido um projecto de poder.

Com a sua primeira experiência, o neoliberalismo português aprendeu que tinha de se adaptar: não é tanto a população que é desperdiçada no Estado, é o Estado que é desperdiçado na população. As duas perspectivas mantêm o essencial do «privadocentrismo»: o poder económico e financeiro ganha sempre, o capital explora cada vez mais trabalho. Quando não o pode fazer defendendo a pura iniciativa privada – porque o país é pobre e o mercado pequeno –, só tem de recorrer à extrema flexibilidade neoliberal quanto aos meios para atingir os fins. O Estado pode ser maior ou menor, pode até ser reduzido ao mínimo, mas não é para eliminar, porque pode ser muito útil para colocar as populações e os seus recursos ao serviço de finalidades privadas.

O processo de captura do Estado assenta em vários tipos de engenharias neoliberais. Nas suas diferentes formas, que vão das parcerias público-privadas aos contratos de associação, passando pelas formas de empresarialização de sectores públicos, o que estas engenharias têm em comum é a capacidade para sustentar negócios privados com subsídios, rendas, contratos e todo o tipo de facilidades que lesam o interesse público e tornam o Orçamento do Estado incapaz de satisfazer as missões centradas no bem comum.

A crise financeira iniciada em 2008 deu aos neoliberais o pretexto para um salto de gigante na reconfiguração do Estado. Depois de criar um problema de dívida pública com salvamentos bancários, e inserindo-se numa União Europeia que concede crédito aos países mas só robustece o negócio dos credores, o Estado português assinou um Memorando de Entendimento com a Troika para aceder a um empréstimo condicionado à aceitação de políticas económicas e sociais. Sobretudo com a actual maioria no governo, totalmente identificada com o projecto austeritário, o desmantelamento do Estado social, a desvalorização do trabalho, o aumento do desemprego e da emigração, e o empobrecimento e a recessão aprofundaram-se a níveis impossíveis de imaginar numa democracia que não tivesse caído na armadilha do «regime de emergência». O garrote de uma dívida que cresce perpetuamente e o dos tratados e compromissos internacionais (actuais e futuros) garantem décadas de miséria e subdesenvolvimento. Tudo para alimentar o sistema financeiro e os negócios privados que crescerão à sombra de um Estado «libertado» das suas arreliantes finalidades colectivas.

O Orçamento do Estado para 2014 (como aliás o desesperado mas bem ideológico guião de reforma «Um Estado melhor») é justamente a sagração deste projecto que considera que o Estado é desperdiçado na população. Mantém todas as receitas da via austeritária, que não cumprem nenhum dos objectivos proclamados, e aprofunda-as (ver, nesta edição, o dossiê dedicado ao Orçamento). Ao criar esse «Estado paralelo» (na feliz expressão de Pedro Adão e Silva), que dependerá do dinheiro público para prosseguir fins privados, os neoliberais pensam conseguir, por fim, colocar uma sociedade cada vez mais desigual perante a experiência prática de serviços públicos sem qualidade (quando existem). Isto alimentará uma profunda desconfiança dos cidadãos na esfera pública, na democracia.

O Estado que este Orçamento consagra é um Estado refém. Mas não o é apenas de uma dívida que tem de ser profundamente reestruturada nem de um desvio de recursos públicos que têm de ser reorientados para o Estado social, saibamos nós ocupar e defender, mais do que nunca, os serviços públicos. Desde a década de 1980 que o neoliberalismo está a ganhar força contra o bem-estar comum. Aqui chegados, não podem ser adiadas respostas corajosas que lhe abalem as estruturas e o façam soçobrar. Quem não tiver esta coragem limitar-se-á a tentar gerir uma tragédia ingerível.

sábado 9 de Novembro de 2013

aqui:http://pt.mondediplo.com/spip.php?article955

Sem comentários:

Publicação em destaque

Marionetas russas

por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...