por Daniel Vaz de Carvalho
[*]
Quando considero e avalio no meu pensamento todas as comunidades que florescem
hoje em dia por toda a parte, assim Deus me ajude, não vislumbro
senão uma certa conspiração de ricos procurando as suas
próprias vantagens em nome e sob a tutela da comunidade. Inventam todos
os meios e possibilidades para usar e abusar do trabalho e labor dos pobres
pelo mínimo possível de dinheiro. Esses planos que o rico
decretou são tornados leis.
Thomas More, Utopia |
3 - ECONOMIA
"Salvar a economia" é salvar a oligarquia financeira,
destruindo a democracia, a própria economia e tudo o que seja social.
Portanto, a questão que se coloca é entre salvar a economia e a
democracia ou salvar a oligarquia.
Os "europeístas" regozijam-se com a "disciplina
financeira". "A disciplina veio agora", exultam. Mas, que
disciplina e para quem? "Disciplina" tem o significado de um conjunto
de regras para controlar comportamentos. Estão a controlar a
especulação? Estão a controlar a existência de
rendas monopolistas na economia? A fuga de capitais e rendimentos? A lavagem de
dinheiro e o crime organizado? Não, esta "disciplina" é
omissa em todos estes aspetos e acaba por promove-los. Trata-se de
"disciplina" como austeridade, castigo, repressão por meio de
penitência, neste caso sobre os que não têm dinheiro para
colocar em paraísos fiscais.
É esta a disciplina que a CE e o BCE impõem e que a direita
aplaude. A que permite que os povos fiquem sob o garrote dos
"mercados" manipulados por agências de rating e conluios
bancários como, entre outros, o escândalo da taxa Libor, que logo
saiu dos noticiários e comentários.
Os tratados da UE com base na concorrência livre e não falseada
(!) e na teoria das vantagens comparativas impedem a recuperação
e o desenvolvimento dos países menos desenvolvidos. Resta a estes a
especialização em nichos de baixa tecnologia ou como
subcontratados de multinacionais, que se aproveitam de baixos salários,
"incentivos" e a livre transferência dos lucros.
Os Estados que nos processos da UE e em particular do euro, à partida
dispunham de maiores "vantagens comparativas", usaram-na e usam-na
para conservar a sua supremacia, condenando os mais vulneráveis à
estagnação, a manter e aprofundar as distorções
estruturais. Os governantes fazem o papel de capatazes, cujo objetivo é
colocar os trabalhadores sob a canga neoliberal e o azorrague dos mercados.
Quem não cumpre vai para o cepo dos "programas de ajustamento"
e da austeridade.
Não deixa de ser surpreendente que gente que contribuiu para o
desmantelamento do sector produtivo, deixou acumular os défices da BC,
ignorou os desmandos, fraudes e má gestão do sector financeiro;
gente que foi incapaz de impedir o crescimento descontrolado do desemprego,
colocou o país sob a suserania dos "mercados" e o conduziu
para uma situação de profunda crise, diga agora que recusar as
causas seria uma catástrofe.
As estratégias das cúpulas europeias têm como objectivo
deixar os Estados sem capacidade de intervir na economia no interesse dos seus
países e dos seus povos. Uma zona euro estável exigiria o
controlo de capitais e a harmonização fiscal, impediria
paraísos fiscais, a concorrência fiscal e a
especulação financeira. Pelo contrário, com o euro, a
especulação sobre os défices públicos é
exercida com a garantia do BCE.
"Um banco central funcionando de maneira adequada não ficaria de
braços cruzados durante meses face aos ataques especulativos (…)
sobretudo não deixaria agências de notação
desacreditadas fazer o seu papel de encher a bolha financeira entre 2001 e
2007."
[1]
Apesar dos aumentos de produtividade, há largos anos que altos
níveis de desemprego, pobreza, marginalidade cresceram e se mantêm
na EU, mergulhada na estagnação ou na recessão, com taxas
de crescimento inferiores às da economia mundial e mesmo dos EUA.
Jacques Sapir num estudo recente afirma que "Uma dissolução
da zona Euro não seria uma "catástrofe" como muitas
vezes se pretende, mas pelo contrário uma solução
salvadora para a Europa do Sul e a França. Na pior, será preciso
esperar um crescimento acumulado de 8% no terceiro ano após o fim do
Euro e na melhor um crescimento de 20%. Para a Europa do Sul, o crescimento
acumulado seria em média de 6% para a Espanha, de 11% para Portugal e de
15% para a Grécia, na hipótese mais desfavorável para
estes países. Tendo em conta os impostos, o impacto de uma
desvalorização de 25% em relação ao dólar
sobre o preço dos combustíveis não provocaria senão
uma alta de 6% a 8% do produto ao consumidor."
[2]
A própria Comissão Europeia estima que a fuga ao fisco pela
fraude ou evasão ilegal atinja 150 mil milhões de euros ano,
correspondentes a 1 milhão de milhões de euros de rendimentos. O
total registado em sociedades financeiras na Holanda por Portugal,
Grécia, Itália e Espanha aumentou entre 2006 e 2011 de 178 para
304 mil milhões (mais 74%). No mesmo período, a dívida
destes países para sociedades financeiras na Holanda aumentou 125% (de
72 para 163 mil de milhões de euros).
[3]
As sociedades financeiras na Holanda tiveram em 2011um lucro de 96 mil
milhões de euros, o que fazendo uma estimativa para as de origem
portuguesa, corresponde a 865 milhões de euros na Holanda, ou seja algo
como 2,5 mil milhões de euros nos últimos três anos.
[3]
Desde 2008, graças ao apoio dos contribuintes os bancos europeus
aumentaram a sua cotação bolsista em 30%, muitos deles mais do
dobro, porém os "riscos sistémicos" não
são menores do que antes. A Standard & Poor's estima que os bancos da
eurozona têm um défice de capital da ordem dos 95.000
milhões de euros.
Não admira, pois, que enquanto as condições
económicas e sociais na UE se agravaram os 25 cidadãos mais ricos
da UE, aumentaram os seus rendimentos entre 2010 e 2013, em 40%! (dados da
revista
Forbes
)
Segundo noticiado
[4]
o número de multimilionários em Portugal aumentou 10,8% para 870
pessoas no último ano, revela o banco suíço UBS. O
"Relatório de Ultra Riqueza no Mundo 2013" confirma que em
Portugal não só cresceu o número de
multimilionários como aumentou o valor global das suas fortunas, de 90
para 100 mil milhões de dólares (mais 11,1%), o que corresponde a
cerca de 45% do PIB nacional. Note-se que na Grécia, o número de
multimilionários cresceu 11% (para 505) e o valor das suas fortunas
aumentou 20% (para 60 mil milhões de euros).
4 - OS ESCRAVOS DO EURO
Os escravos do euro vivem sob o chicote da austeridade. A história do
euro faz lembrar a dos náufragos recebidos numa ilha por acolhedores
nativos que trataram deles, os alimentaram e depois comeram. Eram
antropófagos.
É difícil conceber algo mais desestabilizador para uma economia
nacional que a livre circulação de capitais. Se a isto juntarmos
a concorrência fiscal e a especulação temos os ingredientes
para uma impossível estabilidade económica, social,
política.
"A "Europa" não é um espaço
solidário. Em vez de solidariedade, a concorrência desleal.
(…) Apesar da
federalização
de políticas tão importantes os construtores da
Europa do capital
nem querem ouvir falar em harmonização das políticas
tributária, laboral e social.
[5]
Ouvimos agora criticar o "mau desenho" do pacto da troika e que
"nada foi feito para monitorizar as consequências do euro".
É espantoso que isto seja afirmado pelos mesmos que assumiram o
verdadeiro pacto de agressão e ocupação do país
pela troika como "ajuda a Portugal", que propagandearam o euro que
nos iria proteger das crises, da especulação e ter crédito
barato e abundante. Aplaudiram o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) como a
"regra de ouro", quando não passa de uma iniquidade para
não lhe chamar uma imbecilidade, pois funciona em contra-ciclo
económico.
Os países têm de se munirem de disposições legais e
permanentes (!) de preferência constitucionais, que limitem o
défice estrutural a 0,5% do PIB e o endividamento a 60% do PIB.
Além disto, o Tribunal Europeu de Justiça pode no seguimento de
uma queixa de outro país signatário aplicar uma multa a um
país que não respeite o tratado.
O tratado rejeita explicitamente "grandes reformas de política
económica" sem antes ter recebido o consentimento dos outros
países europeus. Simplesmente inaudito. Trata-se duma agenda
ideológica que atinge o nível de ocupação colonial,
muito para além do que existe em Estados federais ou regionalizados.
Na UE pretende-se que as regras que regulam o trabalho devem ser
"modernizadas e reatualizadas" e o "Estado Social"
"reestruturado" ou "reformado", com vista à
competitividade, ao "crescimento e ao emprego". Quando esta gente diz
isto já sabemos que haverá mais recessão, mais desemprego,
mais chantagem sobre os trabalhadores, mais precariedade, com o argumento que
"mais vale isso que nada".
D. Merkel afirma que não é o Estado que tem de promover o
emprego, ou seja, os governos não têm que ver com os seus
cidadãos trabalhadores, apenas com os detentores do capital. (DN
13/11/2013)
Que importa que em Setembro de 2013 o desemprego tenha atingido na UE 11% (10,6
um ano antes) afetando 26,9 milhões de pessoas e na zona euro 12,2 %
(11,6% um ano antes), 19,4 milhões de pessoas, se na Alemanha a taxa
é de 5,2%, na Áustria 4,9, embora na Grécia seja 27,6%,
Espanha 26,6%, Irlanda 13,6%, Portugal 16,3% (valores ajustados do efeito
sazonal).
[6]
Que importa o crescimento da pobreza e exclusão social na UE, que
já atingia em 2011 24% da população. Eram então 120
milhões de pessoas! Em Portugal 24,4% da população, na
Grécia 31%, Irlanda (2010) 29,9%, Espanha 27%, com países do
Leste e Báltico com taxas superiores a 30 e mesmo 40%, mesmo na Alemanha
atingia 19,9%?
[7]
Que importa a austeridade à Alemanha, se isso interessar à
manutenção do "seu" euro. Isso apenas importa na medida
em que for favorável ou contrário aos seus interesses - leia-se
da oligarquia alemã, - agora como no passado.
[8]
Do PS, vem a ideia que a solução tem de vir da Europa. Mas qual
Europa? Pretende-se com isto que o povo fique de joelhos a rezar à UE,
à espera de um milagre e a carpir nos "muros das
lamentações" que a rádio e TV promovem?
Na realidade, são raciocínios de natureza teológica,
feitos de invocações. Um messianismo sem consistência que
volta costas e ignora a energia popular (veja se a atitude do PS perante
manifestações e greves mesmo gerais). O PS teria de escolher
entre os valores de Abril e os da oligarquia, e isto não é nenhum
dilema: é uma solução, pois é a própria
democracia que está em causa, o governo do povo, pelo povo e para o
povo, não o governo da burocracia de Bruxelas.
Para garantir que prossegue o desmantelamento das funções sociais
do Estado e que este esteja inteiramente colocado ao serviço dos
interesses financeiros e monopolistas os tecnoburocratas da UE ordenam que
antes de 15 de outubro os países da zona euro apresentem os seus
orçamentos para serem controlados.
"O euro que nos é apresentado como um projeto coletivo é na
realidade o projeto de um país que tenta impô-lo aos outros."
[9]
Nas economias do leste o sistema financeiro está inteiramente dominado
pelos bancos alemães, franceses e austríacos. A quase totalidade
da atividade industrial dos países do leste europeu está dominada
por multinacionais em particular alemãs
[10]
De facto, como também salienta J. Sapir, o euro contribuiu decisivamente
para a competitividade da economia alemã, porém economias como a
portuguesa viram a sua competitividade diminuir, os défices
agravarem-se, sendo conduzidos para "programas de ajustamento" com
base na deflação salarial, perda de direitos, desemprego,
redução do salário direto e indireto sob a forma de
prestações sociais, que os comentadores de serviço
mascaram como "gorduras" e "despesismo do Estado".
Qualificar como "nossos compromissos" a chantagem de credores
agiotas, é optar pela troika e pelo euro contra os interesses do povo.
As alternativas existem e sempre existiram. Na nossa época, são
encontradas no materialismo dialético, o marxismo, guia para nos
orientarmos no labirinto de contradições para onde um capitalismo
parasitário e senil que desde há décadas arrasta os povos
para sucessivas crises, bloqueando o sentido do progresso e da ascensão
civilizacional.
Um sistema, uma sociedade, que não é capaz de desenvolver-se
económica e socialmente, chegou a um impasse. Um sistema, uma sociedade,
cujas soluções consistem em aumentar a taxa de
exploração e a desigualdade é um sistema sem
soluções sociais, que chegou ao limite e tem de ser
substituído.
"Acabar com a finança privada, é por um lado
desembaraçar-se de atitudes parasitárias e desestabilizadoras,
mas também dotar-se de um instrumento essencial para construir um modo
de desenvolvimento guiado pela satisfação das necessidades
sociais e preservar a biosfera. As instituições bancárias
socializadas podem guiar-se por outros critérios que não o
lucro".
[11]
A alternativa coloca-se, pois, desde logo pela necessidade dos povos adquirirem
soberania financeira. A socialização da banca seria o primeiro
passo para a saída da crise. A opção é entre os
interesses de credores usurários e os interesses nacionais.
Quod erat demonstrandum
1-
En finir avec l'Europe
, Ed. La fabrique, 2013, Cédric Durant (coord.), p. 80
2- Dissolver o Euro: uma ideia que se imporá , Jacques Sapir . 3- Avoiding Tax in Times of Austerity - Energias de Portugal (EDP) and the Role of the Netherlands in Tax Avoidance in Europe , September 2013, Centre for Research on Multinational Corporations - Private Gain, Public Loss, www.somo.nl 4- Lusa em 07/nov/2013, economico.sapo.pt/... 5- O Estado Capitalista e as suas Máscaras, António Avelãs Nunes, Ed. Avante, 2013, p. 367 6- Eurostat news release, 159/2013, 31/outubro/2013 7- Eurostat news release, 171/2012, 3/dezembro/2012 8- Em outubro de 1940, Hitler dava instruções sobre a Polónia: "Não é preciso pensar em melhorias para eles. Cumpre manter um padrão de vida baixo (…) devemos utilizar o governo-geral da Polónia simplesmente como fonte de mão-de-obra não especializada." Em outubro de 1943, Himmler, perante uma assembleia de SS, declarava: "se 10 000 mulheres russas caem de exaustão a cavar um fosso contra tanques interessa-me apenas que esse fosso seja concluído para a Alemanha", Ascensão e Queda do 3º Reich, vol. IV, W. Shirer, Ed. Civilização Brasileira, 1962, p. 12 9- Faut'il sortir de l'euro , Jacques Sapir, Ed. Seuil, 2012, p.68 10- Idem, p.45 e 44. 11- Idem, p. 146
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