segunda-feira, 30 de julho de 2012

A alegria nacional na televisão

A prestação nacional em grandes espectáculos desportivos, como o recente Euro 2012, proporciona momentos privilegiados para ouvir os «portugueses». Equipas de jornalistas calcorreiam o país de microfone em punho e fazem perguntas sobre a selecção de futebol e os seus jogadores; pedem prognósticos e transmitem as aspirações e desejos das pessoas com quem falam; programas de entretenimento assumem o vínculo à equipa nacional realizando «directos» em inúmeros locais públicos, onde os participantes são convidados a demonstrar o seu apoio absoluto. Questões curtas, que induzem quase sempre a resposta, procuram manifestações de entusiasmo. A alegria pelas vitórias desportivas não é encenada e a sua importância na vida dos indivíduos está longe de ser despicienda, embora as manifestações de agrado sejam amplificadas pela presença da câmara, que exige uma performance ao sujeito filmado. Os grandes espectáculos são momentos privilegiados para convidar o «povo» para participar no espaço público televisivo, que é uma montra de representação do país. Este desempenho ocorre, no entanto, num contexto particular. O cidadão surge na condição de adepto, e dele se espera um determinado comportamento; como pouco mais se sabe da sua existência fora dessa condição, a sua representação, enquanto forma exemplar do «povo», é controlada e restrita.


A imagem estrutural de um país em crise tem chegado pelos meios de comunicação social em forma de informação em bruto: os números do desemprego, da quebra de salários, da eliminação dos subsídios de férias e Natal, das bolsas escolares, a restrição da acção da Segurança Social, etc. Pelos jornais, televisões e rádios um conjunto de comentadores remete estes dados para o quadro de equações mais vastas que desembocam inevitavelmente na questão produtiva. Àqueles números é dado o mesmo estatuto que outros que definem mais directamente a pujança da actividade económica: o nível das exportações, do consumo, da balança comercial, os resultados da Bolsa de Valores. Nas televisões, intervenções diárias analisam a evolução das Bolsas, os títulos que sobem e que descem, o modo como estes resultados se relacionam com dinâmicas internacionais, com os mercados europeus, com os números do crescimento do emprego nos Estados Unidos, com os últimos resultados da produção industrial alemã, com os juros da dívida italiana, etc. O ritmo da Bolsa torna-se uma espécie de oráculo sobre o futuro próximo, cuja lógica se encontra no fim de um número complexo de operações, impossíveis de descodificar pela grande maioria da população e em relação às quais os próprios especialistas se revelam genericamente incompetentes. Através destas representações numéricas, dependentes da equação produtiva, a crise surge sem faces ou experiências concretas e a opinião do «povo» é remetida ao resultado da sondagem política, que simplifica de forma brutal a experiência vivida de quem escolhe. O «povo» em crise ouve-se pouco na televisão, sobretudo em comparação com o «povo» alegre, transmutado em partidário integral das cores nacionais, ou esse outro «povo», imaginado pelo sonho liberal, constituído por empreendedores individuais, exemplos de iniciativa que incutem na sociedade um sentimento de culpa generalizado, assumido por aqueles que mais sofrem com a crise.

A própria condição de adepto de futebol é reduzida pela transmissão televisiva. O futebol é um meio específico de as pessoas se relacionarem e de participarem na vida quotidiana através das suas opiniões; enquanto idioma social ocupa um impressionante espaço, nas escolas, nos locais de trabalhos, em momentos de lazer, embora esteja substancialmente mais presente no âmbito de sociabilidades masculinas. Nestes contextos, suscita debates e confrontações que expressam o modo como, enquanto cultura popular de amplo espectro, se pode tornar uma forma de comentário social, dado ser veículo de observações com uma dimensão ética e moral: sobre justiça, mérito, capacidade, habilidade, estratégias, etc. Estas opiniões e discussões dão origem a debates e enformam a existência de um espaço público específico.

Na televisão, no entanto, a complexidade do adepto tende a desaparecer perante as condições de construção do espectáculo televisivo em ambiente de unidade nacional. Os sorrisos e a alegria, como noutros formatos de entretenimento, são exigências da produção; o adepto é convidado, pelo modo como é solicitado, a confirmar essa adesão, mesmo aquele que apenas se aproxima do futebol, um jogo que não acompanha e de que não gosta particularmente, por exigência patriótica. Para a televisão, e sobretudo para as grandes marcas − cervejeiras, bancárias, gasolineiras −, esta alegria é, por sua vez, um elemento fundamental do seu negócio. O risco dos anunciantes e das televisões, perante resultados desportivos menos conseguidos, ou exibições pobres, é a demonstração pública da dissensão: os assobios nos campos, as crónicas negativas, o jogador fora de forma, o ponto de vista clubista, que rompe com a unidade, enfim todos os elementos que prejudicam a marca portuguesa e as marcas dos produtos que usam a identidade nacional enquanto razão última do consumo. A crítica é então severamente estigmatizada; ao «português» pede-se uma adesão sem hesitações. A obrigação de apoiar a selecção, de afirmar, porque tem de ser e contra a evidência, que Cristiano Ronaldo é o melhor jogador do mundo, faz-se em nome dos valores nacionais, mas persegue objectivos económicos; os media e os negócios associados instrumentalizam e reforçam assim os sentimentos nacionais. Simultaneamente, esta representação do «povo-adepto incondicional» articula-se com um contexto político actual em que a esse mesmo «povo» são exigidos sacrifícios e abnegação. Como no futebol, perante a necessidade de união nacional, no espaço público alargado, a crítica política, tal como as greves, os protestos ou as manifestações tornaram-se uma espécie de antipatriotismo. O espectáculo televisivo do futebol dá enfim a palavra ao povo, mas assegurando que a sua opinião se reduza à demonstração da alegria nacional.

sexta-feira 6 de Julho de 2012

por Nuno Domingos

http://pt.mondediplo.com/spip.php?article873

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