Por Michael Löwy.*
Vamos
começar com uma citação de um ensaio sobre a democracia burguesa na
Rússia, escrita em 1906, após a derrota da primeira revolução, de 1905:
“É
profundamente ridículo acreditar que existe uma afinidade eletiva entre
o grande capitalismo, da maneira como atualmente é importado para a
Rússia, e bem estabelecido nos Estados Unidos […], e a ‘democracia’ ou
‘liberdade’ (em todos os significados possíveis da palavra); a questão
verdadeira deveria ser: como essas coisas podem ser mesmo ‘possíveis’, a
longo prazo, sob a dominação capitalista?”1
Quem é o
autor deste comentário perspicaz? Lenin, Trotsky ou, talvez, Plekhanov?
Na verdade, ele foi feito por Max Weber, o conhecido sociólogo burguês.
Apesar de Weber nunca ter desenvolvido essa ideia, ele está sugerindo
aqui que existe uma contradição intrínseca entre o capitalismo e a
democracia.
A historia
do século XX parece confirmar essa opinião: em muitos momentos, quando o
poder da classe dominante pareceu ameaçado pelo povo, a democracia foi
jogada de lado como um luxo que não pode ser mantido, e substituída pelo
fascismo — na Europa, nos anos 1920 e 1930 — ou por ditaduras
militares, como na América Latina, entre os anos 1960 e 1970.
Por sorte,
esse não é o caso da Europa atual, mas temos, particularmente nas
últimas décadas, com o triunfo do neoliberalismo, uma democracia de baixa intensidade,
sem conteúdo social, que se reduziu a uma concha vazia. É claro que
ainda temos eleições, mas elas parecem ser de apenas um partido, o PMU,
Partido do Mercado Unido, com duas variantes que apresentam diferenças
limitadas: a versão de direita neoliberal e a de centro-esquerda social
liberal.
O declínio
da democracia é particularmente visível no funcionamento oligárquico da
União Europeia, onde o Parlamento Europeu tem muito pouca influência,
enquanto o poder está firmemente nas mãos de corpos não eleitos, como a
Comissão Europeia ou o Banco Central Europeu. De acordo com Giandomenico
Majone, professor do Instituto Europeu de Florença, e um dos teóricos
semioficiais da UE, a Europa precisa de “instituições não-majoritárias”.
Ou seja, “instituições públicas que, propositalmente, não sejam
responsáveis nem diante dos eleitores, nem de seus representantes
eleitos”: essa é a única maneira de nos proteger contra “a tirania da
maioria”. Em tais instituições, “qualidades tais quais expertise, discrição profissional e coerência […] são muito mais importantes que a responsabilidade democrática e direta”.2 Seria difícil imaginar uma desculpa mais descarada da natureza oligárquica e antidemocrática da UE.
Com a crise atual, a democracia decaiu a seus níveis mais baixos. Em um recente editorial, o jornal francês Le Figaro escreveu
que a situação é excepcional, e explica por que os procedimentos
democráticos não podem ser sempre respeitados; apenas quando voltarmos
aos tempos normais, poderemos restabelecer sua legitimidade. Temos,
então, um tipo de “estado de exceção” econômico/político, no sentido que
descreveu Carl Schmitt. Mas quem é o soberano que tem o direito de
proclamar, de acordo com Schmitt, o estado de exceção?
Por algum
tempo, entre 1789 e a proclamação da República Francesa, em 1792, o rei
teve o direito constitucional de veto. Não importavam as resoluções da
Assembleia Nacional, ou quaisquer que fossem os desejos e aspirações do
povo francês: a última palavra pertencia a Sua Majestade.
Na Europa de
hoje, o rei não é um Bourbon ou Habsburgo: o rei é o Capital
Financeiro. Todos os atuais governos europeus — com a exceção do grego! —
são funcionários deste monarca absolutista, intolerante e
anti-democrático. Quer sejam de direita, “extremo-centro” ou
pseudoesquerda, quer sejam conservadores, democratas cristãos ou
social-democratas, eles servem fanaticamente ao poder de veto de Sua
Majestade.
O soberano
absoluto e total hoje, na Europa, é, no entanto, o mercado financeiro
global. Os mercados financeiros ditam a cada país os salários e
aposentadorias, os cortes em despesas sociais, as privatizações, a taxa
de desemprego. Há algum tempo, eles nomeavam diretamente os chefes de
governo (Lucas Papademos na Grécia e Mario Monti na Itália), escolhendo
os chamados “experts”, que eram servos fiéis.
Vamos olhar
mais atentamente a alguns desses tais todos-poderosos “experts”. De onde
eles vêm? Mario Draghi, chefe do Banco Central Europeu, é um antigo
administrador do banco internacional de investimentos Goldman Sachs;
Mario Monti, ex Comissário Europeu, também é um antigo conselheiro da
Goldman Sachs. Monti e Papademos são membros da Comissão Trilateral, um
clube muito seleto de políticos e banqueiros que discutem estratégias
internacionais. O presidente desta comissão é Peter Sutherland, antigo
Comissário Europeu, e antigo administrador no Goldman Sachs; o
vice-presidente, Vladimir Dlouhr, antigo Ministro da Economia tcheco, é
agora conselheiro na Goldman Sachs para a Europa Oriental. Em outras
palavras, os “experts” que comandam a “salvação” da Europa da crise
foram funcionários de um dos bancos diretamente responsáveis pela crise
financeira iniciada nos Estados Unidos, em 2008. Isso não significa que
existe uma conspiração para entregar a Europa à Goldman Sachs: apenas
ilustra a natureza oligárquica dos “experts” de elite que comandam a UE.
Os governos
da Europa estão indiferentes aos protestos públicos, greves e
manifestações maciças. Não se importam com a opinião ou os sentimentos
da população; estão apenas atentos — extremamente atentos — à opinião e
sentimentos dos mercados financeiros e seus funcionários, as agências de
avaliação de risco. Na pseudodemocracia europeia, consultar o povo em
um referendo é uma heresia perigosa, ou pior, um crime contra o Deus
Mercado. O governo grego, liderado pelo Syriza, a Coalizão da Esquerda
Radical, foi o único que teve coragem para organizar tal consulta
popular.
O referendo
grego não tinha apenas a ver com questões fundamentais econômicas e
sociais, foi também e acima de tudo sobre democracia. Os 61,3% de gregos
que disseram não são uma tentativa de desafiar o veto real das
finanças. Esse poderia ter sido o primeiro passo em direção à
transformação da Europa, de monarquia capitalista a república
democrática. Mas as atuais instituições da oligarquia europeia têm pouca
tolerância à democracia. Imediatamente puniram o povo grego por sua
tentativa insolente de recusar a austeridade. A “catastroika” está de
volta à Grécia com uma vingança, impondo um programa brutal de medidas
economicamente recessivas, socialmente injustas e humanamente
insustentáveis. A direita alemã fabricou este monstro, e forçou ao povo
grego com a cumplicidade de falsos “amigos” da Grécia (entre outros, o
presidente francês, François Hollande, e o primeiro-ministro da Itália
Matteo Renzi).
* * *
Enquanto a
crise agrava-se, e o ultraje público cresce, existe uma crescente
tentação, por parte de muitos governos, de distrair a atenção pública
para um bode expiatório: os imigrantes. Deste modo, estrangeiros sem
documentos, imigrantes de países não-europeus, muçulmanos e ciganos
estão sendo apresentados como a principal ameaça aos países. Isso abre, é
claro, enormes oportunidades para partidos racistas, xenófobos, semi ou
completamente fascistas, que estão crescendo, e já são, em muitos
países, parte do governo — uma ameaça muito séria à democracia europeia.
A única
esperança é a crescente aspiração por uma outra Europa, que vá além das
políticas de competição selvagem e austeridade brutal, e das dívidas
eternas a serem pagas. Outra Europa é possível — um continente
democrático, ecológico e social. Mas não será alcançado sem uma luta
comum das populações europeias, que ultrapasse as barreiras étnicas e os
limites estreitos do Estado-nação. Em outras palavras, nossa esperança
para o futuro é a indignação popular, e os movimentos sociais, que estão
em ascensão, particularmente entre os jovens e mulheres, em muitos
países. Para os movimentos sociais, está ficando cada vez mais óbvio que
a luta pela democracia é contra o neoliberalismo e, em última análise,
contra o próprio capitalismo, um sistema antidemocrático por natureza,
como Max Weber já apontou, cem anos atrás.
* Escrito originalmente em inglês. A tradução é de Gabriela Leite, para o portal OutrasPalavras.
NOTAS
1. Max Weber, «Zur Lage der bürgerlichen Demokratie in Russland»,Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, Band 22, 1906, Beiheft, p. 353.
2. Citado in Perry Anderson, Le Nouveau Vieux Monde, Marseile, Agone, 2011, pp. 154,158.
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