quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O fosso sangrento

Tenho para mim que o desfecho desta governação vai desembocar em algo de muito mau. Um mês e pouco depois da entrada no poder, o que o Executivo tem feito não corresponde à ideia de que o bom Governo é aquele cujas decisões são balizadas pela equidade e pela ductilidade. Estas, têm sido marcadas por uma brutalidade insuportável, atribuindo-se a violência ao memorando da troika, que (dizem) pouco espaço de manobra permite. O aumento no preço dos transportes é outro dos sinais dessa brutalidade. E a inquietação generalizada dos que mais sofrem a insensibilidade das deliberações está a transformar-se em indignação.


Sabe-se que o pensamento social de Passos Coelho se baseia nas doutrinas ultraliberais, e que o seu projecto legislativo é um decalque do que de pior se recupera na Europa actual, onde as crispações neofascistas não são aparições momentâneas. A perseverança com que o Estado-previdência é atacado e minado, os termos com que o comunismo, o trabalhismo, a social-democracia e o socialismo democrático são execrados e embrulhados no mesmo saco leva a considerar que o plano visa mais longe.

Os termos político-económicos com que hoje somos instados a pensar obedecem a uma estratégia global, a qual contribui para agudizar a situação de extrema vulnerabilidade em que nos encontramos. Acresce o facto de, depois da queda do Muro de Berlim e da implosão das sociedades do Leste, o que sobrou da esquerda foram caricaturas mal-amanhadas, de que são exemplos funestos o sr. Tony Blair e a "terceira via". Em Portugal, esta extensão particular do assassínio da ideia socialista foi perpetrada não só por António Guterres e José Sócrates mas por outros mais. A bom entendedor...

Passos Coelho resulta dessas contradições, e a canonização dos banqueiros e dos "empresários", a que procede, com ilimitada subserviência e admiração, não é maior do que aquela, precedida por Sócrates, e, embora mais moderada, por Guterres. A capitulação de uns e a argúcia ascensional de outros; a abdicação da ideologia e das convicções e a sua substituição pelo "pragmatismo" permitiram e facilitaram a fé cega e suicida no "mercado", no qual o Estado tem uma interferência mínima.

No pouco tempo da sua gestão, o primeiro-ministro já nos forneceu indicações do que pretende. E o que pretende, com afobamento criticável e impiedade infantil, contraria qualquer ideia de equilíbrio na sociedade portuguesa. Ainda há dias, quando as brutais decisões de "austeridade" deram outra sarrafada nos nossos infortúnios, a imprensa publicou a lista dos homens mais ricos no nosso país. O fosso entre nós e os outros é cada vez mais sangrento. Creio que Passos Coelho abriu a caixa de Pandora, sem se aperceber muito bem da natureza e das consequências dos seus actos.


por Baptista Bastos, DN, Agosto 2011

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