sábado, 13 de agosto de 2011

Os transportes da Austeridade


Os transportes da austeridade



por Sandra Monteiro



Neste comboio, a próxima paragem tem sempre o mesmo nome: austeridade. Nem todos viajam nele, como se sabe pelas informações que dão conta da boa saúde das indústrias do luxo, do aumento de 17,8% da fortuna dos mais ricos em 2011, em relação ao ano anterior, ou da opção do governo de não aplicar aos lucros e dividendos a sobretaxa que vai cortar metade do subsídio de Natal das famílias, mesmo quando esta abrange até rendimentos provenientes de prestações sociais.


Decididamente, não vamos todos no mesmo comboio. A austeridade tem vítimas e beneficiários e só estes últimos podem falar da crise como uma grande oportunidade − de negócio, pois claro, assente em mudanças político-institucionais que partem dos poderes públicos e lhes dão luz verde. Os beneficiários da austeridade são aqueles para quem a maioria da população está a transferir, a uma escala e velocidade cada vez maiores, os rendimentos do seu trabalho e o tempo da sua vida que devia ser dedicado ao descanso, ao lazer, a projectar futuros. Que enquanto isso todo um país mergulhe na recessão, seja cada vez mais desigual e socialmente injusto não lhes altera o rumo. É o drama de uma sociedade que aceita gerar ricos e não riqueza: arrisca-se a ficar parada assistindo à acumulação e a perder os meios da redistribuição. Depois do austeritarismo, reconheceremos a sociedade em que teremos passado a viver?

A mais recente paragem da austeridade, activada a 1 de Agosto, foi nos transportes (pela segunda vez em 2011). No caminho, passou pelos salários, pensões e prestações sociais, que só congelam e diminuem; pelos medicamentos, taxas moderadoras na saúde, gás natural, bens alimentares e juros do crédito à habitação, que só aumentam; e pelas regras no mundo laboral, que não cessam de desproteger os trabalhadores. Com a desculpa de que a crise continua a exigir sacrifícios − como previu quem advertiu para as consequências da austeridade, a dívida e a recessão são espirais insustentáveis −, os defensores da austeridade recusam-se a abdicar dos ganhos que ela lhes traz e limitam-se a reforçar a dose administrada. Até onde for possível, parece ser o plano.

Nos transportes públicos anuncia-se que o actual aumento, em média de 15% mas que chega aos 20% no transporte rodoviário no Porto e aos 25% no ferroviário em Lisboa [1], pode não ser o último do ano. Não se conhece qualquer estudo relativo aos impactos que estes aumentos poderão ter nas empresas de transportes cujas contas supostamente se quer equilibrar. Neste tempo de menorização dos cidadãos e infantilização da democracia fala-se muito de contas, mas em vez de se considerar que a sua prestação implica apresentar cenários e explicar as opções feitas, recorre-se ao papão-remata-conversas do regime austeritário: «Está no Memorando da Troika!».

Sabe-se, contudo, que as dificuldades financeiras dessas empresas, que em alguns casos até tiveram com a crise um aumento muito significativo do número de passageiros, se devem menos a défices tarifários do que ao facto de terem sido obrigadas, por falta de investimento público, a pagar despesas de funcionamento e de construção de infra-estruturas recorrendo a créditos bancários cujos juros as atiram agora para situações deficitárias [2]. Os sindicatos dos transportes têm repetidamente chamado a atenção para esta situação, que à sua escala tem contornos muito esclarecedores sobre o drama da crise da dívida que o país enfrenta, prisioneiro da financeirização da economia e da abdicação por parte dos governos da utilização da Caixa Geral de Depósitos como verdadeiro vector de crédito público.

Sabe-se também que a elasticidade da procura dos serviços de transporte em situação de aumento de preços é complexa. Se em alguns casos as famílias farão todos os sacrifícios mas optarão pelo transporte público para se deslocarem, sobretudo para o trabalho, noutros casos, que muitas vezes já é o dos agregados com mais dificuldades económicas que tiveram de procurar habitação mais barata nas periferias urbanas, será menos dispendioso recorrer ao transporte individual. Com todos os impactos que isso tem para o ambiente e a mobilidade urbana, para o consumo energético (e os défices que acumula) e para o ordenamento e qualidade de vida nas nossas cidades. Sem falar, claro, dos efeitos sobre as próprias receitas das empresas de transporte.

Estes impactos não parecem preocupar quem olha para as mudanças em curso como prévias à privatização das carreiras e das áreas de negócio que mostrarem ser rentáveis, sem qualquer consideração pelo direito ao transporte como um dos alicerces da coesão territorial e social. Fomentar o transporte colectivo devia ser parte de uma política pública assente na mesma lógica de universalidade que está presente na saúde, na educação ou na segurança social: todos contribuímos na medida das nossas possibilidades, e desde logo através de impostos progressivos, que com os salários devem ser o lugar onde se faz justiça social, para que estejam acessíveis a todos as estruturas, equipamentos e meios humanos capazes de criar sociedades de bem-estar.

O ataque ao passe social, que depois dos aumentos de Agosto pode ser objecto em Setembro de nova escalada, com a tentativa da sua substituição por um título reservado aos que demonstrarem ter mais fracos rendimentos, baseia-se exactamente na mesma argumentação assistencialista desta reconfiguração neoliberal. Quer «emagrecer» o Estado, mas de forma cirúrgica: cortar tudo o que for possível no que as políticas públicas ainda redistribuem aos cidadãos, mas nada do que puder (vir a) ser apropriado por interesses privados e rentistas. Para que este projecto avance, cada vez que se diz que é socialmente injusto que quem ganha 10 mil euros por mês tenha passe social (terá mesmo?), o que realmente está a propor-se é que quem aufere esses rendimentos deixe de ser obrigado a contribuir para os transportes públicos colectivos. Assim se descapitaliza o serviço público que, subfinanciado, terá de ser redimensionado e transformado num pobre serviço para pobres.

É caso para perguntar há quanto tempo é que o projecto neoliberal não inventa nada de novo… E quanto tempo mais vai ser capaz de transportar os povos nesta viagem suicidária rumo a um futuro que nos atira para formas de vida anteriores ao Estado social. Os transportes públicos, pela forma regular como são utilizados e pela identidade inter-geracional, inter-classista e inter-profissional dos seus utentes, pode ser um laboratório muito interessante de experiências de apropriação do espaço público onde se cruzem formas de contestação social que abranjam todo o tipo de movimentos sociais. Algures entre o tempo da espera pelo que está a chegar e o tempo da viagem para um destino desejado pode estar a construção comum de outra próxima paragem que não seja a da austeridade. É que o tempo da austeridade é, mais propriamente, o da paragem próxima.



quarta-feira 3 de Agosto de 2011



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