segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

«Missão histórica»

por Sandra Monteiro

Há muito tempo que Pedro Passos Coelho assumiu com convicção ideológica o programa político que está a impor ao país. Recusou fazer o papel de quem não concorda nada com o que a Troika impõe mas está obrigado ao seu cumprimento. Não hesitou sequer em ir mais além, desejoso de mostrar aos credores, mercados e seus representantes que, melhor do que um ajustamento neoliberal, só um hiper-ajustamento neoliberal. Um ano e meio depois de ter sido eleito primeiro-ministro, e já responsável por dois orçamentos de Estado, anunciou que, até Fevereiro de 2013, irá apresentar um plano para cortar mais 4 mil milhões de euros na despesa pública. A parte de leão do corte incidirá na educação, na segurança social e na saúde. Mais co-pagamentos, despedimentos, concessões e privatizações; mais cortes nas transferências sociais e na provisão pública de serviços essenciais. Medidas, todas elas, que irão agravar o desemprego e a recessão (ainda mais do que o faz o aumento da receita fiscal) e que comprometem, por muito tempo, a capacidade que os poderes públicos terão de cumprir minimamente o contrato social da democracia.

Desse contrato faz parte o Estado usar os recursos públicos e os impostos – progressivos, não confiscatórios – para construir um edifício de prestação universal e redistribuição solidária visando combater as desigualdades socioeconómicas e criar sociedades de bem-estar. As dificuldades conjunturais que afectam as funções do Estado podem ter uma solução que não passe pelo desmantelamento de todo este edifício. Em primeiro lugar, porque as necessidades de financiamento externo do Estado português são já limitadas (excluindo o serviço da dívida, correspondiam em 2011 a menos 0,4% do produto interno bruto [1]). Em segundo lugar, porque basta uma renegociação da dívida que corte 2% nos juros para se conseguir a tal diminuição da despesa de 4 mil milhões de euros. Esse corte nos juros significaria tão-somente que Portugal passaria a pagar aos fundos credores mais ou menos o que eles próprios pagam quando se financiam. Mas para o governo de Passos Coelho essa hipótese não convém, porque não corresponde ao seu projecto ideológico.

A rápida degradação do país e o estilhaçamento de qualquer maioria social ou política que possa ter sustentado esta coligação contrastam com a manutenção em funções de uma solução governativa apodrecida, mas actuante. Entre protestos e acusações de incompetência política, o governo continua a impor as suas escolhas, a usar cada previsão, que a realidade contraria, como um amortecedor na escalada dos cortes seguintes. A situação é insustentável, mas ninguém sabe quando irão os obstáculos sociais e institucionais às políticas de austeridade, bem como o desastre económico que elas causam, traduzir-se em soluções governativas que ponham fim à fase austeritária do neoliberalismo europeu.

Enquanto isso, Passos Coelho adapta-se às dificuldades transformando a própria quebra de confiança entre governantes e governados numa imagem de marca. Os interlocutores aos quais se sente vinculado, já o sabemos, são os credores, os mercados e os seus representantes. Os cidadãos, reduzidos a variáveis de ajustamento, importam pouco perante a necessidade de manter a (des)ordem liberal do mercado. Por vezes isso é feito a inadmissíveis golpes de bastonadas, como na greve geral de 14 de Novembro passado; outras vezes orquestrando campanhas públicas e mediáticas contra sectores que demonstrem maior capacidade de resistir e gerar solidariedades internacionais, como se viu em resposta à admirável luta dos estivadores.

A estratégia de Passos Coelho de assumir a desvinculação em relação aos cidadãos não é nova. Já em Julho deste ano tinha admitido que se algum dia tivesse de perder umas eleições para salvar o país, então que se lixassem as eleições, porque o que lhe interessava era Portugal. Passados quatro meses, mesmo quem tenha visto nestas declarações desprendimento perante o exercício de cargos políticos estará a compreender que há posturas pelo menos tão perigosas quanto os «desvios eleitoralistas». Já nessa altura, o primeiro-ministro respondia à evidente falta de vocação da receita austeritária para salvar outra coisa que não o sistema financeiro e os mercados dizendo estar preparado para governar apesar dos portugueses. O refúgio num Portugal abstracto, sem povo, permitia-lhe reduzir a uma conveniente irrelevância a grande massa daqueles que a sua governação despreza.

O chefe do governo está preso numa contradição perigosa: persistindo no seu programa ideológico, vai precisar de assumir uma desvinculação maior dos cidadãos – e portanto da democracia – a cada medida que aprova. Isso foi evidente na entrevista que deu à TVI, a 28 de Novembro último, na sequência da aprovação de um orçamento para 2013 em que ninguém acredita, cuja constitucionalidade é urgente ser preventivamente verificada, e que junta ao habitual receituário neoliberal uma carga fiscal sem precedentes, ainda mais erodindo a base de apoio do governo. Na entrevista, o primeiro-ministro construiu uma narrativa de poder muito eivada de tonalidades heróicas, quase messiânicas. Sente agora que a coligação que dirige está a cumprir a «missão histórica» de «aproveitar a desgraça que aconteceu ao país para retirar o país da crise», através de «reformas ambiciosas». Pouco importa que as reformas em causa aprofundem a crise, com mais recessão e desemprego, e configurem a maior regressão social de que há memória na democracia portuguesa. O primeiro-ministro sabe que está a causar «muito sofrimento e dor social»: «Nunca me ouviram dizer que ia ser pêra doce». Incapaz de disfarçar a sobranceria, chega a perguntar em que parte do Estado estaríamos a pensar que ele ia cortar quando falou em cortar despesa pública…

A «refundação do Estado social» – cortes nas prestações sociais, salários e pensões, saúde e educação – é na entrevista apresentada como a forma de só termos o Estado social que os contribuintes podem pagar. Não lhe interessa se estes preferem cortes na dívida para defender o Estado social ou se até querem pagar impostos se eles forem justos e usados na provisão pública de serviços universais. O objectivo de Passos Coelho é transferir os recursos gerados pelos contribuintes para alimentar interesses particulares e negócios privados. Isso implica acabar com a universalidade (do acesso) e a gratuitidade (no acto da prestação) como pilares de uma organização dos serviços públicos de qualidade em que a justiça social se faz em sede fiscal.

Em Portugal e noutros lugares, mostra a experiência que os modelos não universais se comportam muito pior na generalização de oportunidades e no combate às desigualdades. Para o primeiro-ministro, pouco importa. E o drama é este: quanto mais a retórica de Passos Coelho associa a sua governação a uma «missão histórica» que há-de salvar este país de «piegas», mais se percebe que a sua verdadeira missão é transformar os cidadãos em cobaias de um laboratório neoliberal, em que todo o sofrimento social é desprezível. A questão é quando, e como, lhe é retirada esta oportunidade histórica.
sexta-feira 7 de Dezembro de 2012

Notas

[1] Ver Alexandre Abreu, «E depois do adeus», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Outubro de 2012.

http://pt.mondediplo.com/spip.php?article897 

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