segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Ulrich, Franquelim, Amorim...

Falemos da riqueza

por Sandra Monteiro

«Portugal tem de falar menos dos que têm dinheiro e mais dos que não têm», afirmou recentemente, em entrevista ao caderno de «Economia» do Expresso, o empresário Américo Amorim, considerado a segunda fortuna do país em 2012 [1]. A afirmação teve destaque de primeira página, mas falha como preocupação consequente com a pobreza que devasta as vidas de milhões de portugueses: o empresário acha que «a crise não existe», que «as pessoas não querem é entender que a economia mundial mudou». Espera que «continue o processo de reprivatizações» e esclarece: «é uma cachorrice» criticar quem tem dinheiro porque sem criação de riqueza não há erradicação da pobreza.

Américo Amorim limita-se a repetir o que dizem os neoliberais. É por isso que é preciso falar da riqueza. A narrativa não tem surpresa: o Estado deve respeitar a «livre iniciativa» e retirar-se de todas as áreas em que a intervenção pública competiria com os negócios privados; deve limitar-se a algumas funções constitucionais (Estado mínimo, assistencialista, algumas funções de soberania); e deve deixar a riqueza (privada) seguir o seu livre curso, porque ela há-de jorrar do topo até à base da sociedade.

Tudo isto é um mito, e desastroso. A riqueza não escorre «naturalmente» de cima para baixo, acudindo a quem mais precisa. Obrigar à sua redistribuição tem sido tarefa histórica de Estados fortes, de movimentos sociais e sindicais corajosos, e de cidadãos apostados na construção de sociedades mais coesas e igualitárias. Também não é nada «natural», mas o resultado de uma correlação de forças, o movimento da riqueza em sentido inverso, de baixo para cima, como acontece em períodos de enfraquecimento dos poderes públicos, de aumento da exploração do trabalho e de substituição da redistribuição por uma apropriação dos rendimentos dos que menos têm para enriquecer os mais abastados.

Nas sociedades humanas, como em qualquer ecossistema, o destino de uns influi no destino dos outros. O Estado social e democrático, com todos os seus defeitos e insuficiências, estabeleceu entre os cidadãos e os poderes públicos um contrato de solidariedade para implantar políticas de combate às desigualdades. Esse compromisso está a ser rompido. O capitalismo português, medíocre e riscofóbico, construiu poderosas redes com o poder político para capturar o Estado, parasitar os seus recursos e resolver incompetências e fraudes de gestão com resgates públicos. Assim se acumula em algumas mãos a riqueza que deixa outros sem comer ou sem abrigo. Temos de recuperar e criar os instrumentos de política (financeira, fiscal, industrial) para a conter e redistribuir, ou não teremos uma sociedade decente. Reapropriarmo-nos dessa exigência ética será a melhor forma de assustar os que hoje, com sobranceria, aplaudem mais austeridade, mais privatizações e mais negócios libertos de regulações, sejam quais forem as consequências sociais ou ambientes.

Enquanto essa reapropriação não acontecer, haverá uma escalada de palavras e actos que nos chocam e oprimem. Liberta de alguma autocensura moral pela consolidação do seu poder, parte das «elites» vai dando voz ao seu desprezo pelo mais frágeis. Foi o que aconteceu com Fernando Ulrich, presidente do BPI. Amplos sectores da sociedade insurgiram-se contra as suas afirmações, apelou-se ao boicote do banco.
 Mas não parece possível envergonhá-lo nem mudá-lo. Em Outubro de 2012 dizia que é claro que os portugueses «aguentam» mais austeridade; no fim de Janeiro, ao apresentar lucros de 249 milhões de euros do BPI – depois de ter pedir ao Estado uma «ajuda» de 1,5 milhões de euros [2] –, voltou à carga. Acha que promover a extrema pobreza não faz mal nenhum, que as pessoas sobrevivem. A mensagem para os governantes é clara: vão no bom caminho.

Para pessoas como Ulrich está tudo a correr bem. A banca ganha sempre. Os gregos e os portugueses que «aguentam», muitos deles sem tecto, são o outro lado da moeda. É por isso que o uso que faz do «nós» é obsceno. Quando pergunta «isso não lhe pode acontecer a si ou a mim porquê?», e responde que sim, «também nos pode acontecer» [3], sabe que é mentira. Não somos todos iguais, e a manter-se este rumo sê-lo-emos cada vez menos. Erguem-se os muros entre as classes, as barreiras a uma mobilidade que eleve as condições de vida da população. No topo, o enriquecimento consolida-se; nas classes médias e baixas, a mobilidade é apenas descendente.

Quando o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho se recusa a comentar as declarações de Ulrich invocando não ser cliente nem accionista do BPI, dá-nos uma imagem real do apagamento, face ao poder financeiro, da identidade de governante e até de cidadão. Não é um lapso; é um traço do projecto neoliberal na era da financeirização. Este projecto vive de conluios, capturas e parasitismos. A acumulação de lucros alimenta-se do que o poder político lhe permite fazer, dentro e fora da lei. Vive de colocar as pessoas certas nos cargos certos, e não ouvir críticas.

Recordemos a reacção de Passos Coelho às críticas à nomeação do antigo administrador do BPN – Sociedade Lusa de Negócios (SLN), Franquelim Alves, para secretário de Estado do Empreendedorismo, Competitividade e Inovação: ele «sempre agiu de forma correcta nos locais onde passou». O ministro da Economia Álvaro Santos Pereira garantiu a sua «idoneidade»: ele «foi convidado exactamente pelo seu 
 percurso profissional» [4]. Ambos sabiam que Franquelim Alves conhecia e ocultou do Banco de Portugal os prejuízos da gestão de Oliveira e Costa, como o próprio admitiu à Comissão de Inquérito ao BPN [5]. Ambos escolheram um gestor que não hesita em recorrer a meios pouco escrupulosos, senão ilegais, para defender interesses privados, lesando os cidadãos por mais de uma década. A rede de SLN agradece; a ética de serviço público é escorraçada.

A arrogância do poder financeiro não existiria sem a segurança e a rédea solta que lhe dá o poder político. A sua solidez mostra o crescente fosso que separa a riqueza da pobreza. É o rosto do aprofundamento da tragédia das desigualdades. O inqualificável abuso da resiliência das vítimas da austeridade faz parte da mesma narrativa sacrificial que desde 2008 culpa os cidadãos pela crise do sistema financeiro. Mas estes têm em breve duas oportunidades para se unirem e recusar este estado de excepção que lhes rouba a vida: a 16 de Fevereiro, na manifestação convocada pela CGTP, e a 2 de Março, num uníssono que afirmará que o povo é quem mais ordena. Já no passado isto não agradou nada aos que concentram a riqueza.

quinta-feira 7 de Fevereiro de 2013

Notas

[1] Expresso, 2 de Fevereiro de 2013.
[2] «Estado injecta 6150 milhões de euros no BCP, BPI e CGD», i online, 5 de Junho de 2012.
[3] «Ulrich: “Se os sem-abrigo aguentam porque é que nós não aguentamos?”», Expresso online, 31 de Janeiro de 2013.
[4] «Passos Coelho: Estou tranquilo quanto à “idoneidade” e “experiência” de Franquelim Alves», Jornal de Negócios online, 4 de Fevereiro de 2013.
[5] «Ministro da Economia chamado de urgência à AR sobre Franquelim Alves», Público online, 4 de Fevereiro de 2013

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