segunda-feira, 13 de maio de 2013

Demissão e outras urgências

por Sandra Monteiro

Quando o presidente da República Aníbal Cavaco Silva fala, percebemos que decidiu, pelo menos por agora, sustentar política e institucionalmente o miserável mundo novo que o governo está a criar, mesmo quando isso afronta o consenso social contra as políticas do executivo. Estamos perante uma forma original de governo de iniciativa presidencial, que isola governo e presidente numa resposta a que a maioria da sociedade se opõe.

Quando o ministro das Finanças Vítor Gaspar fala, em particular no conforto dos seus pares europeus, compreendemos que o regime austeritário, isto é, o aprofundamento da captura de rendimentos e poder por mercados que capturaram os Estados, é de facto uma sociopatia, uma forma de destruir os povos e a democracia. Ele precisa de actores como Gaspar, que não se sentem «coisíssima nenhuma» vinculados às regras democráticas e retiram tanto prazer das suas engenharias macabras que são capazes de dizer coisas destas, sem serem demitidos: comparando com outros países sob «ajustamento», «vemos padrões similares, mas como podem imaginar é muito mais bonito quando se olha para o ajustamento de Portugal e é por isso que eu o uso como paradigma» [1].

Como paradigma e não só. A «beleza» deste «ajustamento» (desigualdades, desemprego, pobreza, desespero) é tão deslumbrante que justifica o novo papel de Portugal na Europa: cumprir, com convicção e disciplina, todos os compromissos com os credores financeiros (em detrimento do contrato social com os povos) faria do país um caso de sucesso exibido aos países sob ajustamento (e às economias excedentárias) para os convencer a submeterem-se, amortecendo o alargamento geográfico da austeridade de classe. Na linguagem do governo, a missão de Portugal seria criar «pontes» e «diálogo entre o Norte e o Sul». Dir-se-ia que a «austeridade expansionista», mito que teve de ser abandonado, significa agora ajudar a levar velhos mundos ao mundo, num desígnio em que o inferno é o limite. Tragédia e farsa, tudo ao mesmo tempo.

E quando fala o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho? Mais parece que dispara, com munições cada vez mais mortíferas, sobre alvos enfraquecidos, tudo em nome da protecção, usando instrumentos públicos, dos florescentes meios de negócios e mercados financeiros. Nesta contradição fundamental entre os interesses da maioria da população e os da minoria de privilegiados encerra-se a esperança de intensificar as revoltas colectivas que acabem com o desespero de vidas reduzidas à sobrevivência por uma coligação que já nem mascara o desprezo pelos cidadãos.

Recuperar essa esperança implica demitir o governo – usando instrumentos institucionais, greves, acções de rua ou desobediência civil – e impor uma solução alternativa que substitua a austeridade por emprego e desenvolvimento sustentáveis. Para o conseguir, tem de se combater cada nova medida pelo que ela representa no imediato: um roubo aos pensionistas que degrada de forma inaceitável as suas condições de vida, uma subida da idade de reforma que põe cada vez menos pessoas a trabalhar cada vez mais, um aumento maciço do desemprego e perdas salariais entre os funcionários públicos que prejudicam todos os trabalhadores, uma degradação dos serviços públicos que favorece os privados, etc. Mas terá também de se denunciar os seus efeitos de médio e longo prazo: desemprego estrutural, destruição do Estado social, mais desigualdades e pobreza, espiral recessiva, endividamento externo galopante.

Igualmente importante é desmistificar as várias mutações que a política de «cortar e punir» vai fazendo para perdurar. Já conhecemos pelo menos três. Na primeira fase da crise, os governos procuraram convencer os cidadãos de que eram eles, e não o sistema financeiro nem os conluios deste com os poderes público e mediático, os culpados pela crise («viveram acima das suas possibilidades», «são preguiçosos»). A utilização, ainda hoje, de termos como «cansaço face aos sacrifícios» ou «fadiga fiscal» ainda é herdeira desse argumentário da austeridade punitiva, «redentora» e «expansionista», mas perdeu eficácia quando todos perceberam que ela destrói todas as hipóteses de resolução dos problemas económicos e sociais.

O argumento central foi por isso readaptado: funcione ou não, a austeridade é a única alternativa para aceder aos empréstimos externos e pagar salários e pensões. Apesar de ser comprovadamente falsa [2], esta ideia continua a ser repetida. Ainda no anúncio de novas medidas no passado dia 3 de Maio Passos Coelho o afirmou [3]. Mas ali ficou patente que o centro da argumentação já mudou outra vez, porque já não colava. Os cidadãos, além de não acreditarem que a austeridade funcione, sabem que há políticas alternativas válidas, a começar pela reestruturação da dívida. Isto obrigou a uma nova argumentação: a única escolha, afirmou então Passos Coelho, é entre o cumprimento dos compromissos externos e o «incumprimento que teria como provável desfecho a saída do euro com consequências catastróficas para todos». Isto é, há alternativas, mas ninguém arriscará alternativas «catastróficas».

Pouco importa, na perspectiva dos actuais governantes, se o rumo actualmente seguido é ele próprio catastrófico, impedindo o emprego, o crescimento e até o cumprimento dos compromissos, sendo responsável por futuros «resgates» e por uma saída do euro. O que importa é brandir uma ameaça que não se fundamenta e manipular medos que impeçam o alargamento do consenso em torno de rumos políticos alternativos. O que importa é evitar um debate racional sobre o euro que respeite a informação, a reflexão e as escolhas dos cidadãos.

O dossiê que publicamos neste número de Maio sobre Portugal no euro quer justamente contribuir para um debate racional e respeitador e para desarmar o poder desta nova intoxicação. Convidámos um conjunto de economistas que têm criticado a resposta austeritária à crise a reflectir sobre as implicações de ficar e de sair do euro. Os artigos de Carlos Carvalhas, Francisco Louçã, João Galamba, José Vieira da Silva, Nuno Teles/Alexandre Abreu e Octávio Teixeira são a prova de que o debate é urgente e que pode ser feito sem manipular a informação e sem chantagens emocionais.

O estado de corrosão da democracia a que chegámos, no contexto de uma arquitectura institucional da União Europeia e da moeda única que abdica da coesão geográfica e social, não nos permite já estar perante escolhas fáceis. No Le Monde diplomatique pensamos que a partilha de informação e pontos de vista, aliando dimensões nacionais e internacionais, e nunca prescindindo de uma análise de classes e dos interesses em confronto, constitui um contributo para as revoltas críticas e colectivas que podem inverter a tragédia em curso e permitir escolhas democráticas orientadas para a justiça social.
sexta-feira 10 de Maio de 2013

Notas

[1] www.dinheirovivo.pt/Economia....
[2] Ver Alexandre Abreu, «E depois do adeus», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Outubro de 2012.
[3] Declaração disponível em www.portugal.gov.pt/media/99....

 http://pt.mondediplo.com/spip.php?article919

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