Esta segunda-feira (excepcionalmente, porque o programa passa demasiado tarde para os meus hábitos e frequentemente é desinteressante), vi o Prós e Contras na RTP1. O que vi ter-me-ia mandado para a cama mais cedo a não ser por uma coisa: a Raquel Varela (declaração de interesses: somos casados). Não fosse por ela, e o programa teria sido completamente soporífero. Foi a Raquel a única que produziu opiniões fundamentadas, apoiadas nos seus próprios estudos ou em estudos de outra gente séria que visivelmente conhece, em defesa do Estado social, do emprego, da dignidade de quem vive do seu trabalho, contra a emigração como ‘solução’. Apesar dos seus apelos, nenhum dos representantes do painel da direita defendeu uma ideia, uma sequer, com algum fundamento. O mais articulado deles três tentou levar a conversa para o campo da ideologia e das grandes abstracções, terreno mais propício para quem não faz os trabalhos de casa. Os grandes agradecimentos que a apresentadora Fátima Campos Ferreira fez à Raquel no final do programa só se explicam, aliás, por ser óbvio que a Raquel lhe «salvara» o programa.
Ora isto incomoda a direita (e até uma certa esquerda «alcatifada», como pode ver-se por aqui e aqui). Vai daí, o propagandista da Situação José Manuel Fernandes e um site do Millennium BCP tiveram uma inspiração ‘divina’: pegaram num fait-divers do programa (um miúdo de 16 anos, Martim Neves, que foi apresentado como exemplo de empreendedorismo por ter vendido pela Net um número indeterminado de sweat-shirts) e montaram todo um circo de propaganda anti-Raquel. Ora este circo tem a vantagem de expor com bastante rigor aquilo que é a direita portuguesa. Esta reedição apressada d’ O Menino entre os doutores’ (original em Lucas 2:42-51) apresenta-nos o menino Martim não a ser ouvido atentamente pelos doutores, como no episódio bíblico, mas, alegadamente, a «desfazer» de uma penada toda a argumentação da doutora. E é ver a hostilidade contra a ‘doutora’ (contra o conhecimento e o trabalho sério) que para aí vai destilada por esta direita ignorante, carroceira e chico-esperta, esta direita que deu ao mundo Relvas e Passos Coelho, esta direita que comanda um país com uma taxa de emprego de doutorados pelos nossos «empreendedores» de 2,6% (contra, por exemplo, 34% na Holanda ou Bélgica – Relatório da FCT citado pelo DN, 13-5-2013).
Mas que disse, afinal, o menino Martim, transformado em campeão da campanha de propaganda da direita: que mais valia ganhar o salário mínimo do que estar desempregado. E isto mereceu aplausos na sala! E que nos revela a ‘sabedoria’ precoce do Martim? Que o desemprego de 1,4 milhões de portugueses não é uma infelicidade, um triste acaso – ele serve mesmo para nos fazer aceitar salários inferiores a 500 euros e achar que podia ser pior. E não se pense que não existe uma base social relativamente alargada para estas ‘ideias’ bárbaras. Existe, sim. As dondocas que exploram uma loja num centro comercial que só é viável graças a salários inferiores ao salário mínimo (com a desculpa que são part-times, por exemplo). Os «empreendedores» chicos-espertos do import-export que mandam vir uns contentores de roupa ou de artigos de desporto, por exemplo, da China, da Índia ou da Indonésia e os vendem dez vezes mais caros. Nenhuma desta gente produz seja o que for, mas vão-se safando na vida à custa dos outros. A base social deste governo é feita em boa medida de gente assim, que, claro, são adeptos fanáticos do salário mínimo de 485 euros.
Falemos um pouco mais do «empreendedorismo». Este empreendedorismo que nos vende o governo e a direita é uma coisa muito diferente da iniciativa e do trabalho árduo. No debate do Prós e Contras, a iniciativa e o trabalho árduo estavam representados pela Raquel Varela, que trabalha muito mais horas do que devia, já publicou seis ou sete livros e nem eu sei já quantos artigos em revistas científicas (com avaliação pelos seus pares) e acabou de ser reeleita a semana passada, por unanimidade, presidente de uma associação internacional de 34 instituições académicas de muito prestígio. O ‘empreendedorismo’ do governo e da direita não é mais do que uma alcunha miserável para a expulsão de trabalhadores das empresas e a proletarização das camadas médias. São trabalhadores despedidos que passam a ser formalmente empresários, mas na verdade continuam dependentes – muitas vezes, senão quase sempre – das próprias empresas que os despediram e passam a não ter nenhuma da protecção social que antes tinham: tornam-se únicos responsáveis pela sua segurança social, deixam de poder estar doentes, de poder tirar férias… São os proprietários de pequenos negócios (restaurantes, empresas de serviços dos mais diversos matizes…) que mais não fazem do que explorar a sua força de trabalho e a da sua família, em micro-empresas onde o capital circula mas não se acumula. É quase mais fácil ganhar o euromilhões do que ver um deles sair da pobreza.
A dúvida mais importante que me fica depois destes espectáculos é: por quanto tempo mais vamos aturar que o governo desta gente continue a destruir-nos, a nós e ao país? É que quanto mais dilatado for esse tempo, mais demorado será reconquistar para a vida civilizada tudo aquilo que eles têm vindo a destruir.
Sem comentários:
Enviar um comentário