sábado, 7 de dezembro de 2013

CTT, ENVC Propriedade pública

por Sandra Monteiro

Neste fim de ano, o governo acelerou o programa de reconfiguração do Estado, uma vez mais com intuitos puramente ideológicos e excedendo as próprias metas definidas pela ultraliberal Troika. É obra. Com a privatização dos CTT – Correios de Portugal e com o processo para liquidar a empresa pública Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC), seguida da subconcessão ao grupo privado Martifer, prosseguem as engenharias neoliberais que usam o Estado para transferir para o privado negócios muito lucrativos (ou que passarão a sê-lo), a golpes de reduções salariais, despedimentos, precariedade, falta de segurança, degradação da qualidade de serviços prestados e bens produzidos.

Estes dois processos têm vários aspectos em comum. Um dos mais abordados, e bem, é o nebuloso ambiente de secretismo e insuficiente transparência que nenhuma «urgência» pode justificar e que exige investigações isentas sobre eventuais situações de favorecimento ou ilegalidade. Mas os conluios que desprezam ou lesam o interesse público devem também ser analisados de um ponto de vista propriamente político, avaliando as escolhas de sociedade que estão a ser feitas «em nosso nome».

A montante destes processos está um poder político apostado em desembaraçar-se, formalmente ou na prática, de propriedade pública, que a todos nós pertence. O ataque ao público é diverso. Corrói o Estado social (educação, saúde, segurança social), deteriora condições laborais, recusa investimento público contracíclico e martela na comunicação social as pretensas vantagens da gestão privada. Mas não menos importante do que o ataque aos direitos e serviços públicos é efectivamente a questão da propriedade pública. Porque, como bem se vê, ainda que ela não garanta por si só a prossecução de finalidades do interesse público, pelo menos nasce ancorada a elas e é o melhor garante da possibilidade de se adoptarem estratégias adequadas à sustentabilidade económica e social das comunidades.

Este governo e a resposta austeritária à crise financeira vão, contudo, no sentido contrário. Para eles, o mil vezes anunciado «pós-Troika» é o de um país a retroceder nos níveis de educação, saúde e protecção social; a empobrecer; a alimentar o capital financeiro; a ter baixíssimos salários e altíssima precariedade; e a braços com uma tragédia demográfica que explode com o desemprego e a emigração. É também o de um país que se desenvencilha da propriedade pública para poder desobrigar-se da produção, dos serviços e dos trabalhadores, oferecendo a preço de saldo bons negócios aos privados. Pelo meio, os cidadãos perdem serviços que dão lucro e criam vínculos sociais, bem como infra-estruturas produtivas capazes de animar o desenvolvimento económico. E perde-se a ocasião para debater a estrutura produtiva da economia nacional, assente num perfil de especialização há mais de uma década associado ao elevado endividamento externo do país (não à dívida pública, essa causada pela crise).

Nisto, os casos da privatização dos CTT e da anunciada subconcessão dos ENVC não podiam ser mais eloquentes. O negócio dos CTT, empresa que desde 2005 apresentava lucros acumulados de 438,7 milhões de euros, lesa significativa e duradouramente os cofres do Estado. Mas não se trata apenas de um negócio contra o erário público, que os privados agradecem. À alienação de lucros futuros junta-se a desistência criminosa de um dos maiores empregadores nacionais e de um dos instrumentos políticos, os serviços postais, que mais asseguram a coesão social e territorial. Aliás, os CTT associam esses serviços aos de uma pequena entidade financeira onde os cidadãos têm acesso às suas pensões e reformas, com todas as vantagens da proximidade.

Foi também por causa desta proximidade que a carta que o presidente do Conselho de Administração dos CTT dirigiu aos cidadãos foi acolhida com tanta indignação. Longe de ser uma carta de Boas Festas, a missiva suscitou uma estranheza dorida entre quem leu o convite para «transmitir a sua ordem de compra de acções» misturado com as facturas (água, luz e gás) já difíceis de pagar. E veio marcar um corte que nenhum endereçamento «Para si» pode disfarçar: entre um novo «nós» (a empresa resultante da privatização) e um novo «vocês» (o leitor convidado a «juntar-se a nós na privatização dos CTT»), destruindo a relação previamente existente com os «nossos» CTT. Tudo isto rematado com a ficção liberal assente na ideia de que os seres humanos se movem por permanentes cálculos dos lucros que podem ter: «Privatização dos CTT – Esta oportunidade é dirigida a si». Privatizando a propriedade, o Estado cauciona a redução da complexidade das motivações e lógicas de actuação humanas ao interesse privado. Terão de ser os cidadãos a mostrar o valor que dão à cooperação, ao público e ao comum, até em defesa da sua liberdade individual.

Eloquente exemplo desta capacidade é a luta dos trabalhadores dos ENVC. É nela que encontramos a noção do interesse colectivo que devia estar a ser protegido pelos poderes públicos. A sua acção empenhada na defesa dos postos de trabalho e de uma empresa estratégica para a economia da cidade e do país, merece a admiração e a solidariedade activa de todos os cidadãos e é fonte de esperança na travagem do processo de subconcessão. Eles têm posto a nu as contradições e a actuação ruinosa dos poderes públicos, primeiro arrastando uma gestão danosa da empresa pública e agora avançando para o encerramento, o despedimento dos 609 trabalhadores e a subconcessão de terras e infra-estruturas a um grupo industrial cujo passivo beneficiará do ajustamento das necessidades da empresa ao lucro, mas de que sairá muito prejudicado um trabalho internacionalmente reconhecido pela sua competência e qualidade. Em vez de apostar na viabilização de uma empresa a que não faltam encomendas nem mão-de-obra qualificada, o Estado opta por desbaratar capacidade instalada. Assim abdica de mais um pedaço do frágil tecido produtivo e absorve os gastos económicos e sociais de atirar mais trabalhadores e famílias e para o desemprego.

A propriedade única é, de facto, outro dos sonhos anti-democráticos do neoliberalismo, sistema que odeia o pluralismo na economia. Tal como acontece com o pensamento único, dispositivo destinado a enquadrar as fronteiras do que é possível (pensar e acontecer), os fautores da propriedade única querem que prevaleça na economia uma única lógica, com pretensão universal apesar de apenas espelhar os interesses particulares de algumas forças económicas, a começar pelo capital financeiro. A lógica da propriedade única, como se vê pela diversidade de engenharias que vão das privatizações às concessões e subconcessões, pode até manter formalmente alguma dimensão pública, mas o que a caracteriza é isto: ela quer-se finalmente livre dessas maçadoras forças de bloqueio ao lucro que são as finalidades sociais, os interesses colectivos. É por isso que o verdadeiro debate sobre o Estado e as políticas públicas que queremos tem de passar por aqui, pelo papel da propriedade na democratização da economia e da sociedade.

sexta-feira 6 de Dezembro de 2013

aqui:http://pt.mondediplo.com/spip.php?article962

1 comentário:

Unknown disse...

tambem ficava bem umas linha sobre os milhoes que se têm dispendido -sem retorno, apesar da grande importancia nacional da I.Naval(mas só como principio)
Tambem a corrupção que grassava na direcção dos CTT(Horta e Costa até foi indiciado) nos tem custado muitos milhoes, aparentemente sem que mereça umas linhas de repudio. Claro que tudo em defesa do que é naconalizado nosso -para pagar claro porque os lucros esvoaçam como nuvens bem altas.

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