segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Austeridade - Emigração forçada

por Sandra Monteiro

São já mais de 121 mil os portugueses que emigraram durante a crise da austeridade, ultrapassando, em 2012, um máximo histórico que só havia sido alcançado em 1966, numa década condenada pelos horrores da ditadura, da guerra e da fome. Uma emigração desta dimensão, ainda por cima numa conjuntura de diminuição dos fluxos imigratórios e de saldo demográfico negativo, tem consequências gravíssimas para a sustentabilidade do país. Realidade temida ou concretizada, passou a fazer parte do quotidiano da maioria da população. Os aeroportos e estações de comboio, mas também as casas das cidades e aldeias, ou as praias e os campos por onde passeiam famílias e amigos, tornaram-se lugares estranhos de dor, amor e raiva. Fala-se de quem parte e de quem fica; cala-se a saudade que já se sente e os receios de que não corra bem. Nunca é fácil encontrar o equilíbrio certo entre exprimir a falta do abraço, da presença, e dar alento aos que se enchem de coragem e partem para onde possam ter futuro, concretizar sonhos e projectos.

Convivemos com esta realidade todo o ano, porque se parte a qualquer momento e se chega, tantas vezes, pelo calendário dos preços mais baixos do mercado das viagens. Mas, para quem é possível, o fim e o início do ano, à volta das festas que reúnem famílias e amigos, constituem picos de reencontros e despedidas. Ora, foi justamente este o período escolhido pela presidência da República para lançar uma operação de lavagem da emigração, escondendo as suas tragédias por baixo das roupagens da «juventude talentosa», da «nova diáspora» e do «exercício de lugares de destaque» nos países de emigração. Assim vestida, glamorosa e chique, a tragédia já estava decente para se sentar à mesa do Natal. Só faltou acusar quem emigra forçado de emigrar abaixo das suas possibilidades …

A operação, com grande impacto em muita comunicação social, foi organizada em torno do lançamento, a 23 de Dezembro, do Conselho da Diáspora Portuguesa, criado por iniciativa de Aníbal Cavaco Silva e na presença de Pedro Passos Coelho, Paulo Portas e José António Durão Barroso. O presidente da República expôs a narrativa neoliberal sobre a emigração, aliás em perfeita sintonia com as políticas relativas à imigração, como a que agora outorga títulos de residência a estrangeiros que invistam 1 milhão de euros na economia local (ver na edição de Janeiro o artigo de Benoît Bréville).

O objectivo deste Conselho é simples: mercantilizar a emigração. Mas não toda. Só o emigrante que «rende», isto é, o jovem, muito qualificado, de excelência, talentoso, competitivo e cosmopolita. O discurso lança um apelo este o nicho de emigração: vistam a camisola da marca Portugal, melhorem a imagem externa do país e favoreçam os investimentos. Como afirmou Cavaco Silva, «além da ligação afectiva», empenhem-se em «projetar Portugal no estrangeiro pela positiva», para «contribuir para corrigir alguma desinformação que existe sobre o nosso país» e «ajudar a melhorar a credibilidade», criando «condições para o investimento no país por parte de investidores estrangeiros», para o «crescimento económico em Portugal e para o aumento do emprego» [1].

Com o tempo, estudos aprofundados darão a conhecer as características dos mais recentes fluxos migratórios. Mas os dados já existentes mostram o quanto esta narrativa neoliberal não adere à realidade. A «nova diáspora» tem muitas características da velhíssima emigração: na esmagadora maioria, não é uma escolha, é forçada pelo desemprego, pela precariedade e por baixos salários; não abrange maioritariamente pessoas muito qualificadas, mas pessoas com formação média e baixa (nisto reproduz a situação do país: o atraso de décadas na formação superior, ainda das mais baixas da União Europeia, e as imensas melhorias dessas taxas mais recentemente, permitindo falar pela primeira vez numa «fuga de cérebros) [2]. A «nova diáspora» pode ter como característica marcante abranger gerações mais novas, mas nem por isso poupa gerações mais velhas. O desemprego, a precariedade, os baixos salários e a crescente desprotecção social atravessam as gerações e o território, as cidades e os campos, o litoral e o interior – só distinguem as classes sociais.

A narrativa neoliberal sobre a emigração da austeridade tem traços ideológicos que vêm de longe. A tónica é sempre colocada na liberdade e nas escolhas, quando os contextos de acção dos cidadãos e as políticas que lhes subjazem são a própria negação das condições materiais e substantivas para a autonomia e as escolhas livres. A cegueira voluntária que reduz a emigração a jovens diplomados, bem-sucedidos e potencialmente rentáveis para o país (dito, sem rir, pelos mesmos que negam o ensino superior como um direito universal e gratuito, dizendo ser um investimento das famílias em si próprias), não é apenas uma forma de criar falsos conflitos entre gerações e de remeter para responsabilidades individuais os infortúnios de vidas que na verdade, estão a ser desbaratadas por enquadramentos políticos e institucionais com origem no país e na União Europeia.

O que a «nova diáspora» tem de novo e positivo (mais pessoas com formações superiores, gerações mais habituadas ao contacto externo e mais apoiada em redes internacionais, mais acesso a tecnologias que encurtam distâncias, mais cidadãos apetrechados para não desistirem dos seus sonhos) foi muito construído, depois do 25 de Abril, com a oposição do neoliberalismo. O que a «nova diáspora» tem de velho e revelho são as desigualdades económicas, sociais e territoriais que a democracia não resolveu e um país com debilidades estruturais (produtivas, redistributivas) que a crise financeira e as respostas austeritárias, no quadro da União Europeia e do euro, só vieram agravar.

Os neoliberais sabem bem que a emigração é forçada pela sua austeridade. Mas fingem que não, porque o seu objectivo é mais vasto, aplica-se a quem está dentro ou fora do país. Nesta empresa em que vão transformando Portugal, só interessam os cidadãos rentáveis. Aumentar a exploração do trabalho – cada vez mais mercantilizado e desligado dos direitos que os poderes públicos deviam proteger, porque o trabalho é um meio de aceder a uma vida digna –, faz parte de um projecto que, internamente, usa os poderes públicos para transferir recursos dos cidadãos para a esfera do privado. Forçados a emigrar, esses cidadãos geram recursos noutros países e, compreensivelmente, sentem-se menos afectos aos poderes públicos do país que os abandonou à sua sorte. É então que Cavaco Silva vem lembrar que o afastamento em relação ao público, ao comum, não deve ser feito em benefício da «ligação afectiva» – pressupõe-se que à família, aos amigos, talvez mesmo aos pastéis de nata e ao clube do coração – mas da «credibilidade» e do «investimento» na marca Portugal… e até do «aumento do emprego» no país. A austeridade não é só promotora de desigualdades e anti-democrática. É moralmente repugnante.

sexta-feira 10 de Janeiro de 2014

aqui:http://pt.mondediplo.com/spip.php?article969 

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