
Cento e vinte e dois anos depois, os yankees mantêm-se à margem
das teorias ao mesmo tempo que se agarram a todos os esquemas peregrinos que
prometem restringir o apetite de um sistema capitalista insaciável.
Funcionando sem interrupção, o capitalismo gera cada vez maior
riqueza para os seus amos enquanto devora todos os outros à sua volta.
Da reforma reguladora a estilos de vida alternativos, de políticas
fiscais a esforços cooperativos, os auto-proclamados opositores deste
monstro económico voraz têm anunciado êxitos
recém-cozinhados no seu caminho destruidor. Enquanto… "as
pessoas [nos EUA] têm que tomar consciência dos seus interesses
sociais, fazendo asneiras atrás de asneiras…", conforme Engels
exprimiu numa outra carta para o seu amigo americano Frederich Sorge, os
capitalistas satisfeitos continuam a lucrar alegremente.
A brutal acusação de Engel da alergia norte-americana à
teoria e a afinidade por um activismo sem norte foi aligeirada por um optimismo
baseado mais na esperança do que na realidade: "O movimento vai
passar por muitas e desagradáveis fases, desagradáveis
especialmente para os que vivem no país e têm que passar por elas.
Mas estou firmemente convencido de que as coisas agora vão
avançar aí… apesar do facto de que os americanos por
enquanto irão aprender quase exclusivamente com a prática e
não tanto com a teoria".
Essa convicção pode parecer desajustada hoje visto que muitos do
que afirmam a sua oposição ao capitalismo continuam a desprezar a
teoria e a investir em esquemas utópicos e a isolar questões
escaldantes de uma crítica geral do capitalismo e das suas
políticas sociais.
Nada ilustra melhor o diagnóstico de Engels do que a actual
discussão pública sobre a desigualdade e a pobreza. É uma
tentação chamar uma mania ou uma moda a este interesse
recém-criado, visto que parece surgir apenas do alarme do actual
Presidente. Mas a actual fúria em tratar da desigualdade
económica é muito mais cínica. Com eleições
nacionais provisórias no horizonte e uma corrida presidencial
competitiva à porta, os líderes do Partido Democrata notificaram
o Presidente em final de mandato de que chegou a altura de acordar as bases do
Partido, os sindicatos, as organizações progressistas de uma
só causa, os esquerdistas da internet, e os abastados liberais sociais.
Daí que, apesar de a desigualdade e a pobreza não terem sido
descobertas recentemente nem terem chegado há pouco tempo, o alarme sobe
de tom: a desigualdade reina entre nós! A pobreza está a aumentar!
Claro que isto é verdade. Só meia dúzia de anormais pode
negar que o crescimento de rendimentos e de riqueza para a maior parte das
pessoas nos EUA tem estado estagnado ou em declínio desde há
algum tempo, desde a década de 70. (Até o Representante Paul
Ryan, um ideólogo da ala direita, reconhece que há 47
milhões de cidadãos americanos que vivem na pobreza). Os cuidados
de saúde têm estado em crise, com milhões sem quaisquer
opções significativas de saúde e um número
incalculável dos que morrem prematuramente. O sistema de
educação, tal como as infra-estruturas físicas,
está subfinanciado e a desmoronar-se. O emprego continua a diminuir
à medida que os trabalhadores desmoralizados saem do mercado de
trabalho. Em resumo, a pobreza, a doença, o declínio do
nível de vida, o crime – todos os problemas decorrentes da
negligência social e política – continuam em escalada, tendo
aumentado terrivelmente durante os últimos quarenta anos.
Simultaneamente, uma minoria privilegiada tem beneficiado de rendimentos e
riqueza crescentes, um forte aumento na fatia do bolo económico desse
grupo. Enquanto a economia avançou, os "poucos felizardos"
também avançaram, mas a um ritmo mais acelerado.
Sem teoria
"A nossa agenda deve ser comandada por dados, e não por
retórica política ou ideológica ridícula".
É o que diz o senador Cory Booker, a super-estrela em ascensão do
Partido Democrata, num debate no jornal com o ícone da política
Republicana, o Representante Paul Ryan. Patrocinado pelo
The Wall Street Journal (A Half Century of the War on Poverty
, 1-25/26-14) para comemorar o quinquagésimo aniversário da
"Guerra contra a Pobreza" da era Lyndon Johnson, os dois competidores
demonstram a futilidade de tratar a pobreza sem uma compreensão ampla e
profunda das suas raízes e da sua história – o
"como" e o "porquê" da teoria social. Representando a
Esquerda "respeitável" na pantomima política
bipartidária dos EUA, Booker ensaia uma série de paliativos do
pensamento liberal, baseados na educação, na
formação profissional, na aprendizagem, na
descriminalização do uso de drogas e num esqueleto de rede de
segurança destinado a reduzir o número dos que são
suficientemente desgraçados para cair num nível inferior aos
cargos governamentais.
As soluções, para Booker, aparecem através dos
instrumentos dos negócios e do comércio: investimentos,
análise de custos-benefícios, retornos ao investimento,
poupança de custos, etc. Em vez de melhorar a vida das pessoas, a tarefa
de reduzir a pobreza parece um projecto MBA desta nova geração de
políticos do Partido Democrata. Assenta em correlações
suspeitas, muitas vezes desactualizadas, encontradas outrora entre
níveis de educação e futuros resultados económicos
para vender a educação como um elixir mágico. Estas
verdades, há muito não verificadas, são agora abaladas
pela ausência de empregos bem pagos, pelo valor decadente de graus
académicos mais altos, e pelo enorme crescimento da dívida
estudantil. A pobre defesa de Booker da rede de segurança esburacada que
se mantém como uma herança baça do New Deal e da
legislação anti-pobreza de Johnson, centra-se nos coupons de
alimentos e na Medicaid, uma fórmula para manter a vida à justa,
mas não para fugir da pobreza. Junte-se uma pitada de sermão tipo
Moynihan contra as mães solteiras e obtém-se o programa
anti-pobreza da nova geração dos líderes do Partido
Democrata – na verdade uma manta de retalhos de "absurdos
económicos" dignos do desprezo de Engels.
Quanto aos Republicanos, esses não discutem nada, são apenas
contra os planos do Partido Democrata. Para eles há apenas uma
constatação: quarenta e sete milhões de cidadãos
americanos mantêm-se na pobreza. Embora a "Guerra contra a
Pobreza" possa ter alterado as vítimas da pobreza demograficamente,
os pobres continuam entre nós e em números teimosamente elevados.
Para o Representante Ryan, a caridade e a persuasão – os
remédios de há dois séculos – são a
única alternativa ao intervencionismo liberal e ao seu fracasso.
Ora bem, os liberais vão afastar-se destas conclusões duras.
Podem e vão apontar para significativas bolsas de melhorias, para
declínios temporários nas taxas de pobreza, ou para
experiências sociais promissoras.
Mas o que não podem explicar nem resolver é a persistente
reprodução da pobreza no nosso sistema económico
. Durante quase quarenta anos, aumentaram as medidas de desigualdade de
rendimentos e de riqueza, assinalando um aumento inevitável da pobreza.
Mesmo os que não gostam de teoria podem certamente ver uma
relação entre a desigualdade crescente e o aumento da pobreza.
Espantosamente ausente do programa de Booker é qualquer plano
significativo para redistribuir os rendimentos e a riqueza. Podemos atribuir
essa ausência ao facto de a quase totalidade dos funcionários
eleitos de ambos os partidos estarem na mão das grandes empresas e dos
ricos. Mas na periferia da política dominante, podemos ouvir vozes
defendendo medidas para aumentar a economia sem ser à custa do
empobrecimento das massas e/ou para redistribuir a riqueza através dos
impostos.
Os Krugmans, os Reichs, os Stiglitzs e outros que tais gozam de uma medida de
independência fornecida pelo seu título académico e pela
estatura intelectual amplamente gabada, que lhes permite uma fidelidade mais
esquiva aos patrões das grandes empresas. Enquanto economistas
apreciados, percebem que o crescimento continuado da desigualdade
acabará por provocar pesadas consequências económicas ou
sociais. Mas as suas panaceias, tal como as da instituição
política, apenas tratam os sintomas duma doença persistente que
gera permanentemente a desigualdade, o desemprego e as crises. Um estudo da
história económica demonstra que as explosões de
crescimento económico e a tributação progressiva atenuaram
de facto, ou até inverteram levemente a desigualdade e o crescimento da
pobreza, mas com o tempo ambos regressaram à sua trajectória
anterior.
Uma dose de teoria
Um novo estudo de um economista francês, Thomas Piketty, apresenta a
opinião de que a tendência a longo prazo do capitalismo é
produzir e reproduzir a desigualdade. Embora o lançamento do seu livro
em língua inglesa,
Capital in the Twenty-first Century
[NR]
, só esteja previsto para Março, já gerou grande
discussão no espectro dos comentadores americanos. O colunista do
New York Times,
Thomas B. Edsell, afirma que o livro
"sugere que as políticas liberais tradicionais do governo quanto a
despesas, tributação e regulamentação não
servirão para diminuir a desigualdade".
(
Capitalism vs. Democracy
, 1-28-2014)
Como é isso possível? O consenso liberal e
social-democrático exige despesas governamentais,
tributação progressiva, e regulamentação das
grandes empresas como a resposta para a desigualdade crescente. Um monte de
premiados com o Nobel advoga estes instrumentos, afirmando que são meios
eficazes para combater a desigualdade. O que é que Piketty vê que
eles não vêem?
História
Piketty não tem medo de estudar a história da desigualdade, uma
condição necessária para qualquer teoria
socioeconómica. O que ele conclui, segundo Edsell, é que:
Por outras palavras, a desigualdade crescente é o normal para o
capitalismo e a sua diminuição é uma
aberração. Os apólogos querem que acreditemos no
contrário, que o capitalismo não contém um gene para a
desigualdade. Ao contrário dos seus pares yankees, Piketty está
disposto a estudar a economia enquanto
sistema
– capitalismo – e explorar a sua trajectória
histórica.
Essas duas disposições metodológicas dão origem a
uma teoria da desigualdade, uma teoria incompleta, mas de qualquer modo uma
teoria.
Ora Piketty e o seu colaborador frequente, Emmanuel Saez, são amplamente
reconhecidos por se encontrarem entre os principais especialistas que
documentam a desigualdade tanto a nível mundial como nos EUA. Sem
dúvida, isso dá grande credibilidade à sua
afirmação nuclear para identificar uma forte
correlação entre o curso típico do capitalismo e o
crescimento da desigualdade.
Claro que os estudantes de teoria marxista ou os seguidores deste blogue
não ficarão admirados com as conclusões de Piketty.
Há cento e cinquenta anos que os marxistas defendem que a desigualdade e
o empobrecimento são produtos obrigatórios do sistema
capitalista. Ou seja, a lógica do capitalismo necessita de desigualdade
crescente. Colocando o lucro no coração do organismo capitalista,
os marxistas compreendem que a riqueza fluirá invariavelmente para a
pequena minoria dos donos do capital e fugirá dos produtores. É
este processo de geração de lucros que esmaga todas as barreiras,
todas as "reformas", para canalizar os recursos da sociedade para a
classe capitalista.
A argumentação de Piketty é um antídoto bem-vindo
para a penúria de teoria explicativa apresentada pelos polemistas
liberais e social-democratas. A controvérsia atiçada pela
argumentação de Piketty muito antes da disponibilidade em
língua inglesa é um sinal seguro de que oferece algo fora do
convencional.
No entanto, a sua interpretação da trajectória a longo
prazo do capitalismo, em especial a sua distanciação da norma,
pode estar incompleta. Nomeadamente, considera o período entre 1914 e
1973 – uma época em que ele afirma que o crescimento da
desigualdade foi retardado incaracteristicamente – como um período
em que a taxa de retorno ao capital após impostos ficou muito
atrás do crescimento económico. Podíamos alegar que isso
talvez seja demasiado simples e mecânico, a época foi certamente
uma época em que muitos factores contribuíram para mudar o curso
"normal" do capitalismo e frequentemente serviram de amortecedor para
o crescimento da desigualdade, constituindo em conjunto uma
tendência.
Mas seria uma simplificação situar estes factores totalmente nos
acontecimentos económicos ou políticos, e descurar a
política. Por exemplo, durante a maior parte do século vinte o
capitalismo pagou uma taxa anti-soviética à classe trabalhadora
como uma inoculação contra a ameaça da ideologia
socialista ou comunista. Esse factor não desempenhou um papel menor na
moderação da desigualdade, criando a miragem de igualdade na
classe trabalhadora e garantindo a paz laboral.
Uma observação mais de perto da interessante tese de Piketty tem
que esperar pela publicação do livro.
Para uma robusta teoria da desigualdade
Mas não precisávamos de esperar por Piketty para encontrar uma
teoria adequada da desigualdade. Elementos da teoria de desenvolvimento
socioeconómico de Karl Marx apresentam a chave para compreender a
produção e a reprodução da desigualdade na nossa
época, assim como em tempos mais antigos.
Claro que há muitas causas possíveis para a
concentração da riqueza. O roubo, a boa sorte, a fraude, a
desonestidade são apenas algumas das formas pelas quais os seres humanos
redistribuem a riqueza desde a antiguidade. Essas causas ocorrem frequentemente
na história, mas apenas ocasionalmente. A única causa
sistémica
da desigualdade é a expropriação do trabalho de uns por
outros sob a protecção de normas sociais. Marx chamou
exploração
a esse processo. Foi o primeiro a identificar as suas formas e a sua
trajectória. Foi o primeiro a explicar adequadamente os mecanismos de
expropriação. Consideradas à luz da teoria da
exploração de Marx, as desigualdades da escravatura, do
feudalismo e, claro, do capitalismo, revelam-se com todas as suas
características específicas. Assim, a concentração
da riqueza produzida pela expropriação do trabalho dos escravos,
dos servos, e dos trabalhadores contratados está ligada a formas
especiais de exploração socialmente protegidas.
A exploração explica como aparece e continua a desigualdade. Sem
o reconhecimento deste mecanismo entranhado na actividade económica
capitalista, os liberais e os social-democratas não conseguem explicar a
persistência da desigualdade. Vão aplicar medidas reformistas
desadequadas para deter a maré da concentração da riqueza
e dos rendimentos decorrente da exploração capitalista, mas
não vão conseguir impedir a maré com as suas reformas.
Nunca é demais sublinhar que a desigualdade resulta de um
processo,
um processo definitivo de relações económicas
capitalistas. Comentadores fora da órbita marxista consideram a
desigualdade um
estado-de-coisas,
um estado-de-coisas que existe entre diversos agrupamentos sociais. Embora
deplorem genuinamente a miséria gerada pela desigualdade, não
sabem que fazer para encontrar a relação quantitativa adequada
entre diferentes grupos constitutivos da sociedade. É claro, uns
têm mais do que outros, mas qual é a justa
distribuição dos bens da sociedade? Aceitando que existem
desigualdades, qual é a forma óptima de atribuir quotas de
riqueza? Quanto e para quem? Toda a gente deverá receber uma quota
igual? Os de baixo devem receber uma quota 10% maior? 20%? São estas as
questões que deixam perplexos os não-marxistas.
A melhor resposta das melhores cabeças da filosofia social
anglo-americana é um princípio muito desagradável e
insatisfatório, chamado eficácia de Pareto. Em vez de resolver o
puzzle da desigualdade, o princípio de Pareto justifica uma
situação desigual desde que não reduza o bem-estar de
outros, incluindo os menos afortunados. Dada a impossibilidade teórica
de estabelecer qual é exactamente uma justa distribuição
de bens e serviços, os modernos filósofos académicos
burgueses tentam estabelecer qual será a situação menos
condenável, embora desigual. Nada demonstra melhor a vacuidade
teórica do pensamento social anglo-americana do que esta tarefa errada e
impossível de determinar uma justiça distributiva duma vez por
todas, para sempre e para toda a parte. Não há estado-de-coisas
idealizado que possa responder a esta questão. A questão em si
mesma está mal orientada.
Pelo contrário, na nossa época, a tarefa de reduzir a
desigualdade, de avançar com a justiça distributiva, é
eliminar a exploração. Não pode haver uma
solução ideal, perfeita para a questão da desigualdade,
mas há uma forma de eliminar a causa primária da desigualdade
indefensável numa sociedade capitalista:
acabar com a exploração do trabalho
.
Os liberais e os social-democratas não têm resposta para o desafio
da direita de que os trabalhadores estão hoje imensamente melhor sob o
capitalismo do que estavam há duzentos anos. É claro que é
verdade que muitos trabalhadores vivem hoje mais, são mais
saudáveis e têm mais tempo livre do que os seus homólogos
há dois séculos. A teoria marxista não contesta este
ponto. Pelo contrário
, afirma que a lógica do sistema capitalista
tende
a empobrecer o povo trabalhador em todas as épocas
. Se o capitalismo consegue suprimir níveis de vida é uma
questão totalmente diferente. Outros factores – contra-ataques
laborais, escassez de mão-de-obra, descida dos preços dos meios
de subsistência, etc. – pode amortecer, até mesmo eliminar
essa tendência por algum tempo, mas a tendência nunca desaparece.
A tendência para o empobrecimento decorre logicamente da
compreensão marxista de que a força de trabalho, no capitalismo,
é uma mercadoria como qualquer outra
. Os capitalistas compram e vendem a força de trabalho dos trabalhadores
tal como fazem com qualquer outro factor de produção ou
distribuição. E, tal como com qualquer outro custo, procuram
pagar o menor preço possível por isso. Consequentemente, o
sistema capitalista, através de acções de corte de custos
feitos por capitalistas individuais (ou grandes empresas) está
permanentemente a exercer pressão na compensação aos
trabalhadores para a reduzir a níveis de simples
manutenção – ou seja, à pobreza. O único
constrangimento sistémico a essa pressão é a necessidade
de garantir a mão-de-obra no futuro.
Assim, encontramos no marxismo uma base para compreender (e tratar) a
desigualdade e a pobreza. Graças a uma teoria que identifica as duas
desgraças intimamente ligadas com mecanismos específicos
historicamente desenvolvidos, e que conecta a sua produção e
reprodução a sistemas económicos, podemos evitar o
lamaçal e a ineficácia das abordagens liberais e
social-democratas. Ambas mistificam as causas, oferecem um bálsamo em
vez duma cura, e não conseguem deter a reprodução
continuada da desigualdade e da pobreza. Como os charlatães e os
curandeiros, os liberais e os social-democratas podem dar mais conforto ao
paciente, mas só extirpando o cancro do capitalismo se pode acabar com o
sofrimento.