domingo, 9 de fevereiro de 2014

Praxes, bolsas Integração democrática

por Sandra Monteiro


A liberdade, a democracia e a igualdade são também uma prática. Quando se criam estruturas cujo funcionamento não foi sequer pensado como forma de atingir práticas livres, democráticas e igualitárias, no seu lugar não se instala um vazio. Surgem práticas de sentido contrário. Como não haveria de ser assim se, mesmo governando para o bem comum, não há memória de uma sociedade ter resolvido todos os problemas ligados à formação da escolha por sujeitos livres, ao equilíbrio entre horizontalidade e representação democrática, à eliminação das desigualdades geográficas, de classe ou de género?
O problema, hoje, com a neoliberalização acelerada pelas políticas de austeridade, é que a sociedade está a funcionar contra a democracia, a liberdade e a igualdade. Isso nota-se em tudo, do favorecimento do capital financeiro ao esmagamento das condições de vida de trabalhadores e pensionistas, da ocupação do público pelo mercado ao desprezo pela cultura. Como podíamos semear tanto vento, durante tanto tempo, sem colher agora tempestades?

Dois dos problemas que recentemente saltaram para o debate público, relacionados com as praxes universitárias e as bolsas de investigação científica, são, cada um a seu modo, sintomas de uma doença que se instalou nos estabelecimentos de ensino superior e na sociedade. A integração dos estudantes na vida académica e a dos investigadores no mundo do trabalho tem tido evoluções há muito preocupantes; estamos na fase aguda da doença. Há que identificar os seus sintomas, mas não é realista pensar que eles desaparecem sem olhar para as suas causas, multifactoriais e sistémicas.

Comecemos pela questão das bolsas de investigação científica, que retomamos nesta edição com o artigo de Ana Estevens e Sónia Pereira («“Salgam o chão e aguardam que nada floresça”: É este o futuro da investigação e da ciência em Portugal?»). Os resultados do mais recente programa de bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) privaram de financiamento mais de mil investigadores que dele dependiam para prosseguir trabalhos de reconhecida qualidade. Na origem destes cortes, para lá de processos menos rigorosos que urge averiguar, está um imenso desinvestimento público na investigação e na ciência em Portugal, com os poderes públicos a quererem investir apenas nos segmentos orientados para o mercado e as empresas privadas. Desta lógica privatística ficam de fora as áreas do conhecimento não vocacionadas, ou não exclusivamente vocacionadas, para prosperar na esfera puramente mercantil, essa utopia neoliberal.

Mas não é esta a única origem do problema dos cortes das bolsas. As proporções que o drama atinge para os bolseiros e para o futuro da ciência resultam também de, recém-chegados à formação superior, termos permitido que a investigação recaísse sobre trabalhadores em situação de total precariedade, sem receberam subsídios de férias ou de Natal, sem direito à protecção social e que se agora não têm sequer subsídio de desemprego.

Enquanto estes trabalhadores, apesar das actividades de investigação e docência, não eram integrados com vínculo nas instituições de ensino superior, estas sofriam cortes do financiamento público, os professores que se aposentavam não eram substituídos e as horas dedicadas às aulas e à investigação davam lugar à corrida aos fundos próprios e às feiras de merchandising para promover os seus «produtos». No mercado competitivo, assim criado, há que atrair clientes. Estes, os estudantes, foram pagando propinas cada vez mais elevadas e agora é-lhes até proposto que troquem o seu direito ao apoio social por «trabalho» em cantinas e bibliotecas («remunerado» em abatimentos nas propinas, no alojamento e na alimentação). Pelo menos foram poupados à mentira de que as propinas serviriam para lhes garantir um ensino com mais qualidade e mais apoio social…

São estas as formas de integração que permitimos que se generalizem. A luta pelo emprego com direitos e por políticas públicas de emprego é comum a todos os trabalhadores, como bem sabe a «geração mais qualificada de sempre», empurrada para o desemprego ou a emigração. Mas enquanto os investigadores não conseguem ter carreiras conformes à sua formação, não vêem o seu trabalho ser valorizado, qualquer que seja a área do saber, e vão ficando reduzidos às classes mais elevadas, é esta a realidade que temos: desvalorização das formações, arbitrariedade, desigualdades sociais, desemprego, precariedade.

Quando os estudantes ingressam no ensino superior, muitos deles estão já formatados por estas práticas de integração neoliberal. Já lhes foi amplamente transmitido que os poderes públicos não os protegem nem lhes dão oportunidades iguais. Muitos já associam a maior probabilidade de terem êxito e emprego à obediência aos poderosos, à competição que não olha a meios, à legitimidade da violência sobre os mais frágeis. O projecto neoliberal é também esta formatação dos corpos e das mentes.

Mas, quando os estudantes entram na vida académica, que mecanismos estão estabelecidos para contrapor a esta uma outra integração? A redução da duração dos graus convida a uma aceleração da socialização. A maioria das associações de estudantes está retirada, não na despolitização, mas na política de «perdurar agradando a todos»: se representam todos os estudantes, dizem, não podem tomar posição (perceberão que negam o associativismo estudantil como escola de democracia?). Pelo meio, e quase imperceptivelmente, a gestão democrática praticamente desapareceu do ensino superior público, privando os estudantes de um instrumento essencial de integração na vida académica, em cooperação com professores, investigadores e trabalhadores não-docentes. Transformados em clientes de um ensino superior que foi deixando de ser um direito universal e gratuito, os estudantes vão-se dividindo entre solventes e carenciados.

O crescimento – em número, tempo e violência – das praxes académicas não é alheio a esta realidade socioeconómica. Quer isto dizer que possam ser justificadas as reiteradas práticas de sexismo, homofobia, humilhação e insulto dos mais novos, violência física e simbólica, e coacção à participação? Não, de modo algum. As praxes são, no que importa, práticas repugnantes e inaceitáveis em democracia, dentro e fora da academia. Mas significa que há vantagens em compreender o vazio de liberdade, democracia e igualdade em que elas se instalam e prosperam. Se, questões penais e criminais à parte, aceitarmos que a proibição destas práticas nada resolveria (bem pelo contrário), então compete a todos – e em primeiro lugar a estudantes, instituições de ensino e poderes públicos –, multiplicar os espaços de integração alternativa. Espaços que estimulem a crítica e questionem o poder e as hierarquias; que promovam a participação horizontal e a cooperação para o bem comum; que combatem pela criação de cidadãos autónomos e pela eliminação das desigualdades. O músculo democrático exercita-se ou perde-se. Já devíamos saber.

sexta-feira 7 de Fevereiro de 2014

aqui:http://pt.mondediplo.com/spip.php?article974

1 comentário:

Unknown disse...

As praxes foram re introduzidas nas escolas superiores, fundamentalmente nas privadas ou politécnicos. As bem estabelecidas (tecnico, Classica9 as praxes nunca foram sentidas pelos estudantes como necessárias ou sequer desejadas . coimbra era o microcosmos com a tradição coimbra bem instalada.
Os nossos desempregados são a unica grande corporação que não argumenta com as comparações como resto da UE(atéporque está nos primeiroslugares) para defender a continuação dos investimentos "importantissimos" para o futuro do país; vejam-se os grandes grupos (porfessores, tropas,medicos, estivadores, controladores) e as argumentações são invaravelmente semelhantes = o bem publico está a ser esquecido. Claro que o bem publico desde que gratuito fica muito abalado se andarmos a formar doutores para enriquecer as empresas americanas e europeias duma forma desigual ao que os estrangeiros fazem nas empresas nacionais.Mas é a sina destes países cheios de recursos eformados napoleonicos como Portugal. Nós somos nós e a ralé é a ralé.

Publicação em destaque

Marionetas russas

por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...