sexta-feira, 21 de março de 2014

A grande fraude da dívida

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Disse há poucos dias, num programa de TV, sobre a dívida pública, que quem produz 100 não pode pagar 130. Contestaram, dizendo que pode. É evidente que pode. Até podemos pagar 140 ou 150. A questão é: como?
O património privado foi efectivamente desvalorizado na crise de 2008 – chama-se a isso correr riscos. Aliás, se os Portugueses tivessem poupado em vez de consumido tinham visto as suas poupanças desvalorizadas, porque foi isso que aconteceu: desvalorização real da propriedade privada. Mas os novos “empresários” não correm riscos: chamaram o Estado e pediram ao Estado para assumir essas perdas. E o Estado disse que sim, emitiu dívida, que passou de 70% para 130% do PIB. E para pagar essa emissão de divida destruiu os salários e as pensões e colocou à venda o património público realmente rico e valorizado (privatizações). A dívida pública é isto: um negócio privado que faliu, cujos lucros nunca foram públicos mas os prejuízos foram imediatamente socializados – uma espécie de “comunismo só para os ricos”, como alguém jocosamente lhe chamou.
Antes do «como?», vamos esclarecer alguns passos indiscutíveis: há três obras publicadas em Portugal – cujos estudos jamais foram contestados por alguém – que explicam, com detalhe (incluindo despesas de pessoal e até compra de papel ou agrafos!), que os Portugueses pagam todo o Estado social e que a dívida dever ser alocada às mais-valias imobiliárias, aos negócios da banca e às PPPs. O nosso livro Quem Paga o Estado Social em Portugal?, o livro de Carlos Moreno sobre as PPP (Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro), o livro de Paulo Morais sobre a crise (Da Corrupção à Crise. Que Fazer?) e o estudo, também notável, de Pedro Bingre do Amaral sobre as mais-valias imobiliárias provam que a dívida é um negócio privado cuja essência não diz respeito aos gastos da grande maioria dos Portugueses. A comunicação social dar 10 minutos de tempo de antena a estes trabalhos e 12 horas a comentadores que não avançam um único facto, um único argumento sólido e têm um CV que se resume a escreverem em blogues e terem colunas de opinião não invalida em nada este facto. Uma mentira mil vezes repetida não passa a ser verdade.
A maioria dos Portugueses não deve nada ao Estado, suporta todas as funções sociais, é responsável pelo pagamento de 75% de todos os impostos e é por isso credora do Estado: o Estado deve-lhes os salários, as reformas, a educação de qualidade, saúde digna, cultura e lazer.
Vamos agora ao «como?».
Se assumíssemos uma taxa de crescimento de 2% e um juro real da dívida de 3,7% (o que é um cenário optimista) e pressupondo que a dívida se manteria nos 128% (ou seja, nem sequer a abatíamos), então o saldo primário teria de ser de cerca de 2% do PIB. Isso implica que o Estado teria que gastar menos do que o que arrecada no equivalente a 2% do PIB ainda que depois de pagar os juros se registe défice (o Estado prevê gastar o equivalente a 4,4% do PIB em juros da dívida em 2014). Claro que criamos um cenário fantasioso para demonstrar que mesmo numa condição de crescimento otimista, este crescimento estaria longe de ser para todos . Essa é, portanto, a fórmula para, na melhor das hipóteses, perpetuar o inferno dos trabalhadores e pensionistas portugueses. Enquanto se puder esvaziar os bolsos dos Portugueses e o património público, a dívida é pagável.
O problema não acaba aqui, porém. Estes senhores, para quem a história não existe, olvidam que a crise económica mundial inflectiu-se por volta de 2009 nos países mais ricos e que os choques cíclicos ocorrem, desde os anos 20 do século XIX, com períodos de cerca de 6/7 anos. Isto é, daqui a pouco tempo estaremos a assistir a outra crise. Até lá, ou o BCE consegue aumentar a taxa de juros de referência de forma sustentada para níveis do período anterior à última crise, o que fará os juros da dívida portuguesa subir ainda mais, ou entraremos na próxima crise sem mecanismos de política contra cíclica, ou seja, sem a possibilidade de baixar a taxa de juros para criar liquidez e “dinamizar a economia”. Numa economia voltada para exportações isto significa a paralisia generalizada. É fácil de perceber que para os trabalhadores portugueses, qualquer que seja a política do BCE é sempre um inferno a somar a outro inferno.
Podemos, em alternativa, suspender a dívida pública e colocar sob controle público o sistema bancário e financeiro, deixando a quem fez os negócios os riscos e os prejuízos. É arriscado? Claro que sim, mas é mais arriscado manter esta política que vai rebentar em menos de uma década com o país, incluindo com os empreendedores jovens que a defendem, porque a política de exportações não sobreviverá à próxima crise cíclica.
Podemos reconverter Portugal à indústria de guerra, transformar a AutoEuropa em fábrica de tanques e 1 milhão e 400 mil desempregados em soldados e pagamos 160, 170, o que for necessário. É ver a dívida dos EUA, que a nenhum empresário incomoda porque está assente na maior indústria de guerra da história: os EUA saíram da crise em 2009 com metade da produção da IBM, General Electric e Boeing a ser dedicada, directa ou indirectamente (bombas, electrónica ou capas de sofás de aviões) à guerra. Não podemos esquecer que o sonho do crescimento em Portugal – chegou a taxas de 7% e mais – foi entre 1960 e 1973. Tirando alguns pormenores – expulsaram-se milhares de camponeses do campo para a cidade, produziu-se material bélico e fez-se uma guerra contra os povos de África durante 13 anos, expulsou-se 1 milhão e meio de pessoas, em emigração, aguardando as remessas que sobravam, porque dormiam rodeados de ratos em bairros de lata –, a produtividade aumentou e claro que assim podemos pagar.
Até podemos pagar mais, sobretudo enquanto jovens sem qualquer conhecimento sobre a economia ou a sociedade continuarem a ser tropa de choque, acarinhada, de um sistema que desde 2008 tem espalhado a miséria como panfletos que caem do céu e explicam, no meio de uma guerra, que «está tudo bem, estamos a vencer».
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