segunda-feira, 9 de junho de 2014

Neoliberalismo europeu: Eurofagia

por Sandra Monteiro

Na União Europeia, quem vive apenas do seu trabalho empobrece, trabalhando cada vez mais e de forma cada vez mais precária. Quem cai no desemprego conta os dias que faltam até perder qualquer protecção social e ser abandonado pelos poderes públicos à sua sorte ou, enquanto essa almofada ainda existir, ter de recorrer ao apoio de familiares e amigos. Numa situação de desemprego estrutural, o desespero ou o destemor herdado de aproximações cosmopolitas levam centenas de milhares a procurar na emigração um futuro negado no país de origem. Mesmo receando ser objecto de discriminações, racismos e xenofobias. Os que ficam, sem conseguir para si e para as suas famílias mínimos de subsistência para uma vida decente, desaprendem a esperança ao mesmo tempo que se desvinculam de uma comunidade política cuja forma de organização e cujas escolhas parece contorná-los, sem sequer os ver, cada vez que fala de liberdade, igualdade ou democracia. Umas vezes explodem ao mínimo contacto, outras implodem quase em segredo.

Esta Europa é o espaço de uma união monetária disfuncional e de tratados para-constitucionais, como o Tratado Orçamental, que amarram as políticas públicas, com o auxílio da austeridade e da dívida, a políticas de estagnação ou recessão económica e a políticas anti-sociais de empobrecimento e desigualdade crescentes, que empurram os povos para a rejeição insubmissa como única forma de obter mudanças significativas. Esta Europa é a que se prepara, depois do roubo dos rendimentos dos trabalhadores, através dos poderes públicos e em grande benefício do sistema financeiro, para dar um novo passo nesse saque por via da criação do Grande Mercado Transatlântico. Com efeito, aprova-se em grande segredo um acordo de comércio livre com os Estados Unidos que fará com que os Estados sejam processados pelas multinacionais, em milhares ou milhões de euros, sempre que, por exemplo, as disposições laborais, sociais, ambientais ou sanitárias públicas prejudiquem os lucros que elas pensam ter direito a arrecadar (ver, nesta edição, o extenso dossiê sobre este tema).

Mesmo na sua diversidade, os resultados das eleições de Maio para o Parlamento Europeu só são surpreendentes para quem não tiver em conta que o projecto europeu está a revelar aos povos um rosto claramente eurofágico. E nem sequer se trata apenas de uma eurofagia aguda, como alguns picos que entram pelos olhos adentro podem fazer crer – esta eurofagia é crónica. Os poderes económicos e políticos que controlam a configuração da arquitectura institucional e monetária europeia trabalham estruturalmente no sentido de governar em segredo, dispensando ou contrariando a participação popular. O alheamento dos povos em relação às eleições europeias, que a generalidade da comunicação social instiga, traduz-se há muitos anos em níveis recorde de abstenção. Quaisquer que sejam as razões para os cidadãos não exercerem o seu direito de voto, são inevitáveis as consequências negativas que isso tem para o exercício do músculo democrático e para o enfraquecimento da soberania popular. A este elemento, que não é novo, juntou-se agora, em particular em países como Portugal, a grande dimensão dos votos brancos e nulos, que é difícil dissociar de uma não identificação com a oferta da representação ou, pelo menos, de uma descrença na sua capacidade de efectivar mudanças positivas.

A crescente rejeição que as políticas neoliberais inspiram, sobretudo nos países mais afectados pelo austeritarismo, não impediu que as forças que as representam mantivessem condições para exercer a sua hegemonia, sendo até reforçadas por outras forças que, mesmo com designações como «nacionalista», «populista», «extrema-direita» ou «direita extrema», aí estarão para intensificar as políticas de classe que acumulam riqueza entre os privilegiados ao mesmo tempo que despedaçam os povos. A derrota europeia de forças socialistas ou sociais-democratas, que terão pensado poder defender valores (democracia, igualdade) e construções do pós-guerra (Estado social, serviços públicos, emprego) sem responder à ofensiva liberal no terreno institucional, monetário e económico, impõe profundas reflexões sobre a falta de vocação (ou incapacidade) do projecto europeu e neoliberal para proteger as populações europeias. A mesma reflexão se impõe às forças políticas e sociais claramente opostas às alavancas europeias e nacionais que enriquecem a finança e as multinacionais. Elas continuam a ter dificuldades em chegar aos lugares de poder que lhes permitiriam deixar a sua marca em políticas de afronto à construção em curso e participar nas difíceis escolhas que podem garantir níveis de bem-estar material às populações (emprego, salário, serviços públicos, prestações sociais).

Há aqui uma urgência, que impõe a consideração de três tempos e a intervenção em todos eles, em simultâneo. O tempo daqueles cujas vidas são estilhaçadas para alimentar a acumulação do capital é um tempo curto, muito curto. Quando se sobrevive dia a dia, semana a semana, mês a mês, as respostas têm de surgir já e, quando isso não acontece da parte das esquerdas, não será de espantar que a esperança, mesmo que vã, se desloque para os lobos que não se importam de lhe vestir a pele. O tempo da conjuntura em que se preparam e ocorrem eleições, em que se negoceiam orçamentos e acordos, não pode ser alheio àquela urgência nem contar apenas com os desafogos conjunturais que advêm de decisões pontuais como a do Tribunal Constitucional português, que tanto desorientam a Troika, o governo e os Fernandos Ulrichs nacionais. É certo que elas aliviam algum sufoco na vida dos cidadãos e que, aumentando a procura interna, estimulam a economia. Mas são melhorias episódicas, e o garrote da dívida e dos tratados logo ressurge. E por fim, a esta escala, o tempo longo da estrutura é aquele em que se tem aprofundado a neoliberalização europeia. Sem atacar esta arquitectura, qualquer futuro digno é um lugar longínquo e, no presente, os trabalhadores e os desempregados terão sido completamente sacrificados para garantir a liberdade financeira e comercial.

O processo acelerado de eurofagia neoliberal, que no futuro deverá fazer os historiadores questionarem o uso que temos dado a palavras como «europeístas» e «eurocépticos» (quais destroem a possibilidade de um projecto europeu?), pode ter vários desfechos. Sociedades e territórios cada vez mais polarizados entre ricos e pobres, em que a liberdade é apenas apanágio das mercadorias e do capital, e em que os cidadãos são carne para canhão – talvez não em guerras no terreno militar, mas numa guerra económica sem quartel –, não pode ser uma possibilidade para quem entende que os vínculos que nos ligam uns aos outros têm de servir para a emancipação individual e colectiva de cada ser humano, de cada comunidade. É tempo, é sempre tempo, de arregaçar as mangas e de usar as forças que temos para alimentar as forças dos que connosco partilham esperanças de um futuro digno.

sexta-feira 6 de Junho de 2014

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