sábado, 21 de junho de 2014

O populismo: antecâmara do fascismo (2)


por Daniel Vaz de Carvalho [*]

 
Fariseus, limpais o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está cheio de rapina e maldade. Insensatos!. Lucas, 11 - 39
Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão e não reparas na trave que está na tua própria vista. Lucas, 6 - 41
4 – O POPULISMO "ERUDITO"

O populismo é uma máscara. Eis algumas: a do justicialista, a do moralista, a do "erudito". A ciência económica do populismo "erudito", resume-se a que salários e pensões têm de descer, direitos laborais serem suprimidos – a "flexibilização" – para os lucros subirem e se tornarem "atrativos para o capital". Além disto são incapazes de acertar ou cumprir as suas próprias previsões.

Escutados sem contraditório e mesmo com veneração, a comunicação social controlada exibe uma legião de propagandistas alinhados com o fundamentalismo neoliberal, cuja erudição se manifesta prioritariamente em manipular dados económicos.

No seu catecismo está inscrito como dogma que tudo que é público é mau, ineficiente. O que dá lucro deverá ser privatizado, quanto aos sectores socialmente apoiados, terão rentabilidade garantida à custa do OE e dos preços aos utentes. É esta a sua versão de eficiência: monopólios, oligopólios, capitalismo rentista a coberto da concorrência "livre e não falseada".

Entregar as funções económicas do Estado a interesses privados, liquidar as funções sociais, são objetivos prosseguidos pelo governo anti Constituição PSD/CDS, insistentemente veiculados como "mudança de paradigma", "reformas" e "ímpeto reformista".

Do alto da sua arrogância o populismo "erudito" manipula dados. Para "provar" a insustentabilidade do sistema de pensões inclui neste grupo apoios sociais que não fazem parte do sistema contributivo. São as prestações sociais para minorar a miséria provocada pelo sistema capitalista a centenas de milhares de pessoas. Apesar disto afirmam: "as pensões e salários pagos pelo Estado ultrapassam os 70% da despesa pública, logo é aí que se tem que cortar".

Estes "sábios" mentem, ao omitir que naquele valor está incluída receita de impostos e contribuições [1] . Não deixa de espantar o afã com que defendem como "sem alternativa", medidas que fomentam o desemprego, o empobrecimento, a exclusão do sistema produtivo, pelo desemprego e pela emigração, de centenas de milhares de trabalhadores.

As despesas do Estado, desde que orientadas por adequado plano económico, como a Constituição prescreve, representam consumo e investimento, mas estes objetivos são relegados perante o desiderato de "honrar os nossos compromissos, custe o que custar", para com a agiotagem financeira, revestida com a dignidade do deus "mercados". Perante isto, as funções sociais do Estado e direitos laborais, fundamentos da própria cidadania, são considerados "privilégios" e apresentados como vícios de subsídio dependência do povo português – tese racista, cara ao populismo "erudito".

Concentrando atenções nas pequenas regalias dos menos favorecidos, incutem-se sentimentos sociais negativos para escamotear, as rendas e lucros monopolistas, os SWAP, as PPP e concessões, em que os interesses do Estado e dos contribuintes são defraudados. Tal como são ignoradas as abismais remunerações dos corpos executivos das empresas privatizadas e dos oligopólios, a corrupção, a livre circulação de capitais, as regras da UE totalmente inadequadas ao nosso desenvolvimento económico e social. Os escandalosos benefícios fiscais aos grandes grupos económicos são verdadeiras evasões fiscais legalizadas. [2]

O rigor orçamental alicerçado na ditadura burocrática da UE é a roupagem para um crescimento baseado em altos lucros e baixos salários, afinal características estratégicas do fascismo salazarista. Revestindo os paramentos de uma falsa ciência económica construída na base de axiomas que a evidência demonstra errados, [3] os populistas "eruditos" assumem a missão de convencer cidadãos impreparados, levados pelo medo dos "mercados", de que "não há alternativas" e devem submeter-se à "superior capacidade intelectual" dos "eruditos" e às políticas de saque do neoliberalismo…

5 – O POPULISMO JUSTICIALISTA E O MORALISTA

Podíamos designar estas formas de populismo, como populismo farisaico. Esmera-se em trocar o essencial pelo acessório e assume com falsa superioridade ares moralistas contra os "políticos, todos eles". O ataque aos abusos costuma ser uma forma de dissimular os objetivos do populismo.

Actua de dedo em riste na procura de culpados a eliminar: o "Estado despesista", o "consumir acima das possibilidades", os sindicalistas "que só querem que se ganhe mais trabalhando menos". Abusos, embora irrelevantes em termos financeiros, são ampliados como causas primordiais dos défices, as rendas monopolistas e os juros agiotas ignorados ou menorizados.

As incitáveis exceções de alguns abusos são feitos regra e generalizados para justificar rigorosas e burocráticas formas de controlo e cortes no social. Pelos mesmos critérios, os benefícios fiscais seriam retirados à banca, grande parte dela estaria nacionalizada e a funcionar segundo critérios de maximização dos benefícios sociais.

O discurso contra os "políticos", mas não contra as políticas, favorece e iliba a oligarquia, é meio caminho andado para modelos fascizantes. Os deputados são atacados como tal, não pelo que concretamente propõem, aprovam ou rejeitam. O objetivo é deixar as pessoas vazias de conceitos, disponíveis para absorver o que o populista lhe apresenta como "novo paradigma" e como solução.

Fazem-se campanhas contra "os políticos" – "que vão para a AR dormir", promove-se a redução do número de deputados, para tornar irrelevante a oposição às políticas de direita e defraudar o sufrágio universal. Gente ignorante ou de má-fé, compara o número de deputados em Portugal com os do poder central em Estados federais ou regionalizados.

As taxas de abstenção mostram que mais de 60% do eleitorado faz por ignorar o que se passa na AR: os avanços do populismo, são retrocessos da democracia. Foram difundidas mentiras sobre a AR em que o restaurante VIP, normalmente para convidados e visitas, em particular internacionais, era associado ao preço da cantina normal para funcionários e deputados. Apesar do desmentido a mentira continuou a circular.

Omite-se que a AR tem funções de soberania e representação externa. As despesas da AR incluem o pagamento aos seus funcionários e a manutenção do edifício. Ora, as despesas da AR representam no OE de 2014 apenas 0,12% da despesa; 0,17% em 2013. Compare-se com os juros da dívida que se prevê atingirem este ano quase 10% da despesa. O que não parece incomodar tão indignados cidadãos.

Foi divulgado como escandaloso um aumento de 91,8% do vencimento dos deputados para 2014. Na realidade, incluíam no vencimento dos deputados a reposição dos subsídios de férias e Natal dos funcionários. O vencimento daqueles não aumentava. Esta manobra de manipulação dos números mostra o nível dos populistas. A boçalidade destes ataques tem um cariz análogo aos ataques dos fascistas à República democrática.

O populismo não se inibe de criticar o governo da direita, mas é uma armadilha. No fundo, a crítica reside em o governo não ser nesses casos tão de extrema-direita como pretendem. Daí os ataques descabelados contra a Constituição e a defesa das políticas da troika. Nisto se resume o seu "inconformismo".

As empresas municipais são atacadas: "não servem para nada e têm Administradores a auferir milhares de euros". Ora, se há corrupção e nepotismo ele vem dos partidos que têm governado o país à direita, porém o que é proposto é a destruição de serviços públicos e a sua entrega a monopólios privados – caso das águas. A máscara moralista de indignação pela corrupção tem sempre um ponto fraco: escusam-se a algo que belisque o grande capital.

6- POPULISMO: A VIA NEOFASCISTA

A coberto do descalabro das políticas de direita o populismo cavalga o descontentamento torna-se uma via para o neofascismo. Procura destruir a organização do Estado democrático definido na Constituição, para estabelecer configurações políticas antidemocráticas e corruptas: neofascismo por via neoliberal. Utiliza à velha maneira do fascismo salazarento a hipocrisia puritana, promovida por gente que sempre se identificou com os "partidos responsáveis", mas que vai dizendo na oportunidade o que à oligarquia mais convenha.

O populismo é sempre uma ameaça às liberdades democráticas. O objetivo da direita/extrema-direita, de que este governo é expressão, é ter uma Constituição em que direitos, liberdades, garantias, separação dos poderes mesmo constitucionalmente consignados, estejam sempre condicionados pela "lei", isto é, pela vontade do governo, á velha maneira salazarista, como recentemente a dirigente do PSD, sra. Teresa Leal Coelho expressou.

É isto que reivindicam. Maiorias obtidas com base na propaganda e na mentira, uma "democracia" cristalizada em formalismos, estabelecendo um Estado repressivo sobre os trabalhadores, ao serviço dos interesses privados, de que as revisões do Código do Trabalho são já um instrumento.

A lógica populista é simples: pegue-se em dois fenómenos que ocorrem simultaneamente, um deles é uma preocupação da generalidade das pessoas, o outro algo que vai contra as reais intenções populistas, torne-se um causa do outro, faça-se por ignorar que a verdadeira causa reside num terceiro fenómeno que não é mencionado. A veemência das afirmações substitui a verdade dos factos. A ideia é voltar o descontentamento das pessoas contra a democracia e os democratas.

Verdadeiramente o populismo não tem programa. Promove a imbecilidade coletiva para defender a grande corrupção. Usa o irracional, a mentira, o insulto, a vociferação que esconde o vazio de conteúdos e as verdadeiras intenções. É a boçalidade ao serviço do ódio e da divisão. Qualquer que seja a sua máscara está sempre ao serviço da exploração: é uma antecâmara do fascismo.

Prometem ao povo felicidade e abundância em troca de não participar, não se envolver coletivamente na defesa dos seus interesses e direitos. Basicamente dizem: têm o capitalismo, conformem-se, sejam felizes com o que lhes dão ou desapareçam.

Dizia Bertold Brecht que não há passo para a frente mais difícil de dar para um povo que o retorno à razão. É este o drama que o populismo traz aos povos. Contra isto só há uma solução: "Resistir sempre. Muitas vezes teria sido mais fácil desistir. Teria sido poupada a murros e pontapés. Mas não te deixes abater. Sê mais forte. Não desistas. Nunca, nunca desistas." [4] Sim, e resistir, significa: 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais.
 

NOTAS

[1] Falácias e mentiras sobre pensões , por António Bagão Félix . Sobre este tema, também em resistir.info os artigos de Eugénio Rosa.

[2] Talvez os "Incentivos Fiscais à I&D Empresarial" expliquem coisas inexplicáveis, tais como os 160 investigadores do Grupo José de Mello, SGPS, ou os 144 investigadores do Grupo Porto Editora, ou os 131 investigadores do BCP, ou os 100 investigadores da Liberty Seguros, ou os 100 investigadores do Barclays Bank, ou os 232 trabalhadores afetos a I&D do BPI, ou os 32 investigadores do BANIF, todos em 2011. Mesmo para a PT, será razoável aceitar o valor de 208 milhões de euros de investimento em I&D em 2012? Como é isto compaginável, por exemplo, com os 71 investigadores do Instituto de Soldadura e Qualidade, os 69 investigadores da BIAL, ou os 44 investigadores da EID-Empresa de Investigação e Desenvolvimento de Eletrónica, entidades que efetivamente desenvolvem atividades de I&D. (segundo texto do eng. Fernando Sequeira)

[3] Ver Os tabus e as alternativas

[4] Do livro 3096 Dias , Natasha Kampush, Ed. ASA, p. 147, 185. Relato da menina austríaca sequestrada dos 10 aos 18 anos por um neonazi, sofrendo como uma prisioneira de campo de concentração.


[*] Autor de "Girassóis", uma história de antes, durante e depois do 25 de Abril. A obra pode ser obtida na secção livros para descarregamento

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/


aqui:http://resistir.info/v_carvalho/populismo_2.html 

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