quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A troika interna e seus consensos (2)


por Daniel Vaz de Carvalho [*]

 
Aquele que conta com apoio estrangeiro, encontrará um amo no seu defensor
Maquiavel, O Príncipe.

"Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança
Estas palavras eu vi em letreiro escuro
Por cima de uma porta escrito"
A Divina Comédia, Dante, canto III. 3
3 - O CONSENSO NA UE

Se Dante voltasse agora ao Inferno aí veria expostos os tratados da UE. Afirmou Lenine que os Estados Unidos da Europa capitalista nunca chegariam a existir. Teve plena razão, a UE tornou-se o caminho para a servidão de países previamente fragilizados.

A UE não passa de um conjunto de países em crise, divididos, com interesses contraditórios, submetidos a diretórios e burocracias dirigistas não eleitas que procuram a subordinação dos povos a um império euro-atlântico em decadência. Esta burocracia escudada em tratados não referendados, postos em prática com total desconhecimento da generalidade dos cidadãos iludidos com falsas promessas, age como a "Santa Aliança" reacionária do século XIX, fazendo passar por interesse geral a mesquinhez dos seus preconceitos.

A prioridade é a apropriação do excedente econômico pela oligarquia, impondo a austeridade, o desmantelando das funções económicas e sociais dos Estados, a venda ao desbarato da propriedade pública.

A Alemanha considera que salva o seu euro controlando os OE dos outros países. É espantoso que isto seja tolerado, mas além do mais é uma mentira: a Alemanha não tem capacidade para salvar o euro, nem para ajudar os outros países. O que pretende é coloca-los na sua órbita, reduzi-los à condição de mão-de-obra barata e sem direitos.

É neste sentido que a Merkel se arroga o insulto de dizer que Portugal e Espanha têm licenciados a mais. O ministro Crato discorda, mas é precisamente esta a política que está a ser posta em prática pela austeridade, pela emigração forçada e pelos sucessivos cortes de verbas às Universidades e à investigação. Não menos espantoso, é aparecerem "comentadores" a tentar justificar as palavras da chanceler alemã.

O euro foi feito à medida dos interesses da grande indústria alemã. A moeda única não poderia ter outro efeito senão provocar a acelerada desindustrialização dos países da periferia europeia levando ao bloqueio do seu desenvolvimento. Em 1995 a Balança Corrente alemã tinha um défice de -1,25% do PIB e em 2000, -1,7%, em 2008 já era positiva em +6,2%. Portugal sob a ação de Maastricht e do euro passou no mesmo período de -0,1% do PIB para -12,6%. A partir daqui começaram os PEC e veio a troika. O saldo orçamental da Alemanha era em 2002, -3,8% do PIB, em 2012 +0,1%. Portugal passou no mesmo período de -3,4% do PIB para -6,4%.

Dizia De Gaulle que em política externa não há ideologias, só interesses. Desenganem-se, pois, os que vão nos cantos de sereia de "mais Europa". Quanto "mais Europa", pior os países têm ficado. A Alemanha e os mais fortes defendem os seus interesses à custa dos mais fracos. Ontem como hoje a expansão alemã só pode ser contida se encontrar pela frente "nações compactas e unidas capazes de manter uma vida nacional independente." (Marx) [1]

O insultuoso comentário da CE contra um mísero aumento do salário mínimo, que nem sequer foi atualização, não mereceu qualquer reparo do governo – cuja intenção é acabar com o salário mínimo ou torna-lo irrelevante, considerando-o uma "imperfeição do mercado" – mas também o PS se calou.

É esta a UE para a qual a troika interna se volta em orações, qual Meca dos europeístas. As "orações" do PS não são muito diferentes das do PSD e do CDS, no fundo apelam aos mesmos deuses.

Por que terão os Estados de pagar juros para se financiarem? Por que não podem emitir moeda e o pode fazer (pelo crédito) a banca privada? Com estas políticas os povos estão indefesos perante os crimes financeiros, a usura e a especulação sobre as suas economias. A pobreza aumenta na UE e nos EUA, apesar dos mais ricos terem cada vez maiores fortunas. Pela financeirização da economia, das privatizações, do serviço de dívida, a oligarquia usurpa em seu benefício as disponibilidades públicas destinadas ao desenvolvimento e à satisfação das necessidades sociais.

A troika interna unida no seu europeísmo não concebe qualquer política fora do dogmatismo dos tratados europeus, do euro e das ameaças provenientes de um unilateralismo hegemónico em que não existe: "uma nação um voto" mas seis países podem fazer maioria e ditar aos demais o que bem aprouver aos que detêm a hegemonia. É "a Europa a falar a uma só voz" que os propagandistas do sistema proclamaram como prioridade essencial.

O PS parece não ter consciência desta situação ou conforma-se com a chantagem dos interesses dominantes sem ter em conta as contradições do fundamentalismo neoliberal da UE. Quaisquer que sejam as suas "boas intenções", logo ignoradas perante as pressões do grande capital.

O PS pode ter as ilusões e sonhos europeus que quiser, mas que fazer deste país? A questão que se coloca é: qual o plano B que o PS propõe para defender os interesses nacionais se as suas quimeras europeístas não se concretizarem? Não existe, tal como o PSD e o CDS não o têm.

Nada indica que a Alemanha esteja disposta a alterar o que quer que seja das suas políticas, além de alguma cosmética, mas até agora nem isso. Muito pelo contrário, quer o seu reforço e um "ministro das Finanças da UE" ao serviço dos seus interesses. Aliás a atual CE é constituída por gente devotada à ortodoxia neoliberal e à hegemonia alemã. Ao anúncio da França e da Itália excederem o défice orçamental permitido de 3%, logo a Alemanha impôs: "todos têm de cumprir", secundada pela CE, obrigando esses países a aplicar mais medidas de austeridade. "Mais Europa" e federalismo não são mais que processos de espoliação da riqueza e da soberania dos povos que deixam de poder determinar o seu presente e o seu futuro.

A. Costa fala em aplicar forma "flexível e inteligente" o absurdo, iníquo e classificado como estúpido, tratado orçamental. Mas qual é a forma flexível de interpretar um tratado que condena ao atraso e estagnação os países com menor desenvolvimento, um tratado que dá plena liberdade, sem apelo, à CE para aplicar multas e reter verbas aos países "não cumpridores"? Será "forma flexível" o país passar a mendigar exceções permanentemente, à custa de compromissos e cedências? A forma inteligente e patriótica de o aplicar é recusá-lo.



 
"O socialismo burguês resume-se precisamente nesta afirmação: os burgueses são burgueses no interesse da classe operária".
C. Marx e F. Engels, Manifesto

"Haverá entre os partidos burgueses, ainda entre os que se reputam de mais radicais, um só que subscreva tal programa? Não há, porque ele implica a destruição da sociedade de que eles são os naturais representantes. Radicais abstratos, os jacobinos recuam diante desta tremenda realidade com tanto horror como os conservadores. Um jacobino é um conservador incoerente com frases de demagogo. (…) Burgueses radicais a vossa república não é mais que a república do capital assim como a monarquia dos conservadores não é mais que a monarquia do capital"
Antero de Quental [2]
4 – O CONSENSO NA ALTERNÂNCIA

De que programa falava Antero? Falava da "alteração radical da ordem económica", "o fim do reinado da usura, a soberania do trabalho organizado, a igualdade económica, a organização do crédito como função coletiva". Não podia ser mais atual. E que parte deste programa subscreve sem evasivas o PS hoje? Pela sua prática e declarações, nenhuma, rendido aos critérios do BCE, á neoliberal "economia do lado da oferta", aos monopólios privados, à banca privada.

PS, PSD e CDS saudaram a troika, o PS comprometeu-se com o "memorando" como se fosse a salvação nacional: tratou-se apenas de salvar a finança nacional e estrangeira e submeter o país ainda mais ao jugo da oligarquia.

A. Costa fala em "romper com a visão a curto prazo, reunir vontades, construir compromissos, mobilizar energias em torno de uma nova agenda mobilizadora", mas que no final se resume a "fomentando o empreendedorismo, a inovação, fortalecendo as empresas e apoiar a sua internacionalização" ( Público, 26/07/2014). Eis um conjunto de frases destituídas de conteúdos concretos que o PSD e o CDS nunca se cansaram de repetir. Vale como voluntarismo destituído de substância. A questão é que nenhum dos partidos da troika interna diz o "como".

Estes partidos pensam obter resultados diferentes com os mesmos processos. Fazem crer que se podem resolver problemas com os mesmos critérios que os originaram, apenas variando a forma como são executados os processos que o sistema admite. Estamos no domínio da alquimia política.

A política de direita desgovernou o país, atingiu com o governo PSD-CDS foros do inconcebível em termos de incompetência, falsidades e abandono dos interesses nacionais. Na realidade, aprofundou – como é da sua natureza de classe – as políticas encetadas pelo PS.

A degradação política da direita/extrema-direita no governo é tal que se aplica o princípio de que uma mão lava a outra: os escândalos, as mentiras, o descalabro das instituições públicas, os resultados desastrosos para o país e para a vida das pessoas, atingiram tal nível, que a sua vertiginosa sequência leva a que umas façam esquecer as outras e acabem por provocar confusão e apatia em boa parte da opinião pública. Acresce a retórica de uma maioria que manipula dados e apresenta opiniões como se fossem verdades comprovadas.

As tergiversações do PS colocaram o país na mão de tartufos que se empenham em conversas sobre empreendedorismo e põem em prática trabalho cada vez mais precário, jovens qualificados com salários de miséria, despedimentos massivos de trabalhadores experientes. Com o poder económico e financeiro nas mãos da oligarquia as críticas do PS ao governo PSD-CDS, são tanto mais veementes quanto mais inúteis de facto, pois recusa o papel interventivo das massas populares e compromissos à sua esquerda.

O PS afirma pôr fim à austeridade e ter crescimento, sem clarificar que para isso é preciso enfrentar a finança, romper com os atuais tratados da UE e com o euro. Difunde a miragem de "sinais positivos" na UE, diz que fará acordos à esquerda e à direita. Tal não passa da habitual máscara para captar votos à sua esquerda. Máscara que caiu rapidamente quando o PCP apresentou na AR propostas sobre renegociação da dívida, debate sobre a saída do euro, controlo público sobre a banca.

Diga-se que eram propostas muito moderadas, embora fundamentais para o país sair do impasse da crise. Pois bem, o PS votou contra todas ao lado do PSD e do CDS; PCP, PEV, a favor, o BE a favor, exceto na questão do euro em que se absteve. A posição do PS é reveladora das suas ambiguidades, aliado no essencial à sua direita.

Podia não estar de acordo com os considerandos ou a forma do PCP abordar as questões, mas podia pelo menos mostrar concordância de princípio com a necessidade de debater aquelas questões. Então teria optado pela abstenção. Mas não, votou ao lado do PSD e do CDS. Foi a troika interna a funcionar. É caso para pensar que os oligarcas, especuladores e agiotas, podem contar com o sr. António Costa e o seu PS!

Quando o PSD e CDS se afundam no descrédito, o PS substitui-os mantendo políticas idênticas. Quando o PS se afunda, o PSD-CDS substituem-no aprofundando as mesmas políticas. Também aqui se pode dizer que uma das mãos lava a outra. É a alternância sem alternativas.

Estas políticas mergulharam Portugal, bem como a generalidade dos países da UE, na estagnação económica, aumento da pobreza e das desigualdades estruturais. O Estado democrático é a única entidade que pode proteger os cidadãos e promover o seu desenvolvimento, não a finança nem a burocracia europeia. Não há portanto alternativa credível que não se baseie num programa que tenha como princípios o reconhecimento da soberania constitucional, económica e monetária do nosso país.
 

A primeira parte deste artigo encontra-se aqui

[1] Revolução e Contra-revolução na Alemanha, Obras Escogidas de Marx e Engels, Ed. Progresso, Moscovo, 1973, p. 372. O texto terá sido escrito por Engels, revisto e assinado por Marx para publicação no New York Daily Tribune.
2 - Antero Quental, Carta à Comissão Eletiva do PS em 1880, Seara Nova, agosto de 1971, segundo Cartas de Antero Quental, Coimbra, 1921, p. 92 e 93


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