segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Amar em tempos de guerra

por 

«Vós, que surgireis do marasmo em que perecemos, lembrai-vos também, quando falardes das nossas fraquezas, lembrai-vos dos tempos sombrios de que pudestes escapar. Íamos, com efeito, mudando mais frequentemente de país do que de sapatos, através das lutas de classes, desesperados, quando havia só injustiça e nenhuma indignação. E, contudo, sabemos que também o ódio contra a baixeza endurece a voz. Ah, os que quisemos preparar terreno para a bondade não pudemos ser bons. Vós, porém, quando chegar o momento em que o homem seja bom para o homem, lembrai-vos de nós com indulgência.»

O ódio que nos impõem

Não sei quanta dor terá suportado Bertolt Brecht para arrancar da sementeira poética este apelo à compreensão das gerações futuras. Entre a engenharia memorialista, a cultura burguesa entretém-se a ocultar mensagens ou objectos para que num tempo que eles querem que não seja muito diferente deste sejam exaltados os valores do capitalismo. Se, entretanto, o céu for tomado de assalto, quando destaparem a miséria em que nos mergulharam durante séculos, toda a quinquilharia desenterrada ajudará a compreender o desabafo do poeta.

Toda a violência foi-nos imposta pelos que desde sempre nos esmagaram. A que usaram para nos oprimir e a que usámos para nos libertar. A desigualdade é a parteira da violência. É tão simples que, em 1965, um padre colombiano dirigiu-se ao povo através dos ecrãs e simplificou a questão: «Devemos perguntar à oligarquia como é que vai ceder o poder. Se o vai ceder de forma pacífica, tomamo-lo de forma pacífica. Mas se ela o fizer de forma violenta então vamos tomá-lo de forma violenta». E se há país onde se aprende rapidamente que os direitos não se mendigam é na Colômbia.

Ao contrário da Europa Ocidental onde a burguesia cedeu avanços sociais para enfraquecer o prestígio do movimento operário alicerçado na vitória da URSS sobre o nazi-fascismo, a América Latina viveu a segunda metade do século XX afogada em sangue. O desaparecimento de dezenas de estudantes mexicanos, provavelmente assassinados pelo narcotráfico, é a importação para aquele país de práticas que na Colômbia há muito são comuns. O tráfico de droga pelas máfias organizadas tem vínculos directos com o Estado. Desde a polícia, passando por autarcas e deputados, as instituições são a arma da burguesia para esmagar os protestos da classe trabalhadora e dos povos.

Às vezes, nas circunstâncias mais difíceis, não há escolha. Em 1936, as centenas de operários que chegaram a Barcelona vindos de vários países para participar em provas desportivas foram surpreendidos pelo levantamento fascista. Uma boa parte deles não teve qualquer dúvida em pegar em armas para defender as conquistas dos povos de Espanha. A experiência das Brigadas Internacionais foi fundamental já depois da Guerra Civil para forjar em diferentes países as resistências armadas ao nazi-fascismo.

Há dias, conversava com dois amigos recém-chegados do Leste da Ucrânia que me contavam que sob o ar irrespirável de Lugansk a população não tinha opção. Ou fugiam para a Rússia ou pegavam em armas para se defenderem do regime imposto pela União Europeia e Estados Unidos. Sem água, electricidade, aquecimento e comida, pelas ruas o cheiro a morte tem o patrocínio dos banqueiros e dos grandes empresários que manobram impunemente os que nos governam. E sabemos que nenhuma das balas disparadas vai acabar na cabeça da oligarquia. Os ricos metem o dinheiro, os pobres metem os mortos.

Imagino que as burguesias alemã e russa tenham ficado aterradas quando souberam que os soldados de ambos países confraternizavam entre si durante a I Guerra Mundial instigados pela agitação bolchevique. Essa violência absurda que leva militares ucranianos a lutar contra os seus irmãos de classe é a mesma que levou milhares de jovens portugueses a participar na matança dos povos africanos em luta. E se hoje há ucranianos do Ocidente que se batem em Donetsk e Lugansk contra o fascismo, cá mostrou-se através da Acção Revolucionária Armada que a solidariedade internacional se constrói também a partir da raiz do conflito. Um povo que oprime outro povo não pode ser livre como dizia Lénine e foi também essa dialética que derrotou o fascismo em Portugal. Um exemplo singular de que o nosso povo se deve orgulhar.

O amor também é dinamite

Mas a violência a que nos submetem tem os seus custos. Endurece-nos a voz como dizia Bertolt Brecht. Invariavelmente, jantar com um grupo de republicanos irlandeses vai significar ouvi-los cantar as velhas canções de resistência ao império britânico. E todas elas falam de violência. Mas há uma que se assemelha ao grito de Brecht para explicar às gerações futuras por que somos assim. Quando o norte-americano Jack Warshaw a escreveu chamava-se If they come in the morning, quando o irlandês Christy Moore a adaptou, e o povo fez dela um hino, passou a chamar-se No time for love.

«No time for love if they come in the morning,
No time to show tears or for fears in the morning,
No time for goodbye, no time to ask why,
And the sound of the siren’s the cry of the morning.»

Depois, o grupo basco Hertzainak traduziu para euskara e o povo que luta há séculos para libertar-se de Espanha e França abraçou a canção como sua. Como explicar às mulheres e homens do futuro que não nos deixaram sequer tempo para sorrir? Como explicar-lhes que na Síria, Iraque e Curdistão o imperialismo financia a barbárie que deixa cabeças despedaçadas pelas ruas? Seria ingénuo negar que tentámos vezes sem conta mudar o mundo sem recorrer à força e em todas elas o capitalismo ensinou-nos que é uma impossibilidade. Mas mais do que isso, o mesmo capitalismo alicia a que se recorra uma e outra vez à intervenção e participação política que não admita essa possibilidade. É por isso que não tem qualquer pudor em desarticular o serviço militar obrigatório para deixar de apetrechar as classes trabalhadoras com conhecimentos que se possam voltar contra aqueles que sempre as deixaram na miséria.

Mas seria injusto dizer que os comunistas não amam. Que não sabem o que é sorrir. É o amor à liberdade, à dignidade e à justiça que nos faz odiar o capitalismo. Os comunistas amam a vida e mais do que ninguém amam a paz. É por isso que são capazes de dar tudo para a conquistar. Incluindo a própria vida. Sobre isso, o poeta comunista turco Nazim Hikmet descreveu-o de uma das formas mais belas:

«Hás-de saber morrer pelos homens.
E além disso por homens que se calhar nunca viste,
E além disso sem que ninguém te obrigue a fazê-lo,
E além disso sabendo que a coisa mais real e bela é
Viver.»

Quando se escolhe viver de cabeça levantada também se é feliz ainda que isso possa comportar graves sofrimentos. Há 75 anos, Álvaro Cunhal publicava um artigo n'O Diabo em que reforçava que «quando não nos sentimos meros joguetes da evolução mas, pelo contrário, sentimos que, mesmo ao de leve, as nossas energias modificam o seu ritmo. Quando sabemos ser leais, rectos e solidários. Quando amamos profunda e extensamente e nos sentimos capazes de sacrificadas demonstrações do nosso amor. Somos felizes porque não desejamos outra vida, porque sentimos preenchida a própria função humana». É, pois, aqui que as gerações futuras terão de saber ler que o nosso amor estava barricado. Mas que era amor o que nos fazia lutar.

aqui:http://manifesto74.blogspot.pt/2014/11/amar-em-tempos-de-guerra.html#more

Publicação em destaque

Marionetas russas

por Serge Halimi A 9 de Fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda desconhecido exclama o seguinte: «Tenh...