domingo, 3 de abril de 2016

Terror, terrorismo, terroristas


por João Carlos Lopes Pereira [*]
 
Dresden em ruínas. Quando há um atentado terrorista, como os que aconteceram em Paris ou, agora, em Bruxelas, não consigo entendê-lo como julgo que entende a maioria das pessoas que falam na comunicação social, especialmente nas televisões. Segundo esses comentadores – quase todos eles – os atentados foram cometidos por grupos de fanáticos que têm como objectivo destruir a civilização ocidental – os nossos valores, a nossa cultura, o nosso modo vida – e, como fim último, sujeitar-nos às suas crenças e ao seu domínio. A isto se resumiriam as acções designadas por terroristas. E porque assim é, os terroristas agiriam em nome de uma ideia que visaria destruir o mundo ocidental, o que culminaria na ocupação das nossas casas, na pilhagem dos nossos bens, sem esquecer a imposição da burka às nossas mulheres, tudo isto depois da nossa inevitável conversão – à força, se necessário – ao Islão, após o que seríamos constrangidos a prostrar-nos, não sei quantas vezes por dia, virados para Meca. Não acredito numa coisa assim, e presumo que quem o diz – ou deixa, pelo menos, essa ideia no ar – também não acredita. Podem ser uns papagaios bem pagos, mas tontos a esse ponto não são. Seguramente.

O que está em causa – melhor: o que está por detrás disto tudo – não é, sequer, um choque de culturas, nem é uma questão religiosa. Nem se explica, também, pelo ódio ou, se preferirmos, pela sede de vingança nascida de incontáveis chacinas e humilhações que os europeus, desde sempre, praticaram, coisa que começou porque se outorgavam, em nome da fé, ou a seu pretexto, o direito divino de matar, esfolar e queimar, para além de, convenientemente, saquear os incréus. Nada disto é segredo para ninguém, qualquer compêndio de história o diz, sabendo-se, por exemplo, como portugueses e espanhóis foram por esse mundo fora, com a cruz numa das mãos e a espada na outra, impingindo os seus credos e cobrando em ouro, prata e outros proveitosos embolsos.

Mais tarde, porque aos impérios, dessas e doutras conjunturas nascidos, competia ter colónias e povos escravizados – toda a África, desde o Mediterrâneo ao Cabo da Boa Esperança, era um mosaico de colónias das potências europeias, o mesmo sucedendo no Médio Oriente, com o Iraque, a Síria, a Palestina e o Líbano a juntarem-se a Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egipto. E depois – já nos tempos que correm – porque o espírito colonial não morreu com o fim dos impérios, pela razão simples de que as matérias-primas continuam lá (especialmente uma, chamada crude ), a civilização judaico-cristã, que pariu guerras atrás de guerras dentro das suas fronteiras, concluiu que é muito melhor fazê-las fora de portas, a fim de conseguir pela força aquilo que não for possível conseguir pela persuasão, nomeadamente através de governos venais. E quando se tem um parceiro que nasceu com a violência no sangue, para quem as guerras são um modo de vida – refiro-me aos EUA, obviamente – não custa nada convencermo-nos que a civilização começa e acaba nesta coisa chamada Mundo Ocidental.

Nós, ocidentais – digamos assim, apesar de eu não pretender incluir-me no contexto – é que sabemos como devem viver todos os povos. Nós – eu salvo seja, que disso me excluo! – europeus e norte-americanos, é que definimos as regras do jogo. Nós – ou seja: eles – com as nossas/suas gravatas e etiquetas, é que somos verdadeiramente civilizados. Nós – salvo seja eu, ainda e sempre! – que acreditamos que um homem, chamado Moisés, foi convocado por uma criatura divina, chamada Deus, ao cume de um monte árido, chamado Sinai, e ali recebeu duas tábuas onde, escritos pelo dedo do próprio Deus, estavam todos os mandamentos que deveriam orientar os homens para todo o sempre, somos os primeiros a não cumprir, praticamente, nenhum desses mandamentos. Matamos, roubamos, e passamos a vida a desejar e a tentar possuir tudo o que é do próximo, incluindo a sua mulher, e sendo verdade que Deus não disse – ou não escreveu – que seria proibido a uma mulher cobiçar o homem da próxima, por estar, obviamente, subentendido, tal não deixa de suceder, como o mais lerdo dos mortais está farto de saber.

E nós – salvo seja, mais uma vez, que "nós" é apenas uma maneira de dizer – que acreditamos em Moisés, apesar de não haver quem testemunhasse esse encontro com o ser sobrenatural – nós, civilização ocidental, judaico-cristã, que dizemos acreditar ter Deus despachado que ninguém cobiçará a casa do seu próximo, nem a mulher do seu próximo, nem o seu escravo, nem a sua escrava (na altura, Deus ainda considerava que a escravatura era uma coisa excelente, o que prova que até Deus se pode enganar), nem cobiçar o seu boi, nem coisa alguma do seu próximo, nada mais temos feito, nesta velha e civilizada Europa cristã, do que exactamente o contrário do que Deus terá dito – ou escrito – a Moisés. Ou que Moisés, para consolidar o seu lugar de patriarca, terá dito que Deus lhe disse, que é como quem diz: terá escrito aquilo que disse ter sido escrito por Deus. Temos – nanja eu – passado os séculos a matar e a morrer em guerras fratricidas, apenas porque desejamos aquilo que é do próximo. Isto é: Não há maiores infractores às leis de Deus, do que precisamente aqueles que dizem acreditar que foi Deus quem, através de Moisés, as pôs a circular.

Recorde-se, por exemplo, que uma dessas guerras, a dos Cem Anos chamada – que foi composta por vários conflitos, e que durou, na verdade, cento e dezasseis anos, pois decorreu entre 1337 e 1453 – teve como causas as necessidades de os senhores feudais, que eram cristãos dos pés à cabeça, quererem mais terras do que aquelas que já tinham. Queriam, esses eleitos de Deus, as terras do próximo. E mais o que estava lá, incluindo as mulheres.

Mais tarde, entre 1618 e 1648, decorreu outro conflito, com epicentro na Alemanha, por motivos variados, mas sempre à volta do mesmo: rivalidades religiosas como pretexto, mas, principalmente, por razões territoriais e comerciais. Chamou-se a Guerra dos Trinta Anos. Lá está: queria-se a fazenda e os negócios do próximo. E todos eles – os senhores das partes envolvidas – louvavam a Deus sobre todas as coisas.

De 1803 a 1815, Napoleão Bonaparte, que se considerava o herdeiro da Revolução Francesa, decidiu que deveria levar os valores da Revolução a toda a parte, esquecendo-se ele próprio de os respeitar, pelo que resolveu fazer-se coroar imperador. Safou-se da guilhotina, mas não se safou dos ingleses. Fosse como fosse, falamos de doze anos durante os quais a cristandade mostrou o seu carácter autofágico.

No século passado, nasceram nesta mesma Europa civilizada e cristã até mais não poder ser, os dois maiores conflitos mundiais. E cada um matou mais do que o anterior. Sempre pelas mesmas razões. Independentemente do rastilho que as fez despoletar – ambas rebentaram, por curiosidade, tal como a guerra dos Trinta Anos, na Alemanha – era preciso deitar a mão à riqueza alheia. Hitler chamou ao que era do próximo, o seu – dele, Hitler – Espaço Vital. Tal como os norte-americanos chamam àquilo que querem, esteja lá onde estiver, e seja lá de quem for, os seus Interesses Vitais.

Já vimos, portanto, de que massa é feita esta Europa civilizada, imbuída de ensinamentos bíblicos, cristã até à medula, uma parceira ideal para o Tio Sam, o maior rapinante que anda por aí ao cimo da terra. Deus os fez, Deus os juntou, tal como as duas tábuas da lei.

Mas perdi-me do fio inicial. Dizia eu que o que está por detrás disto tudo – do terrorismo – não é, sequer, um choque de culturas, nem é uma questão religiosa. Nem se explica, também, pelo ódio ou, se preferirmos, pela sede de vingança nascida de muitas chacinas e humilhações que os europeus, desde sempre, praticaram. É tudo isso amalgamado e utilizado como ingredientes por quem não se amarra a um cinto de explosivos, que não viajou de avião no dia 11 de Setembro, nem foi, como costumava ir, às Twin Towers nesse mesmo dia, nem frequentava o Bataclan. E que, seguramente, sabia que não podia estar no aeroporto de Bruxelas, ou no metro, no dia em que as bombas explodiram. Quem matou, em Bruxelas, é quem vende armas ao Estado Islâmico, é quem lhe compra o petróleo, é quem trata os seus feridos nos hospitais de Israel. É quem despeja bombas sobre as mulheres e as crianças da Faixa de Gaza. É quem roubou as casas e a água aos palestinianos.

Quem matou, em Bruxelas, ou em Paris, foi quem colaborou activamente com a selvática e desumana destruição da Líbia (Allo, monsieur Sarkozy!), executada pela NATO, onde não morreram 30, nem 40, nem 140 pessoas inocentes, mas centenas de milhares de seres humanos tão inocentes como estes do metro e do aeroporto de Bruxelas.

Quem matou em Bruxelas, ou em Paris, foi o reles fantoche que aceitou ser um sinistro mandatário de Obama (Allo, monsieur Hollande!), ao armar e financiar as hordas terroristas na Síria, onde os mortos civis, causados por esta guerra inspirada e alimentada pela França e pelos EUA, já ultrapassaram os 300 mil. Quem vir a Síria de hoje, verá um país cuja devastação faz lembrar o que de pior se viu na II Grande Guerra após um qualquer raid aéreo. Aquele país moderno, arejado e desenvolvido, onde as religiões conviviam sem ódios ou querelas, onde o nível de vida fazia inveja a muitos países europeus, como Portugal, por exemplo, é hoje um monte de ruínas devido à interferência estrangeira, porque os governantes europeus e norte-americanos consideram que não pode haver exemplos de sucesso fora do sistema capitalista. Ou fora da democracia na sua única versão "aceitável": a versão em que os interesses dos senhores capitalistas (como se dizia há anos), ou dos Mercados, ou dos senhores Investidores (como se diz agora), prevalecem sobre tudo o resto.

(Note-se que a Síria cometeu o horroroso crime de manter o petróleo como riqueza nacional, posto ao serviço de todo o povo, e não de qualquer multinacional).

Quem matou em Bruxelas, como antes em Paris, foram e são aqueles que, dos seus gabinetes governamentais na Europa, ou em Washington, olham para os povos de África ou do Médio Oriente, e desenham no mapa da geoestratégia os destinos que melhor convieram aos seus interesses.

Quer isto dizer que absolvo os homens que se deixaram desumanizar pela violência e pelos vexames a que os seus povos foram sujeitos, fazendo desabar agora sobre pessoas inocentes o peso de décadas e décadas de humilhações sem limites? Não! De modo nenhum! Por razões claras e óbvias, que são as das pessoas comuns, e por mais uma: estas acções em nada afectam o poder dos líderes europeus e norte-americanos. Muito menos o poder de quem comanda esses líderes e, a nível mundial, a vida de milhões de seres humanos, através dos cordelinhos da economia. Dos Mercados. Ou seja: os senhores Investidores.

Pelo contrário. O terrorismo é o melhor aliado dos senhores Investidores. Enche de medo os cidadãos, e não há melhor petisco para os senhores Investidores, do que um cidadão amedrontado.

Se os terroristas percebessem isto, não atacavam em Paris, nem em Bruxelas. Não matariam as pessoas comuns.

- Então, onde e quem atacariam? – perguntam-me.

- Se estão à espera que eu diga que deveriam atacar quando e onde se reunisse o Clube Bilderberg, desiludam-se. Não digo!

- Porquê? – voltam a perguntar-me.

- Porque o Clube Bilderberg é a maior organização terrorista do mundo. Foi ele que congeminou a Crise, o seu remédio – a Austeridade – e, desta maneira, empobreceu 90% do Humanidade, enriquecendo, em consequência, os restantes 10%.

O Clube Bilderberg é, portanto, a maior fábrica de terrorismo – e de terroristas – do mundo.

Ver também:

  • Terrorismos , de Manuel Augusto Araujo

    [*] Jornalista.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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