sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Enganados novamente…


por Chris Hedges [*]
 
A candidata da banca. A esperança ingênua dos apoiantes de Bernie Sanders — construir um movimento político de bases, mudar o partido democrático por dentro e empurrar Hillary Clinton para a esquerda — fracassaram. H. Clinton, ciente de que as camadas liberais e a esquerda não irão exercer uma genuína resistência, prossegue tendo Mitt Romney como instrumento. As elites empresariais em todo o espectro político, republicano e democrata, uniram-se alegremente para consagrar o seu Presidente. Tudo o que resta da "revolução" Sanders é um modo de obter isenção de impostos [1] projetado para arrecadar dinheiro, incluindo de doadores anônimos, ricos, para garantir que ele será um senador vitalício. Como Karl Marx ironizou, os grandes acontecimentos históricos acontecem duas vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa.

A extravagância de milhares de milhões de dólares do nosso circo eleitoral é parte da cortina de fumo que cobre a devastação em curso promovida pela globalização: desindustrialização, acordos de comércio como a Parceria do Transpacífico (TPP), guerras sem fim, alterações climáticas [NR] e a intrusão em cada recanto das nossas vidas pela segurança e vigilância do Estado. A nossa democracia está morta.

Clinton e Donald Trump não têm o poder ou o interesse em reaviva-la. Eles ajoelham-se diante da máquina de guerra, que consome milhões de milhões de dólares para travar guerras inúteis e exibir um poder militar exagerado. Desafiar a força do Estado é suicídio político, porém para a Wall Street os políticos não passam de cortesãos. Os candidatos enchem a boca de frases feitas sobre justiça, melhorias na igualdade de rendimentos e escolhas democráticas, mas é um jogo cínico. Assim que termina, os vencedores vão para Washington trabalhar com lobistas e elites financeiras levando a cabo os verdadeiros processos de decisão.

Embora haja uma diferença no temperamento dos dois principais candidatos presidenciais, essa diferença influi apenas na forma como o veneno nos será ministrado. As personalidades da política servem os centros do poder empresarial global, não os controlam. Barack Obama ilustra isto mesmo.

Para os neoliberais tudo e todos são descartáveis. Os Estados falhados que criaram em todo o Médio Oriente, África, Cáucaso e Ásia com o fim da guerra fria representam o que há a esperar de um mundo neoliberal, impulsionado pela ganância, corrupção, violência e desespero.

Os traficantes de drogas, contrabandistas, piratas, sequestradores, jihadistas, gangues criminosas e milícias que vagueiam em enormes áreas de território onde a autoridade central desapareceu são os verdadeiros rostos da globalização. Estes niilistas constituem o Estado islâmico, assim como constituem o Estado das transnacionais. A corrupção pode estar mais à vista e ser mais rudimentar no Afeganistão ou no Iraque, mas tem seu paralelo na venda dos políticos e partidos políticos que dominam nos Estados Unidos e na Europa. O bem comum – a construção de comunidade e solidariedade – foi substituído por décadas de doutrinação a favor da empresa privada com apelos para se acumular tudo o que se puder para si próprio e deixar os outros a sangrar na berma da estrada.

Será a Goldman Sachs, que manobra os preços futuros de arroz, trigo, milho, açúcar e gado para os fazer subir no mercado global, deixando as pessoas pobres e vitimas da fome na África, Ásia, Oriente Médio e América Latina, moralmente menos repugnante do que o traficante de drogas? Serão os pilotos de F-16 que incineram famílias em Raqqa moralmente distintos dos jihadistas que queimaram numa gaiola um piloto jordaniano capturado? Será a tortura num dos nossos locais secretos ou em colônias penais offshore menos bárbara que a tortura às mãos do estado islâmico? Será a decapitação de crianças por drones militares mais defensável do que a decapitação de trabalhadores egípcios numa praia da Líbia por autodesignados guerreiros sagrados? É Heather Bresch, o administrador executivo da Mylan, que aumentou os preços do salva-vidas EpiPen em 400% ou mais, e que passou desde 2007 a auferir mais 600% – acima de 18 milhões de dólares por ano – menos venal do que um traficante que envia um barco sobrecarregado e seus ocupantes para a morte ao largo da Líbia.

Há uma nova ordem mundial. Está baseada na exploração nua e crua. Não na democracia, é o que nós temos exportado em todo o globo. E isto se parece muito com o Estado anárquico que Hobbes temia . As gangues que entregam os migrantes para a Europa fazem aproximadamente 100 milhões de dólares por mês pelo seu trabalho. Exploram o tráfego de seres humanos como apenas os altamente pagos executivos das grandes empresas fazem.

Os Estados falhados do Iraque, da Síria e da Líbia, um resultado direto da globalização, têm a sua contrapartida em Detroit, St Louis, Oakland, Memphis, Baltimore, Atlanta, Milwaukee e o lado sul de Chicago. Eles são as nossas versões de Mogadíscio, com ilegalidade, mortes sem sentido, bandos armados, fome generalizada, medo, uma população que se abandona no abraço entorpecente de opiáceos, crescente pobreza, instituições de um Estado disfuncional, o crescimento de empresas de segurança privadas para protegerem as elites e violência indiscriminada da polícia que cria um reinado de terror visando os pobres.

Quanto mais as forças do capitalismo transnacional extraem de nós em nome da austeridade e da maximização do lucro, mais zonas dos EUA vão decair para versões domésticas dos Estados falhados no exterior. O mesmo sistema existe aqui e no exterior. E tem o mesmo resultado aqui e no exterior. Pode aparecer primeiro na Somália, Mali, Guiné-Bissau e Líbia, mas em breve virá a caracterizar grande parte da América. A proliferação de armas fará na nossa sociedade o que tem feito em todos ou outros Estados falhados onde houve acesso descontrolado aos arsenais – entregar o poder àqueles com pendor para a violência.

Escreveu Elias Canetti em Multidões e poder (Crowds and Power):
"Quem queira governar os homens tem primeiro que tentar humilhá-los, enganá-los acerca dos seus direitos e sua capacidade de resistência, até que eles se tornem tão impotentes como animais. Ele depois usa-os como animais e, mesmo que não lhes diga isso, sabe muito claramente que significam muito pouco para ele; quando fala aos seus mais próximos chamará os outros de carneiros ou gado. Seu objetivo final é incorporá-los em função dos seus interesses e sugar-lhes toda a substância. O que resta deles depois, não importa. Quanto pior os tratou mais os despreza. Quando não têm mais utilidade, descarta-os como faz com excrementos, bastando saber que não envenenam o ar da sua casa".
A História demonstrou amplamente como isto vai acabar. A persistente exploração por uma elite descontrolada, o aumento dos níveis de pobreza e insegurança, desencadeará uma legítima revolta entre os desesperados. Eles vão perceber o que se passa para além das mentiras e da propaganda das elites. Vão exigir redistribuição de rendimentos. Voltarão para aqueles que expressam o ódio que sentem pelos poderosos e pelas instituições que foram projetadas para dar-lhes voz, mas que agora servem para os enganar. Buscarão não reformas, mas a destruição de um sistema que os traiu. Estados falhados – a Rússia czarista, a República de Weimar, a antiga Jugoslávia – podem dar origem a monstruosidades políticas. Connosco não será diferente.

Formas de fascismo já tomaram conta de duas nações da UE, a Hungria e a Polónia. Partidos de extrema-direita, reagindo à vaga de mais de 1 milhão de migrantes que caiu sobre a Europa no ano passado, estão a ganhar terreno na França, Áustria, Suécia, Alemanha e Grécia. O nacionalismo, alimentado por uma deificação das forças armadas, será usado para compensar a impotência individual e a perda da identidade nacional. Nos EUA a dissidência tornar-se-á "antiamericana", uma forma de traição. Os inimigos internos vão ser vilipendiados juntamente com os inimigos externos. E isto levará a mais guerras no Médio Oriente. Os partidos políticos de extrema-direita da Europa Oriental alardeiam uma retórica de conflito militar com a Rússia. Devido à sua associação com a NATO, os EUA seriam obrigados a apoiar quaisquer hostilidades.

Votar em Hillary Clinton não irá interromper este deslize para o apocalipse. Só vai acelerá-lo. Donald Trump pode desaparecer do cenário político, mas alguém ainda mais venal e provavelmente mais inteligente, vai tomar seu lugar. Nosso trabalho é desmontar os mecanismos que nos estão a empurrar para o abismo. E isto significa sustentada e maciça desobediência civil, como se tornou evidente pelos protestos na Reserva de Sioux Rock e pelas paragens de trabalho de sexta-feira passada realizadas pelos presos de toda a nação. Significa fazer todo o possível para não cooperar com os elementos da autoridade. Significa interromper os mecanismos do poder. Significa superar o medo. Significa não acreditar nas mentiras que nos são ditas.
13/Setembro/2016
 
[1] O texto menciona "501(c) (4)", a secção do código de impostos sobre rendimentos dos EUA que isenta organizações de assistência social sem fins lucrativos. A participação direta ou indireta ou intervenção em campanhas políticas não está prevista nesta isenção. No entanto, as atividades políticas de uma organização de assistência social podem ficar ao abrigo do clausulado da 501(c)(4) desde que não sejam a sua principal atividade.

[NR] Sempre houve alterações climáticas ao longo de toda a história do planeta Terra. Assim, é incorrecto atribuí-las à globalização. As referidas alterações são apenas um outro nome para o hipotético aquecimento global. Ver A impostura global .


[*] Jornalista. Passou quase duas décadas como correspondente estrangeiro na América Central, Médio Oriente, África e Balcãs. Fez reportagens em mais de 50 países. Trabalhou para o The Christian Science Monitor, National Public Radio, The Dallas Morning News e The New York Times, do qual foi correspondente no estrangeiro durante 15 anos.

O original encontra-se em www.informationclearinghouse.info/article45448.htm . Tradução de DVC.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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