Durante toda a
segunda metade do século passado, a partir do Tratado de Roma de 1957, a
Comunidade Económica Europeia sempre foi olhada como um «pilar europeu»
da NATO, submetendo a política de defesa dos Estados membros às normas,
práticas e estratégias da aliança militar transatlântica.
Ilustração de Irene Sá
A
criação da NATO, em 1949, antecedeu em oito anos o Tratado de Roma, que
deu origem à Comunidade Económica Europeia (CEE). E todos os seis
Estados fundadores desta tinham participado na formação da Aliança
Atlântica, sob o controlo militar norte-americano da Europa Ocidental e
sobre os escombros de uma vasta região carente do traiçoeiro e caríssimo
Plano Marshall. Nos prosaicos termos da teoria dos conjuntos, a CEE
(hoje União Europeia) integra a NATO desde os tempos em que nem sequer
nascera.
É inevitável que a chamada «construção europeia» – na sua
vertente real, não a mitológica para efeitos de propaganda – seja
inseparável da estratégia e dos comportamentos da NATO, uma vez que uma e
outra cuidam dos mesmos interesses. A versão oficial assegura que são a
democracia e os direitos humanos; os cidadãos sentem e sabem, por
experiência própria, que a «Europa» e a autoproclamada «aliança
defensiva» cuidam sobretudo da impunidade do mercado, do casino da
finança, da austeridade, da desregulação de capital e trabalho, das
guerras expansionistas e de rapina sempre que esses interesses as
reclamem.
Não foi apenas na origem que a união militar antecedeu a
união política; a história das décadas mais recentes demonstra que a
NATO chegou sempre antes da «Europa» quando e onde houve matéria-prima –
territórios, países e povos – a capturar.
Nos Balcãs, na esteira
da destruição artificial e sangrenta da Jugoslávia, a aliança militar
apropriou-se – formal ou informalmente – da Croácia, Eslovénia,
Bósnia-Herzegovina, Kosovo e Montenegro; a União Europeia, enquanto tal,
chegou depois e submetendo-se aos esboços traçados pelo aparelho
militar transatlântico, para então cuidar da formatação política nesses
territórios, entre chantagens e promessas miríficas.
Mais
flagrante ainda foi a corrida aos despojos dos antigos Tratado de
Varsóvia e União Soviética. A NATO fez de lebre na anexação dos países
desde a RDA, Roménia e Bulgária aos Estados do Báltico, fazendo a União
Europeia de tartaruga, isto é, impondo a componente política invasiva
depois de estabelecidos os parâmetros militares, os quais, em boa
verdade, presidiram à transição sem rede da economia planificada para a
anarquia mercantilista. Ao conjunto das operações chamaram
«democratização».
Ainda hoje – hoje em realidade temporal e não
figura de retórica – os Estados Unidos acabaram de colocar mais mil
soldados com capacidades letais na Polónia, ameaçando «defensivamente» a
Rússia, ignorando olimpicamente os desencontros, apenas narcísicos,
entre o regime pré-fascista de Varsóvia e Donald Tusk, o agente polaco
do liberal-conservadorismo instalado à cabeça do Conselho Europeu.
Não
passam, pois, de mitos engendrados nos centros de propaganda que
alimentam a gesta da chamada «integração europeia» as lendas em torno
dos «pais fundadores» e seus impulsos visionários. Enquanto o banqueiro
Jean Monnet criava o seu Comité de Acção para os Estados Unidos da
Europa, na primeira metade dos anos cinquenta, depois de ter assessorado
o presidente Roosevelt no impulso armamentista norte-americano, já os
Estados Unidos tinham assegurado o controlo militar e «democrático» da
Europa através da NATO, integrando até a ditadura fascista que vigorava
em Portugal; ainda Robert Schuman, o «pai da Europa» a quem o papa
Wojtyla abriu as portas da canonização no ano da queda do Muro de
Berlim, pregava sobre a indispensável aliança política entre a França e a
Alemanha, já os dois países se tinham irmanado dentro da NATO, sob a
tutela do Pentágono; ainda o direitista chanceler alemão Konrad Adenauer
procurava salvar os restos das bases industriais do país do assédio
punitivo da França e de Jean Monnet – depois diluído com a criação da
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço – e já a Alemanha Ocidental fazia
parte da NATO, o que aconteceu antes de ser reconhecida verdadeiramente
como um novo Estado soberano.
Durante toda a segunda metade do
século passado, a partir do Tratado de Roma de 1957, a Comunidade
Económica Europeia sempre foi olhada como um «pilar europeu» da NATO,
submetendo a política de defesa dos Estados membros às normas, práticas e
estratégias da aliança militar transatlântica. A integração política
desenvolveu-se sempre no âmbito de uma confraria militar operada a
partir dos Estados Unidos e envolvendo um núcleo dos países mais
poderosos tanto na «Europa» como na NATO: Alemanha, França, Reino Unido e
Itália. O Brexit não altera os dados da situação porque se processa
apenas na União Europeia – o elo mais fraco destas ligações.
A
transferência de tarefas operacionais da NATO para a CEE/CE/UE,
tendência que se vem reforçando no século em curso, no âmbito da
formação de um chamado «exército europeu», não é redundante do ponto de
vista militar porque traduz, sobretudo, uma partilha de missões e uma
repartição de encargos, naturalmente em prejuízo dos países e povos
europeus.
Porque a questão de fundo, a permanente pressão militar
atlantista sobre as decisões políticas, no âmbito da integração europeia
e da vida nos Estados participantes, sempre foi salvaguardada.
Os
exemplos dessa realidade foram abundantes durante a guerra fria,
período em que a «integração europeia» serviu de pretexto para a
definição de baias políticas que não poderiam ser ultrapassadas pelos
Estados membros, mesmo que a vontade dos povos, expressa em eleições, e
até o realismo de alguns políticos o justificasse. Uma linha
absolutamente inultrapassável imposta pela NATO, e cumprida pelas
instituições europeias, era a do acesso de Partidos Comunistas à área
governamental.
Os casos mais flagrantes foram o de Itália nos anos
setenta, culminando com o assassínio do dirigente democrata Aldo Moro; e
os da Grécia – onde o PASOK sempre rejeitou acordos com os comunistas;
e, sobretudo, de Portugal, onde a adesão à CEE, sem qualquer consulta
popular e informação objectiva da população sobre as consequências, foi
uma operação que serviu principalmente para tentar liquidar, através de
imposições externas militares, económicas e políticas, as vias
transformadoras harmonizadas com o espírito da Revolução de 25 de Abril.
Os
partidos sociais-democratas e socialistas europeus, peças estratégicas
da «integração europeia» sob gestão da NATO, respeitaram as exigências
atlantistas – parte de uma obscura política de bastidores – e sempre que
surgiam suspeitas de desvios o mal era extirpado liminarmente. Assim
desapareceu o primeiro ministro sueco Olof Palme do número dos vivos.
Para manter as aparências «democráticas», as decisões emanadas do
submundo político-militar eram executadas por organismos terroristas
clandestinos apensos à própria NATO – a Gladio, por exemplo – como está
cabal e documentalmente comprovado.
Assim se foi solidificando,
dentro da NATO e da União Europeia, a convergência das políticas
militares e económicas dos socialistas/sociais-democratas e das direitas
liberais-conservadoras em formato de partido único, no exterior do qual
não havia prática política com acesso à verdadeira tomada de decisões.
Com
a queda do Muro de Berlim a NATO tomou o freio nos dentes e nem sequer
pôs a hipótese de se extinguir, uma vez que o mesmo acontecera com o
Tratado de Varsóvia, muitas vezes identificado – com todo o desplante –
como a razão da sua existência.
A confluência dos avanços
neoliberais durante os anos oitenta, a vertigem do progresso tecnológico
e a extinção do inimigo ideológico proporcionou a veloz e frenética
anexação dos ex-membros do Tratado de Varsóvia pela NATO, ainda antes de
o serem pela «Europa».
O Tratado de Maastricht, fruto deste
cenário, remeteu, de facto, o Tratado de Roma para a arqueologia da
«integração europeia». Surgiu uma outra «Europa», sem se sentir amarrada
a quaisquer peias de capitalismo «social» ou «de rosto humano».
As
instituições europeias e os Estados membros, de Lisboa a Tallinn,
abraçaram o neoliberalismo puro e duro; os
socialistas/sociais-democratas, antes de começarem a emergir excepções,
embriagaram-se com a terceira via – o liberalismo thatcheriano à moda de
Blair; tudo isto sempre a reboque da estratégia da NATO e das suas
guerras sem leis, ao serviço da globalização entendida como regime
neoliberal global.
Até à crise que explodiu há quase dez anos, tão
teimosa que parece inconvertível ao determinismo capitalista da
sucessão de ciclos de crescimento e estagnação/recessão.
Para a
NATO, tal facto não parece ser problema. Os militares, por definição,
não têm que se preocupar com a democracia, os direitos dos cidadãos e
até as convulsões no mundo das economias. Isso, em tese, cabe aos
políticos.
O elo mais fraco do sistema, porém, está agora ainda
mais fraco. O normativo político da NATO já começou a ser desrespeitado
aqui e ali; a União Europeia tornou-se uma caricatura de um gigante mal
amanhado e com os pés de barro; e o capitalismo selvagem é sacudido por
contradições que ainda há poucos anos eram inimagináveis.
Não é
apenas o Brexit e outras insolvências; nem sequer o aparecimento de
Trump; nem a fuga para a frente do que resta da União Europeia, a
diferentes velocidades e para um federalismo sem qualquer tipo de
sustentação; nem as setas envenenadas disparadas entre Washington e
Berlim, entre Varsóvia e Bruxelas, entre Paris e Moscovo, entre uns e
outros, entre outros e uns.
Assistimos apenas a sinais; detectamos
sintomas. A instabilidade tomou conta das estruturas transnacionais
neoliberais que se afirmavam sólidas, inamovíveis, capazes de decretar o
fim da História. Há um potencial e um espaço para a mudança, porém ante
uma barreira que procura travar o desmoronamento do sistema – a NATO.
Esse potencial de mudança arranca muito atrás de fenómenos nos quais o
capitalismo, temendo a desagregação, foi delegando atribuições para
sobreviver: o fascismo, o nacionalismo, os estados de excepção.
Geminada
com a NATO desde o nascimento, a União Europeia é sempre uma putativa
entidade paramilitar. Com o extremar das crises, o poder autoritário das
armas abafa a razão das palavras.
Cabe aos cidadãos evitar que a guerra
seja, mais uma vez, a «solução».
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