Os profissionais do
europeísmo podem continuar a falar numa União entre iguais, podem
continuar a contar a «sua» história da construção europeia e a repetir o
catecismo dos seus mitos que não alteram a realidade de uma Europa cada
vez mais comandada por uma só potência e cada vez mais desigual.
Chefes de governo de Espanha, Alemanha, França e Itália no Palácio de Versalhes. 6 de Março de 2017Créditos / EPA
Em 1970, Henry Kissinger interrogava-se em tom de ironia: «A Europa, que número de telefone?».
Hoje,
já não podia repetir a ironia, bastava telefonar para a Senhora Merkel
ou para o seu intratável ministro das Finanças, de tal modo a «Europa»
se tornou alemã. E para saber os números dos telefones podia dirigir-se à
CIA, que os tem registados e vigiados.
Os profissionais do
europeísmo podem continuar a falar numa União entre iguais, podem
continuar a contar a «sua» história da construção europeia e a repetir o
catecismo dos seus mitos que não alteram a realidade de uma Europa cada
vez mais comandada por uma só potência e cada vez mais desigual.
Hoje
é-lhes mais difícil, sem hipocrisia ou cinismo, repetir as fórmulas
vazias: «a Europa é a coesão económica e social; a solidariedade; o
nivelamento por cima; a paz; o nosso futuro!»
Os refugiados que ficam no Mediterrâneo, o comportamento da União Europeia em relação à Grécia e aos países do Sul, o dumping
social e fiscal, os níveis de desemprego e a pobreza mostram-nos uma
Europa do capital financeiro cada vez mais distante dos legítimos
anseios e aspirações dos povos.
Vendem a ideia de uma construção
europeia democrática, num método original de pequenos passos, quando do
que se trata é do bom e velho método Jean Monnet, que sempre quis uma
Europa federal, consultando o menos possível os povos. A dissimulação, a
opacidade e a imposição têm sido os grandes vectores da construção
europeia.
A história dos diversos referendos e a incrível história
do Tratado Constitucional rejeitado pelo povo francês e holandês e que
dois anos depois foi instituído, sem consulta, no Tratado de Lisboa, o
do «conseguimos, pá!», dão-nos o verdadeiro retrato de uma construção
antidemocrática feita longe dos povos.
Giscard d'Estaing, que
tinha presidido aos trabalhos do projecto de Constituição para a Europa,
declarou então: «As propostas institucionais do Tratado Constitucional
encontram-se integralmente no Tratado de Lisboa, mas numa ordem
diferente. A razão é que o texto não deve lembrar muito o Tratado
Constitucional»1.
Alguns
meses mais tarde, Nicolas Sarkozy diria a um grupo parlamentar europeu:
«Há uma divergência entre os povos e os governos, um referendo neste
momento colocaria a Europa em perigo, não teríamos tratado se tivéssemos
um referendo em França»2.
O
mesmo método é aplicado na negociação secreta dos tratados
internacionais – veja-se o Acordo de Comércio com o Canadá, CETA, no
funcionamento do Eurogrupo ou do todo poderoso Banco Central Europeu –
órgão não eleito.
Os burocratas de Bruxelas ao serviço dos grandes
interesses e do capital financeiro decidem o futuro dos povos,
concedendo que existe não na construção, mas no funcionamento da União
Europeia aquilo a que chamam candidamente e eufemisticamente «défice
democrático».
Do alto da sua arrogância, consideram que o aumento
da indignação, da revolta, da rejeição desta Europa e do euro se deve à
falta de conhecimento dos cidadãos, que não compreendem o papel dos
especialistas, a globalização, a necessidade das reformas. Os burocratas
de Bruxelas não querem reconhecer que os povos rejeitam as suas
políticas por muitas e boas razões.
Quando as consultas populares
não correm bem, como no caso do Brexit, não hesitam em afirmar em tom
classista que foram os menos instruídos os que mais votaram
negativamente, como se não fossem estes os que mais sofrem na pele as
humilhações e as consequências das políticas de concentração da riqueza.
Espantam-se
depois pelo crescimento daquilo a que chamam de populismo, como se este
não fosse o resultado das promessas não cumpridas, das políticas
neoliberais, do aumento das desigualdades, da liquidação de direitos e
do Estado Social, das negociatas e corrupção, da falta de credibilidade
dos partidos e políticos que em rotativismo têm estado no poder.
Insistem
nos mitos de uma Europa que foi concebida para fazer frente aos EUA,
quando se sabe o papel desempenhado pelos serviços secretos americanos e
a sua ligação a Jean Monnet, o mito dos pais fundadores! Insiste-se na
Europa de paz como se fosse a construção europeia que a tem conseguido e
como se o vergonhoso bombardeamento e guerra na Jugoslávia tivesse sido
no continente africano.
Insistiram (já não insistem) nos mitos e
nos dogmas de que a União Europeia e o euro nos protegiam das crises, do
endividamento, questão que deixava de se colocar, como afirmavam
Guterres, Constâncio e Barroso, e de que a desindustrialização era mais
que compensada pelos serviços e financeirização do país, o mito da «nova
economia» que durou até ao início da crise de 1997.
Os promotores
e defensores da adesão de Portugal ao Mercado Comum viram nesta (um
seguro de vida) a consolidação da contra-revolução que permitiu o
regresso de possidentes, de privilégios e a concentração e centralização
de capitais, no quadro de uma democracia cada vez mais limitada e
empobrecida.
A adesão à CEE deu-se quando já se preparava a substituição do Mercado Comum pelo Mercado Único.
Para
que tal fosse aceite pelos Estados duplicaram-se os fundos estruturais
(a ameaça comunista), o que permitiu um importante surto de obras
públicas e melhoramentos, criando a ilusão de que a coesão económica e
social seria uma realidade.
Com
a liberdade de circulação de capitais, com as subvenções e fundos para
liquidar o excesso de produções – o que não era o nosso caso –, pescas,
agricultura..., com o acabar da preferência comunitária e praticamente a
liquidação da pauta exterior comum, o embate entre a panela de ferro
com a panela de barro começou a produzir os seus estilhaços, o que foi
ainda ampliado com a introdução do euro e com os sucessivos
alargamentos, sem reforço do orçamento comunitário3.
Os
resultados estão à vista e, então, tal como agora, também nos foi dito
que só tínhamos a ganhar em estar no «pelotão da frente», mas, na
realidade, no «carro vassoura» e no papel de «sobrinho pobre em casa de
tios ricos».
Com o euro, perdemos a soberania monetária e ficámos
dependentes dos «mercados», mesmo para os pagamentos internos.
Regressámos ao século XIX com as crises financeiras e as falências de
bancos, como relata entre outros, Oliveira Martins.
Perdemos a
soberania monetária, cambial e na prática orçamental,
desindustrializámos o país, liquidaram-se direitos duramente
conquistados, enfraqueceu-se o incipiente «estado social» e ficámos com
uma moeda sobrevalorizada em relação ao nosso aparelho produtivo e
perfil de exportações.
Desde que entrámos no euro até hoje, o
nosso crescimento médio está praticamente estagnado. Aumentou, sim, a
dívida privada e pública, e as mais importantes empresas básicas e
estratégicas, tal como os bancos, ficaram no domínio estrangeiro. O
euro/marco serve a Alemanha mas não serve Portugal nem a maioria dos
países da UE. Ele foi «vendido» aos trabalhadores e aos povos na base de
mentirolas repetidas, embrulhado num pseudo discurso científico e com
modelos econométricos manipulados.
A crise da UE é hoje uma
evidência reconhecida. As propostas que são agora apresentadas, para
«relançar a Europa», com um euro sobrevalorizado para a maioria dos
países e subvalorizado para a Alemanha, desde o federalismo à Europa a
várias velocidades, como não vão à raiz dos problemas, nem a uma das
principais prioridades – o funcionamento da UE em bases democráticas –,
mesmo que venham a ter algum reforço de Orçamento Comunitário e
aligeiramento da dívida, podem alimentar ilusões, mas só prolongarão a
nossa agonia4.
Por
isso, a grande tarefa nacional, o grande desafio com que nos
confrontamos não é estarmos formalmente com os da frente e em bicos dos
pés, mas, sim, o da recuperação da nossa soberania o mais urgentemente
possível.
1. Audição perante a Comissão de Negócios Constitucionais do Parlamento Europeu em 17 de Julho de 2007.
3.
São cada vez mais economistas, sindicalistas, empresários, partidos e
população em geral que, em vários países da UE, põem em causa o euro. O
Parlamento holandês decidiu, em fins de Fevereiro, por unanimidade,
elaborar um relatório sobre se o país deve ou não sair do euro, o que
revela a extensão das dúvidas.
4.
O orçamento comunitário para compensar satisfatoriamente os quatro
países do Sul da dinâmica do euro (Portugal, Espanha, Itália e Grécia)
implicava 8% a 9% do PIB da Alemanha, o que este país não aceitará. A
Europa a várias velocidades foi decidida por Merkel, que o afirmou em
Malta, e depois foi reafirmado em Versalhes pelos quatro chefes de
governo (grande união de iguais!), Hollande, Merkel, Gentiloni e Rajoy.
E, como bons democratas, afirmaram que «não excluíram ninguém, mas
também não obrigaram ninguém a participar!»
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