Quem acompanha há muito as desventuras da Síria na situação de principal
rival militar de Israel, conhece o ror de histórias mal contadas e o
arsenal de mentiras que distorcem o que se passa no país. Por isso, o
problema das armas químicas é um assunto recorrente.
Donald Trump Créditos / Agência Lusa
De
Berlim a Bruxelas e Paris, de Atenas a Estocolmo, de Varsóvia a Lisboa
perpassa uma comovente vaga de compreensão para com o até agora
proscrito presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, por
ter feito desabar mísseis sobre o território da Síria independente, ter
destruído uns quantos adereços de uma base aérea e, sobretudo, ter
assassinado um número indeterminado de civis, entre eles várias
crianças.
Quando Trump proclamava, afinal mentindo, que desejava a
paz na Síria e destruir o Daesh, juntamente com os outros alter ego do
terrorismo dito de inspiração islâmica, o novo presidente
norte-americano estava sob fogo cerrado dos aliados, que chegaram a pôr
em causa a sua fidelidade à NATO.
Agora que Trump se acomodou à
sábia mensagem do ministro português Santos Silva proferida em 22 de
Março, em nome de todos os seus colegas da União Europeia, segundo a
qual o exército sírio é pior que o Daesh, assiste-se ao regresso à
normalidade. Isto é, os dirigentes políticos dos países da aliança
repetem que não há solução militar para o problema sírio e, ao mesmo
tempo, manifestam compreensão – se fosse com Obama ou com a senhora
Clinton aplaudiriam sem reservas – pelos actos de guerra contra a Síria,
mesmo que aqueçam ainda mais as costas dos mercenários assassinos do
Daesh.
Parece contraditório? Não para as mentes privilegiadas de Santos Silva e colegas respectivos.
Tudo
isto decorre das armas químicas que teriam sido usadas pelo exército
sírio num recente ataque contra bases terroristas na província de Idlib,
facto que está longe de provado e que, provavelmente, é uma deslavada
mentira. Quem não se lembra da fábula das famosas e ainda desaparecidas
armas de destruição massiva de Saddam Hussein?
As Nações Unidas e o
seu secretário-geral nada fizeram para tirar este assunto de Idlib a
limpo; limitaram-se a balbuciar qualquer coisa como a realização de um
inquérito e, antes que tivessem a ousadia de passar à prática, Trump
impôs a justiça do todo-poderoso complexo militar, industrial e
tecnológico que nos governa. Foi assim, com algumas variantes para
alívio das boas e inocentes consciências, no Afeganistão, no Iraque (em
duas fases), na Líbia e mais alguns outros sítios, além de acontecer
quotidianamente na Palestina.
Quem
acompanha há muito as desventuras da Síria na situação de principal
rival militar de Israel, conhece o ror de histórias mal contadas e o
arsenal de mentiras que distorcem o que se passa no país. Por isso, o
problema das armas químicas é um assunto recorrente.
O Eng.
António Guterres tem em seu poder – e se não tem deveria procurá-lo no
entulho da herança podre deixada pelo seu antecessor – um relatório de
uma comissão independente chefiada pela jurista italiana Carla del
Ponte, designada pela ONU, demonstrando, com toda a clareza, a posse de
armas químicas e de produtos para as confeccionar pelos grupos de
mercenários injectados na Síria.
Se ler o documento, de finais de
2012, o secretário-geral ficará a saber que os terroristas ditos
islâmicos foram municiados e treinados para usar esse tipo de armamento
na Turquia e na Jordânia, não directamente por países da NATO mas sim
pelos seus famosos contractors, as empresas privadas de guerra
em quem delegam os assuntos sujos, para surgirem de mãos limpas nos
grandes areópagos comunicacionais.
Esta realidade, que o Eng.
Guterres poderia ter a gentileza de partilhar com o seu ex-ministro
Santos Silva, foi revelada através da própria CNN, em finais de 2012,
pela jornalista Elise Labbott; a qual, como recompensa pelo excelente
trabalho de investigação, foi relegada para dirigir um blogue.
Também o Daily Mailonline
divulgou as mesmas informações, retomando a iniciativa de Labott, em
Janeiro de 2013. Algum tempo depois essas notícias desapareceram,
confirmando que estamos numa sociedade onde prevalece a liberdade de
imprensa.
Em Agosto de 2013, o relatório da comissão de Carla del
Ponte foi tragicamente confirmado, através de um massacre nos arredores
de Damasco, no qual a localidade síria de Goutha foi totalmente dizimada
por armas químicas – pelo menos 150 pessoas morreram. Quem se lembrar
do episódio saberá que o regime de Damasco foi imediatamente acusado da
chacina, sem quaisquer provas nem inquéritos, pelo que Obama logo
preparou os seus mísseis, tal como Trump fez agora. Mas o anterior
presidente não chegou a dispará-los, para desespero da sua secretária de
Estado Clinton, por saber que a verdadeira autoria do massacre pela
al-Nusra, ou al-Qaida, não tardaria a ser desmascarada.
A
Organização para a Proibição de Armas Químicas foi então envolvida no
assunto, terá investigado a situação no terreno, confirmado a
responsabilidade do grupo terrorista e tomado providências para
destruição dos arsenais.
Que não terão sido as suficientes, em
termos de futuro. Porque o episódio agora ocorrido terá resultado do
facto de o exército sírio, num dos seus ataques contra os grupos
terroristas, ter alvejado locais que estes usavam como paióis de armas
químicas e produtos para as fabricar. Não há provas nem maneira de
confrontar as versões em campo, mas o histórico da guerra imposta contra
a Síria, a rogo de Israel e da NATO, deixa poucas dúvidas sobre o que
aconteceu.
A reacção de Trump e a compreensão manifestada pelos
seus aliados trazem um novo alento ao Daesh e aos
terroristas «moderados», que viviam desesperados e desnorteados desde a
estrondosa
Quem estiver atento notará
nestes comportamentos da nova administração norte-americana o dedo do
recém-entronizado conselheiro de segurança nacional de Trump, o tenente
general Herbert Raymond McMaster, conhecido como o «académico
guerreiro». Foi o escolhido pelo establishment para suceder a
Michael Flynn e Steve Bannon, despedidos dos cargos de conselheiros do
presidente na sequência de conspirações de bastidores animadas por
figuras associadas à política externa belicista da anterior
administração.
Flynn e Bannon, defensores da procura de soluções
políticas para problemas militares, foram acusados de agir como
toupeiras de Putin, manobra em que desempenhou papel principal, mas
sombrio, o vice-presidente Mike Pence, expoente dos falcões
neoconservadores.
Rodeado agora por uma corte de guerreiros
expurgada de quaisquer pombas transviadas, a figura de Trump surge com
pleno fulgor, associando a sua idiossincrasia irresponsável, autoritária
e arbitrária aos hábitos de guerra enraizados em Washington.
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