Em tudo o que é
comunicação social situacionista, a nível interno e internacional, as
manobras conduzidas em torno da figura de Macron serviram para
redesenhar «a esquerda» institucional, embora o candidato agora
presidente tenha sido inicialmente definido como «centrista».
Créditos / EPA/Agência Lusa
A
epidemia potencialmente letal que atinge hoje os partidos socialistas e
social-democratas terá começado com Anthony Blair à frente dos
trabalhistas britânicos, embora a degeneração gradual viesse de trás.
No
entanto, a conversão ao ultraconservadorismo de Thatcher e Reagan, a
submissão às inquestionáveis ordens do mercado, as ânsias de
privatização do Estado e os ataques sem piedade aos direitos sociais e
laborais dos cidadãos representaram um salto qualitativo na degradação, a
que se foram juntando, numa vertigem que agora se conclui ser suicida,
as mentiras na cena internacional, o culto da guerra, a rapina
generalizada.
Aproveitando depois o balanço e as circunstâncias
propícias da História ocorridas na transição da década de oitenta para a
de noventa do século passado, os agentes da paciente conspiração
norte-americana em Itália infiltrados nos Partidos Socialista e
Comunista aceleraram a sua missão e, nos escombros das duas entidades
históricas, ergueram o Partido Democrático, à imagem e semelhança do seu
homónimo dos Estados Unidos – isto é, sem funcionamento orgânico e
seguindo orientação económica neoliberal – que definiram como sendo a
nova «esquerda», daí em diante a única com vocação de poder.
Há
pouco mais de um ano, o então presidente francês, François Hollande,
eleito pelo Partido Socialista, defendeu que os novos tempos exigiam um
«hara-kiri do PS», uma transformação em algo de ideologia muito mais
abrangente e indefinida, que imaginou como «Partido do Progresso»; na
mesma altura, um dos primeiros-ministros que nomeou durante o seu
mandato, Manuel Valls, declarou a necessidade de o Partido Socialista
mudar de nome.
Há poucos meses, o ministro da Economia de ambos, Emmanuel Macron, também ele uma figura do PSF, lançou o movimento En Marche
que, sem militantes e estrutura mas com financiamento dos bancos e
banqueiros para os quais trabalhou, e com o apoio operacional de agentes
enviados pelo Partido Democrático dos Estados Unidos, o catapultou
quase do zero até à Presidência da República.
Enquanto isso, o
candidato oficial do PS – ou do que dele resta – ficou abaixo dos sete
por cento nas eleições presidenciais, abandonado pelo aparelho do
partido, pela sua Fundação Jean Jaurès e pelas figuras de proa, com
destaque para Hollande e Valls, que logo se puseram en marche com Macron.
Em
tudo o que é comunicação social situacionista, a nível interno e
internacional, as manobras conduzidas em torno da figura de Macron
serviram para redesenhar «a esquerda» institucional, embora o candidato
agora presidente tenha sido inicialmente definido como «centrista». O
resto é «extrema-esquerda» ou «esquerda radical», isto é,
organizações «desfocadas» da realidade, «agarradas ao passado»,
incapazes de se adaptarem aos novos conceitos evolutivos, em suma,
entidades que se atrevem a rejeitar a doutrina única e oficial, o
capitalismo selvagem.
Dos casos citados a propósito do Reino
Unido, Itália e França, só os trabalhistas britânicos ainda resistem à
dissolução, por continuarem a recorrer, pelo menos até agora, a
consultas às bases partidárias para elegerem os dirigentes e não ao
artifício anti partidário das primárias, importado, claro, dos Estados
Unidos da América. Porém, mesmo desacreditado perante o reconhecimento
geral dos seus crimes e mentiras no drama do Iraque, Tony Blair e a sua
teia de propaganda voltam a estar activos na intriga e desestabilização
do Partido Trabalhista, de modo a reencaminhá-lo na senda da destruição
que muitos outros estão a percorrer.
Os casos de Itália e França
são exemplares. Renzi e Macron parecem saídos da mesma forma
tecnocrática de políticos robotizados em práticas de direita, envolvidos
na mentira, agora cada vez mais grosseira, de que eles são «a
esquerda».
Outras situações do género, que traduzem a destruição
de partidos socialistas, estão consumadas ou na calha. Em Espanha, a
deriva do PSOE é total, acelerada depois de ter entregado o poder, de
novo, aos neofranquistas de Rajoy; e, na Alemanha, o SPD está a pagar
cara a submissão feita de cumplicidade ao autoritarismo de Merkel.
Na
Grécia, a miniaturização do PASOK é idêntica à do PS francês, embora
sem o efeito Macron; pelo menos por enquanto, embora não seja seguro que
o tsiprarismo, cada vez mais fiel às ordens de Bruxelas à custa do
ainda e sempre penalizado povo grego, não vá no mesmo sentido.
Na
Holanda e na Bélgica, os partidos da Internacional Socialista
pulverizaram-se devido ao envolvimento na gestão da crise, praticando
políticas de direita – e até de extrema-direita e xenófobas, sob o
interessante pretexto de travar a influência da extrema-direita.
Hollande não foi, portanto, o caso único, embora tenha ido mais longe ao
governar em estado de excepção durante grande parte do mandato.
No
mundo nórdico, os partidos da social-democracia, outrora reis e
senhores, afundam-se em situação de deriva depois de se terem rendido à
prática neoliberal, por vezes seguindo os conservadores ou então tomando
a iniciativa – também para «retirar espaço» à direita.
Nos
países do leste europeu, a social-democracia mal viu a luz do dia
depois da extinção da União Soviética. Nasceu já neoliberal e limitou-se
a colaborar na afirmação do populismo e da extrema-direita como
verdadeiros gestores do capitalismo selvagem.
Às práticas
thatcheristas de Blair, os politólogos sempre em busca de baptismos para
«novas esquerdas» chamaram «terceira via». Para onde? Para o
socialismo, pois claro, de acordo com as suas doutas elucubrações em
forma de mensagens propagandísticas primárias. Na verdade, mais uma via
para o capitalismo puro e duro, à moda de Friedman e dos «Chicago Boys»
que criaram «o milagre de Pinochet» – por fim o capitalismo isento de
quaisquer inquietações sociais e com as pessoas, livre da mais ínfima
das sequelas keynesianas.
Com maior ou menor convicção, os
partidos socialistas e social-democratas seguiram Blair incarnando o
flautista de Hamelin, institucionalizando-se como o «lado esquerdo» do
sistema bipolar que governou a União Europeia como partido único, até
estatelar-se estrondosamente, em 2008, nos frutos podres da
subserviência ao casino financeiro – a «crise».
Se alguém tiver
dúvidas, pode consultar as decisões do Parlamento Europeu tomadas ao
longo de anos e anos: em matérias de cultura, questões de consciência e
até direitos teóricos, é possível detectar diferenças entre os
comportamentos dos membros do Partido Popular e do Grupo Socialista; mas
quando se chega aos assuntos económicos, laborais, à imposição da
austeridade, às medidas financeiras, de combate à crise ou de
estruturação autoritária da União Europeia e da Zona Euro, aí a
convergência é praticamente total entre os dois blocos.
A verdade é
que a conjugação da crise com os efeitos sociais, a que se junta o
problema dos refugiados resultante de guerras pelas quais a União
Europeia também é responsável, desmoronou a arquitectura política de
partido único com duas tendências. Na entropia resultante em que
vivemos, na qual multidões de cidadãos desorientados, manipuladas pelos
aprendizes de feiticeiros peritos em explorar o medo e a insegurança,
são cativadas por apelos de populistas mais ou menos envernizados, por
mensagens trabalhadas à maneira de anúncios de refrigerantes, ou até por
fascistas retintos, as esquerdas que permanecem fiéis ao humanismo, à
cidadania e às pessoas quase não conseguem fazer-se ouvir.
No meio
das ruínas da arquitectura política em extinção tornou-se evidente que o
papel da social-democracia oficial na gestão do neoliberalismo, mesmo
temperada pela «terceira via», se tornou descartável, inútil. Cumpriu o
papel, mas cabe agora à direita pura e dura, nas suas variantes que
chegam até aos extremos do populismo e do fascismo, gerir o sistema
neoliberal.
O arrastamento da crise, desmentindo a teoria dos
ciclos altos e baixos da economia, tornou o funcionamento do sistema
praticamente impossível em democracia. É preciso afastar os cidadãos do
direito de decidirem, seja pela força, pelo autoritarismo em liberdade
condicionada, pela intoxicação tecnocrática disfarçada de inovação
política.
Por isso os Partidos Socialistas caem como pedras de
dominó. A maioria dos seus dirigentes instalam-se no novo espaço. Onde
já se encontra, há muito, a instituição que conduz este processo de modo
cada vez mais indisfarçado: o Partido Democrático dos Estados Unidos.
Daí que Hillary Clinton, senhora da guerra com as mãos sujas de sangue
de milhões de mortos e feridos e do sofrimento de milhares de
refugiados, seja a figura de referência da Internacional Socialista de
hoje.
Está encontrada mais uma «nova esquerda», agora sim fazendo
inequivocamente parte da direita.
Porém, como sabemos, nem todos
os dirigentes socialistas apanharam a boleia de Blair e discípulos:
existem casos de resistência a alguns valores essenciais; além disso, os
chefes que fogem deixam para trás multidões de cidadãos que não estão
dispostos a acompanhá-los como os ratos seguiram o flautista de Hamelin –
e assim volto ao velho conto de Grimm.
Por isso, a esquerda – ou
as esquerdas, se preferirem – têm agora milhões de seres humanos como
destinatários de mensagens que sejam capazes de mobilizar o combate
contra um adversário poderosíssimo mas cada vez mais definido e
identificável, por muito que use e abuse da intoxicação, do ilusionismo e
da mistificação.
Para que as mensagens sejam unificadoras da
mobilização e dinamizadoras dos objectivos de luta é necessário que as
esquerdas decidam, de vez, deixar de se dividir e engalfinhar em torno
de ilusões que a realidade está cansada de desmascarar: a burla do
«mercado livre», o mito «europeísta», a ideia absurda de que a União
Europeia é «regenerável», a mentira de que é possível compatibilizar a
democracia e a soberania com a obediência aos ditadores servindo
Bruxelas e a moeda alemã, também chamada única ou euro.
Num dia,
que está próximo pela força das circunstâncias, a Internacional
Socialista mudará também ela de nome, sem precisar de fazer hara-kiri.
Grande parte dos seus membros já o fizeram. Se preferir continuar a
chamar-se assim, ficará como um imprestável paquiderme em busca do seu
cemitério.
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